Judicialização da saúde: o cidadão pode questionar a Conitec?

Há aproximadamente um ano, o tema da popular judicialização da saúde voltou a ser destaque nas páginas da mídia especializada em saúde. Como pano de fundo, notícias de um incontrolável aumento de ações judiciais e impacto orçamentário elevado para os cofres públicos ante decisões de fornecimento de medicamentos não disponibilizados aos pacientes no SUS.

Como resposta, a mais alta corte brasileira retomou e concluiu o julgamento dos Temas de repercussão geral 6 e 1.234, introduzindo critérios que hoje devem balizar as decisões judiciais sobre o tema. O advento das Súmulas Vinculantes 60 e 61 veio sob a justificativa de conferir maior governança, sustentabilidade e previsibilidade ao fornecimento de medicamentos que não estão incorporados ao SUS, mitigando ineficiências e espaço para comportamentos oportunistas.

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Essa nova dinâmica inaugurada pelo STF despertou sentimentos antagônicos para os vários atores que participam direta ou indiretamente do dia a dia da judicialização da saúde. Se de um lado, gestores públicos celebraram os potenciais efeitos positivos gerados por esses julgados, do lado de pacientes e seus representantes a implementação veio cercada de apreensão, com uma profusão de artigos de sociedades médicas, juristas e associações de pacientes indicando omissões, gargalos práticos e pontos de reflexão. Nas entrelinhas, a legítima preocupação social com critérios que podem inviabilizar a concretização do direito fundamental à saúde.

Um dos pontos de maior reflexão diz respeito ao papel e novo “peso”[1] conferido à Conitec, uma comissão que integra o Ministério da Saúde e é responsável por avaliar e recomendar a incorporação, exclusão ou alteração de tecnologias em saúde no âmbito do SUS.

Dentre os critérios introduzidos pelo Tema 6, o que mais tem gerado controvérsia é o que impõe ao cidadão que postula o fornecimento de um medicamento o ônus de provar (i) a ilegalidade do ato de não incorporação desse medicamento pela Conitec; (ii) a ausência de pedido de incorporação ou (iii) a demora na apreciação de um pedido, conforme artigo 19-R da Lei 8.080/1990.

A crítica recorrente de que o critério é de difícil preenchimento parece encontrar eco na praxe administrativa. Embora discutir a ilegalidade de um ato administrativo e seu posterior controle judicial possa parecer trivial, os 14 anos de Conitec revelam que essa possibilidade não é nada óbvia, quiçá, impossível diante de um procedimento “blindado” sob o manto de suposta discricionaridade técnica.

Violações ao princípio da motivação, isonomia, previsibilidade, tornam-se de difícil acolhimento diante da deferência à Comissão, sob a aura de que conduz um processo de alta complexidade e sofisticação técnica que, na prática, desencoraja qualquer tentativa de controle de legalidade pelo “leigo”.

A respeito, vale dizer que o critério proposto no Tema 6 traz uma impropriedade ao sinalizar que o ato de não incorporação seria da Conitec, quando a decisão administrativa compete ao secretário da SECTIS, conforme o art. 23 do Decreto 7.646/2011. Na prática, é sabido que a recomendação da Conitec é o ato que precede e dá amparo técnico a uma decisão ministerial, mas é no mínimo curioso que os julgados não tenham capturado essa sutileza, alçando uma comissão de natureza consultiva a órgão decisor.

Sob o ângulo prático, nas discussões sobre o tema ecoa a mesma questão: é crível que o cidadão consiga provar a ilegalidade do ato de não incorporação de um medicamento?

E é natural que surjam outras perguntas como: Existe uma praxe de se questionar as decisões de não incorporação em sede de recurso administrativo? Qual a taxa de sucesso desses recursos? Qual o histórico de controle judicial dessas decisões?

Para contribuir com a reflexão, relembramos que um dos autores já buscou responder a primeira pergunta em seu artigo de 2022[2], quando expôs o desfecho de todos os 22 recursos administrativos até então interpostos em face de decisões de não incorporação de 2012 a 2021. Naquele artigo, a resposta foi que 100% dos recursos não foram providos.

