Por que mediação com entes públicos pode destravar bilhões em litígios regulatórios?

O impasse regulatório que trava investimentos

Em entrevista recente ao JOTA, destaquei que “acordos construídos de forma colaborativa tendem a ser respeitados e efetivamente cumpridos pelas partes”. Essa constatação, que deriva da experiência prática com mediações, serve como ponto de partida para compreender o atual ambiente regulatório brasileiro.

Atualmente, a judicialização é um dos maiores entraves ao ambiente regulatório. Litígios intermináveis entre particulares e a Administração Pública, longe de representar uma válvula legítima de solução de conflitos, têm se convertido em verdadeiro obstáculo à eficiência contratual.

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Não bastasse o efeito corrosivo da morosidade judicial, esses litígios represam bilhões de reais que poderiam estar reinvestidos em infraestrutura e em serviços públicos essenciais. O resultado é danoso.

Por um lado, a ausência de instrumentos eficazes de solução de controvérsias acaba por minar a confiança necessária para que o investidor mantenha seu apetite em assumir projetos e contratos públicos. Por outro, há maior dificuldade de o Estado atrair capital privado para setores estratégicos.

Estamos diante de uma guinada institucional?

É verdade que, nos últimos anos, já se percebia um movimento incipiente de valorização da autocomposição no setor público. A criação da Secex-Consenso pelo TCU talvez tenha sido o maior marco desse giro institucional, ao demonstrar que até mesmo o órgão de controle poderia abrir espaço para soluções dialogadas.

Esse movimento, entretanto, não surgiu do nada. Como também ressaltei na referida entrevista, marcos normativos como o Código de Processo Civil de 2015, a Lei da Mediação e as alterações na LINDB em 2018 criaram uma base sólida para a expansão de soluções consensuais também em disputas envolvendo a Administração Pública. Todavia, faltava à Advocacia-Geral da União (AGU) aprimorar seus instrumentos para acompanhar esse avanço.

Até então, a mediação na Câmara de Conciliação e Arbitragem da Administração Pública Federal (CCAF) se abalizava em normas esparsas e ordens de serviço precárias, sempre condicionadas à iniciativa da própria autoridade pública. O particular, em regra, não tinha porta de entrada.

A grande ruptura adveio com a Portaria 178/2025. Essa norma inverteu essa lógica ao permitir que o particular, por meio de associações, sindicatos ou diretamente em determinadas hipóteses, pudesse acionar a Câmara, requerendo a instauração de um processo de solução consensual. Assim, conferiu ao setor privado maior protagonismo na construção de soluções consensuais.

Avanços da AGU

Esse diploma consolidou, de modo sistemático e transparente, regras sobre o funcionamento da CCAF. Ao regulamentar de forma expressa e ampla o procedimento de solução consensual no órgão, a AGU evoluiu – e muito – com relação à fragmentação normativa anterior. A Portaria 178/2025 conferiu densidade procedimental e maior segurança jurídica à Câmara, alinhando-a de forma mais eficaz às políticas públicas de mediação e negociação.

O que muda na prática

As inovações da Portaria não são meramente formais. Representam um salto qualitativo capaz de reconfigurar a relação público-privada.

Em primeiro lugar, ampliou-se a legitimidade, permitindo que particulares, associações e sindicatos possam propor mediações em litígios de vulto, especialmente em disputas relacionadas ao equilíbrio econômico-financeiro de contratos. Também se estruturou de forma inédita o juízo de admissibilidade, com critérios objetivos de competência, voluntariedade e viabilidade, substituindo a lógica discricionária que vigorava até então.

Além disso, a norma passou a reconhecer distintas modalidades de termos de conciliação — finais, parciais e incidentais — o que abre caminho para soluções progressivas em litígios complexos, antes restritos à dicotomia entre acordo integral ou fracasso total da mediação.

A exigência de manifestação de vantajosidade igualmente se sofisticou: deixou de ser um parecer meramente jurídico para exigir avaliação combinada de aspectos técnicos e econômicos, demonstrando de modo explícito os benefícios da solução consensual.

Outro ponto que merece destaque é a consolidação, em um só diploma, das anuências necessárias para celebração dos acordos. Antes dispersas em legislações e dispositivos infralegais (por meio dos quais se delegava a competência), essas autorizações agora se encontram sistematizadas de acordo com a natureza do litígio e os valores envolvidos, conferindo maior previsibilidade e segurança ao procedimento.

Por fim, a Portaria ainda introduziu a possibilidade de adoção de providências acautelatórias, que podem ser pactuadas ao longo do processo para resguardar a efetividade da mediação, aproximando-a de uma lógica processual mais moderna e pragmática.

Oportunidade para o setor regulado

Essas mudanças têm reflexos diretos em setores como concessões, PPPs e telecomunicações.

Em minha participação na reportagem do JOTA, ressaltei que a mediação já tem sido utilizada com sucesso em concessões de infraestrutura e telecomunicações. Ou seja, envolvendo litígios de alto impacto econômico que antes eram inevitavelmente judicializados ou levados à arbitragem. Esse histórico reforça a pertinência da Portaria 178/2025 como catalisador de novas soluções consensuais.

Mais do que os litígios clássicos envolvendo reequilíbrio econômico-financeiro, vislumbra-se também a possibilidade de utilização da mediação como instrumento para a transação extrajudicial de débitos regulatórios.

A legislação recente — a exemplo da Lei 13.988/2020 e de sua alteração pela Lei 14.973/2024 — abriu caminho para que autarquias federais, mediante o devido reconhecimento de interesse regulatório, possam negociar créditos não tributários. Esse marco normativo permite, inclusive, soluções criativas como conversão de obrigações em compromissos de investimento, o que dá lastro para acordos de maior valor agregado ao setor.

Nesse cenário, o êxito das negociações dependerá não apenas da boa vontade institucional, mas também da capacidade técnica de interpretar com precisão a legislação aplicável e suas sutilezas regulatórias. É nesse ponto que uma atuação jurídica especializada faz diferença, pois conhecer os requisitos da transação, os limites legais e as alternativas de pagamento é condição essencial para viabilizar arranjos equilibrados e juridicamente sólidos.

A combinação de visão regulatória e domínio do marco normativo é o que permitirá transformar a mediação em verdadeiro motor de pacificação e desenvolvimento de setores regulados.

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Uma transação bem-sucedida reduz risco regulatório, abre-se espaço para liberação de recursos represados e reforça o relacionamento entre o ente público e o parceiro privado.

Desafios e horizonte

Naturalmente, ainda há desafios. Será preciso consolidar uma cultura de negociação na esfera pública, formar mediadores especializados e assegurar transparência em cada etapa.

Diante de todo o exposto, a Portaria 178/2025 inaugura um novo paradigma. Se bem aplicada, não será apenas mais uma norma administrativa: poderá reduzir o contencioso regulatório, fortalecer a governança pública e, sobretudo, destravar bilhões em investimentos hoje aprisionados em litígios.

E exatamente nesse particular evidencia-se a mudança de chave da lógica do litígio para a lógica de cooperação entre Estado e setor privado.

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