A vida real é matéria-prima para pensar a mudança do clima, diz enviada da COP30

Trocar combustíveis fósseis por energias renováveis deixou de ser suficiente. Para Denise Dora, enviada especial para direitos humanos e transição justa da COP30, a mudança só pode ser considerada justa se incluir trabalhadores, comunidades tradicionais, mulheres e ecossistemas afetados pelo processo.

Esse olhar desloca o debate climático do campo puramente técnico e o aproxima da agenda dos direitos humanos, ao tratar a transição energética como uma transformação que precisa garantir inclusão e proteção social.

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Os dados mostram a urgência dessa conexão. O Painel Intergovernamental sobre Mudanças Climáticas (IPCC, na sigla em inglês) estima que mais de 3 bilhões de pessoas já vivem em contextos altamente vulneráveis às mudanças climáticas. Em outras palavras, um terço da população mundial está exposto a riscos que vão além da degradação ambiental, atingindo dimensões básicas da sobrevivência e da dignidade.

É nesse contexto que a pauta da transição justa e dos direitos humanos ganha centralidade na COP30, reforçando a ideia de que enfrentar a crise climática exige também soluções sociais, econômicas e políticas.

Na entrevista a seguir, Dora fala sobre a adaptação, o financiamento e os desafios da transição para respostas mais justas à crise climática.

Qual é a importância de ter marcos legais e políticos nas negociações climáticas, como a Convenção-Quadro das Nações Unidas sobre Mudança do Clima e o Acordo de Paris?

Acordos internacionais não produzem resultados imediatos, mas inspiram debates internos nos países. Sem esses instrumentos, sejam nacionais ou internacionais, é muito difícil avançar em qualquer causa. Mesmo com uma legislação ambiental sólida como a brasileira, ela é disputada o tempo inteiro. É um cabo de força. Os padrões e referências são justamente essas leis internacionais e nacionais. No Brasil, mudamos as leis de família no país por conta de uma certa pressão da sociedade civil a partir da Convenção sobre a Eliminação de Todas as Formas de Discriminação contra a Mulher, de 1979. Há exemplos em diversas searas e são muito importantes.

O que a COP30 em Belém pode mostrar sobre os efeitos do clima nas pessoas?

Quando o Brasil se candidatou a sediar a COP na Amazônia, fez um gesto ousado. Belém tem problemas comuns à maioria das cidades do mundo, como trânsito, falta de saneamento e infraestrutura precária. Mas é também uma cidade linda, no meio da Amazônia, tem o melhor sorvete do mundo e muitos desafios. Esse gesto de trazer a COP para Belém é dizer: “olha, esta é a vida real. É assim que lidamos com mudanças climáticas e buscamos soluções”.

Além disso, há um componente simbólico nas relações internacionais. Muitos ainda têm medo de vir à Amazônia, alimentados por fantasias de que encontrarão animais nas ruas ou sofrerão com o calor insuportável e chuvas intermináveis. Quem nunca esteve aqui vive em bolhas protegidas e precisa se confrontar com a realidade da maioria da população mundial. Essa é a matéria-prima para pensar na mudança do clima.

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As últimas três COPs aconteceram em países com regimes autoritários. Como o ambiente democrático brasileiro pode estimular a participação social?

É muito simbólico. As três últimas COPs foram em países autoritários, com baixa participação social. No Brasil, um país democrático, a sociedade civil está mobilizada. Estive em uma plenária em Manaus com 70 organizações, em sua maioria de mulheres e do movimento negro. A maturidade e a força desses grupos são impressionantes. A Universidade Federal do Pará já cedeu espaço para a Cúpula dos Povos. Haverá acampamentos, caravanas de ônibus, barcos e aviões para levar participantes. Os hotéis baixaram os preços depois que perceberam que a lógica de extorsão não se sustentaria. Aliás, o Brasil tem essa característica de resolver tudo na reta final. É como um desfile de escola de samba, o caos impera até cinco minutos antes, mas depois tudo se encaixa. Eu sou otimista, acredito que será um encontro espetacular.

A pauta de adaptação é uma das prioridades da COP30. O que faz com que ela seja tão relevante?

É um assunto urgente. Não é algo para daqui a 30 ou 50 anos. O clima já mudou, o planeta já está mais quente. Eu moro em Porto Alegre e, nos últimos dez anos, enfrentamos oito emergências climáticas, como seca, frio intenso, ciclones e enchentes. Esse tende a ser o nosso cotidiano. Nem todas as enchentes terão a mesma intensidade, mas elas serão mais frequentes. 

Pensando no cenário internacional, o caso de Vanuatu é emblemático. Conversei com a delegação deles em Bonn, na Alemanha, na reunião pré-COP, e ouvi que todos os anos ciclones destroem escolas, pontes, infraestrutura. É impossível reconstruir um país todos os anos, não tem recurso no mundo que dê conta. Eles já sabem que vão perder seu território e se tornar migrantes, perdendo inclusive sua nacionalidade. A conversa com eles foi muito triste, é uma realidade muito dura. 

Outro tema importante é o do financiamento climático. Qual é o principal desafio nesse sentido? 