Diante do protagonismo da Conitec à luz do Tema 6, naturalmente a pergunta necessita ser revisitada. E, buscando resposta a essa inquietação, os autores manejaram novo pedido de acesso à informação solicitando dados atualizados até 2025. Para surpresa dos autores, outros 18 recursos administrativos foram interpostos desde então, gerando uma média de cinco recursos por ano, contrapondo uma média de 2,2 recursos nos primeiros 10 anos da Lei 12.041/2011 e da criação da Conitec.

O outro dado que chama atenção é que nenhum dos novos 18 recursos administrativos, os quais são julgados pelos Ministros da Saúde, teve provimento. Com isso, em 14 anos de Conitec, chegamos ao impressionante histórico de 40 recursos administrativos que tiveram provimento negado (em meio a um universo de 192 decisões negando incorporação para demandas externas[3]).

Naturalmente, chama a atenção que em meio a 40 recursos questionando decisões de não incorporação de tecnologias jamais tenha sido identificado qualquer vício, ilegalidade, por mínimo que fosse, para lastrear um provimento parcial.

Em outras palavras, o que se extrai nas entrelinhas é que há uma inexorável dificuldade de se questionar/confrontar ilegalidades nas recomendações da Conitec, ainda que no senso comum haja várias imperfeiçoes e oportunidades de melhoria no processo de deliberação.

O procedimento de debate das tecnologias em saúde no âmbito do SUS vem paulatinamente adotando maior transparência, adotando mecanismos de participação social e tentando conferir maior previsibilidade e governança a seus mecanismos de deliberação, assim como mudanças em seus critérios de deliberação a fim de afastar questionamentos. Mas, aos olhos da praxe administrativa, as recomendações da Conitec parecem ser imaculadas, infalíveis. Isso parece contrastar com o fato de o procedimento de avaliação de tecnologia em saúde estar em constante mudança e aperfeiçoamento.

Outros pontos de atenção frequentemente citados em recursos administrativos vão desde obscuridade nos critérios empregados nas deliberações, a possível contradição ou falta de isonomia na aplicação dos critérios entre casos distintos, falhas procedimentais com o descumprimento de prazos, eventual inversão da ordem de análise em desrespeito à ordem cronológica das submissões, motivação baseada em fatos imprecisos.

Dos exemplos acima, parece haver reais oportunidades de se reconhecer vícios nesses processos, assim como de se reformular decisões, a despeito da discricionaridade técnica inerente. Todavia, na prática, o histórico de análise dos recursos administrativos mencionados, assim como a ausência de precedentes que ilustrem o controle judicial, parecem frustrar a expectativa de que pacientes consigam efetivamente sinalizar ilegalidades nesse processo deliberativo.

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As constatações acima são incompatíveis com a aura de infalibilidade que as decisões em recursos administrativos revelam. É sabido que se avançou em transparência e em tantos outros aspectos em processos decisórios. Todavia, após quase um ano de aplicação do Tema 6, fica a sensação de que os julgados do Supremo podem ter estancado esse processo de melhoria, diante do papel que as recomendações da Conitec ganharam no “controle” da judicialização.

Mas, diante das reflexões colocadas, fica evidente a necessidade de ampliar os espaços de diálogo e de reconhecer, de forma ativa, as ilegalidades que emergem desse processo deliberativo para que a judicialização organicamente deixe de ser a “opção” dos cidadãos, porque o sistema de incorporação passou a funcionar melhor.

Este reconhecimento e diálogo é fundamental para o cumprimento da promessa de maior previsibilidade e racionalidade nas decisões judiciais sobre o fornecimento de medicamentos e, mais do que isso, para reduzir a angústia dos pacientes que dependem do SUS e permitir que o Brasil proporcione saúde e bem-estar adequados aos seus cidadãos.

[1] Schulze, Clenio Jair. A Conitec e o seu novo status constitucional. https://idisa.org.br/domingueira/domingueira-n-39-novembro-2024?lang=pt

[2] Disponível em: https://periodicos.set.edu.br/direito/article/view/10984

[3] Conforme painel de tecnologias demandadas disponível no site da CONITEC.

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