Não se trata apenas de volume de dinheiro, é preciso garantir que os recursos cheguem à base, às comunidades. Hoje, mecanismos burocráticos impedem que pequenos grupos acessem recursos diretamente. Precisamos de novas arquiteturas financeiras, como fundos comunitários e indígenas. Essas estruturas podem receber grandes recursos, abrir editais, apoiar projetos locais e auxiliar na prestação de contas.

Ao mesmo tempo, os países que vivem as dificuldades sociais entendem a importância do conceito da transição energética justa. Como o debate tem evoluído?

Há realidades muito piores do que a do Brasil. As imagens recentes das enchentes no Paquistão mostram como o cenário é complexo. Não tem como a gente não se solidarizar e precisamos da compreensão geral de que o planeta é um só. O debate sobre a transição justa cresce porque não se trata apenas de trocar uma fonte de energia por outra. Muitos países do Norte Global abraçaram essa causa porque estão vivendo o fenômeno a seu jeito, mas também por serem lugares de construção de conhecimento. Onde há construção de conhecimento, há vivência e começa a se constituir essa capacidade de entender que, ao pensar em processos de transição, ele não pode criar problemas. 

O processo envolve cidades inteiras que dependem de uma economia. No caso do carvão, por exemplo, no Rio Grande do Sul, no Chile ou na Índia, não basta oferecer novos empregos. Há famílias, escolas, serviços e toda uma rede social ligada àquele trabalho. 

A transição justa significa não deixar ninguém para trás, incluindo mulheres, idosos, pessoas com deficiência e populações tradicionais. Também significa incluir os rios, as florestas e outras espécies. É complexo, mas já existe um conjunto de soluções possíveis, que podem ser implementadas passo a passo. 

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O Brasil tem um histórico de violência contra defensores ambientais. Como você vê essa questão?

Infelizmente, não são apenas ameaças, há assassinatos sistemáticos. A América Latina é a região onde mais se mata defensores ambientais no mundo. Basta lembrar de Chico Mendes, da Irmã Dorothy Stang, de Dom Phillips e Bruno Pereira. Defender o meio ambiente é enfrentar a lógica extrativista e capitalista que busca acumular riqueza pela exploração máxima de recursos naturais. 

Hoje, por exemplo, a água é disputada para resfriar bancos de dados de inteligência artificial. Minerais críticos geram tensão global. De um lado, atores com muito poder econômico e político querem explorar ao máximo. De outro, pessoas tentam impedir a destruição ambiental, mas com menos recursos. Essa é uma questão essencialmente democrática. 

Por isso, o debate sobre mudanças climáticas não é frio, nem exclusivamente técnico ou científico. Ele é político e exige participação social para garantir sobrevivência e dignidade às próximas gerações. 

E como o setor privado se insere nessas discussões?

Não dá para confiar apenas nas boas intenções das empresas. Algumas têm compromissos sérios com sustentabilidade e querem promover avanços em suas cadeias produtivas e na sociedade, mas muitas atuam dentro do mínimo exigido por lei. Por isso, o Estado tem o papel fundamental de regular, fiscalizar e punir. Se o Estado é fraco, prevalecem condições de trabalho degradantes, trabalho escravo e exploração. Se é forte, ele estabelece padrões e desestimula práticas ruins. É sempre uma equação entre sociedade, setor privado e Estado.

Nesse contexto, qual é o papel do Congresso Nacional?

Hoje, infelizmente, vemos uma tentativa de desmontar a regulação ambiental, como se fosse o “Velho Oeste”, ganha quem tem mais força política. Se não há Estado para regular essa relação, para estabelecer limites, mostrar como as coisas são feitas, este será um caminho inevitável de destruição. É o caminho que nos trouxe onde estamos atualmente, que extraiu tanto do planeta nos últimos 150 anos que ele começou a manifestar o seu desequilíbrio. Casos de privatização de praias ou a devastação de territórios ameaçam as próximas gerações.

O Estado precisa ser democrático, participativo e regulador para garantir equilíbrio. A situação é bastante séria, temos problemas muito concretos. Temos a sociedade, o mundo dos negócios, mas o Estado tem um papel fundamental. Ele tem que ser democrático e participativo para debater com a sociedade. 

Nos últimos anos, a litigância climática ganhou evidência. Qual é o papel do Judiciário nesse processo?

É central. Muitas vezes se fala no Executivo ou no Congresso, mas os tribunais são essenciais para transformar tratados internacionais em prática concreta. Recentemente, a Corte Interamericana de Direitos Humanos e a Corte Internacional de Justiça afirmaram que os Estados têm a responsabilidade de garantir um ambiente saudável. 

Cabe ao Judiciário nacional aplicar isso, desde juízes de primeira instância até tribunais superiores. Caso contrário, a lei perde força. E como cada vez mais questões climáticas são judicializadas, o Judiciário precisa entender sua relevância. É melhor resolver conflitos nos tribunais do que com violência. É o famoso “direito a espernear”. A sociedade não precisa se calar quando é desrespeitada. Temos que lutar pelos nossos direitos, nos organizar, exigir as responsabilidades dos estados. O Judiciário não é o único lugar para isso, mas é um espaço muito importante.

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