Orçamento imaginário revisitado: os desafios estruturais do PLOA 2026

A primeira semana de setembro é sempre marcada pelas notícias sobre o orçamento da União do ano seguinte, cuja proposta, por disposição constitucional, é apresentada no final de agosto (ADCT, art. 35, § 2º, III).

Esse rito é fundamental no processo democrático, pois confere ao Legislativo o papel de debater e autorizar a execução das receitas e despesas da União. No entanto, a tradição que se consolidou nas últimas décadas tem sido a de frustrar expectativas, com projeções demasiadamente otimistas e números que não resistem ao confronto com a realidade.

Conheça o JOTA PRO Poder, plataforma de monitoramento que oferece transparência e previsibilidade para empresas

Já há alguns anos repete-se a crítica diante da irrealidade dos números, comprometendo a credibilidade da lei mais importante do país depois da Constituição. Não por acaso, o orçamento federal tem sido apelidado de “peça de ficção” ou, como já escrevi, de “orçamento imaginário”[1].

Alexandre Schwartsman, em recente texto na Veja, foi além e cunhou a expressão “irrealismo fantástico”, um “orçamento público além da imaginação”[2]. Esse quadro pouco contribui para que se leve o Direito Financeiro a sério, disciplina que deveria orientar de maneira rigorosa e técnica a gestão das finanças públicas.

O Projeto de Lei Orçamentária Anual (PLOA) para 2026 segue esse roteiro. O governo projeta superávit primário de R$ 34,3 bilhões (0,25% do PIB). No entanto, uma análise mais atenta revela uma sucessão de “pressupostos ousados” e de “números otimistas”, que fragilizam a estabilidade fiscal e minam a credibilidade da política orçamentária.

Especialistas descrevem a proposta como “extremamente apertada, cheia de interrogações”, o que levanta sérias dúvidas sobre sua factibilidade e aderência ao princípio da sinceridade orçamentária — consagrado no Direito Financeiro e que impõe que as estimativas sejam conservadoras, realistas e verossímeis. Questões que tem deixado o mercado preocupado[3], e não é apenas o setor privado que aponta nesse sentido, como se pode constatar do Informativo PLOA 2026, elaborado pelas consultorias da Câmara e do Senado, que registra estimativas semelhantes.[4]

O recurso frequente a esse tipo de expediente tem nome conhecido: “contabilidade criativa”. A prática, duramente criticada em anos anteriores, retorna agora sob nova roupagem, mas com os mesmos riscos de comprometer a credibilidade do processo orçamentário, como já alertei recentemente[5].

Entre os elementos centrais do orçamento estão as variáveis macroeconômicas. É sobre elas que se constroem as estimativas de arrecadação e de despesas. O PLOA 2026 prevê crescimento do PIB de 2,44%, mas a mediana da pesquisa Focus, do Banco Central, aponta expansão abaixo de 2%. Marcus Pestana, da Instituição Fiscal Independente (IFI) do Senado, classifica a projeção como “otimista ante a realidade”.

A mesma discrepância se verifica na taxa de juros. O governo projeta Selic média de 13,11% em 2026 e de 11,40% em dezembro, enquanto o mercado prevê queda mais lenta, para 12,5%. Esse desalinhamento não é trivial: uma diferença de poucos pontos percentuais na taxa básica implica bilhões de reais em receitas financeiras e em despesas com juros da dívida. Subestimar a Selic pode gerar frustração fiscal imediata.

Esse padrão repete uma prática recorrente: usar o orçamento como instrumento político, apresentando um cenário de prosperidade que dificilmente se concretiza. O problema é que, quando a realidade impõe números mais duros, o ajuste recai de forma abrupta sobre a sociedade, seja por meio de contingenciamentos, aumento de tributos ou endividamento.

As estimativas de receita são um dos pontos mais criticados. O PLOA 2026 conta com R$ 98,7 bilhões em receitas extraordinárias e R$ 54 bilhões em dividendos de estatais. Esse montante depende, em larga medida, de fatores incertos, como a conversão em lei da MP 1303. Essa Medida Provisória amplia a tributação sobre aplicações financeiras, fintechs, apostas online, criptoativos e títulos incentivados, devendo gerar R$ 20,9 bilhões em 2026.

Além disso, a proposta prevê arrecadar R$ 19,8 bilhões com corte de benefícios tributários e R$ 20 bilhões com alienação de ativos no setor de petróleo. Trata-se de receitas de execução incerta, dependentes de decisões políticas e de condições de mercado. Marcus Pestana resume: a viabilidade do PLOA depende de que o Congresso não “desidrate” a MP 1303, que mantenha a compensação pela ampliação da isenção do Imposto de Renda e que se obtenha êxito na venda de ativos. Em outras palavras, trata-se de um castelo de cartas, que pode ruir diante da primeira dificuldade política.

Ações voltadas a elevar tributos, em um cenário de carga tributária excessivamente alta, o que já perdura há anos, talvez décadas, são de resultado sempre duvidoso, além de indesejado, pois os efeitos de intensificação da tributação nessas condições tendem a causar efeitos perversos na economia e desincentivar o crescimento. As resistências a essas medidas já se fazem sentir antes mesmo de serem aprovadas, e vêm de setores com expressiva representação política, como os empresários, especialmente na indústria e nos bancos.[6]

Do lado das despesas, o quadro é igualmente preocupante. Cortes de gastos não são prometidos, e acreditar que venham a ocorrer em 2026, ano eleitoral, é ilusão.

O orçamento revela uma rigidez fiscal impressionante: 92,4% das despesas primárias são obrigatórias, restando apenas 7,6% para as discricionárias — espaço onde se encontram os investimentos e a manutenção básica da máquina pública. Essa rigidez limita a capacidade de o governo reagir a choques econômicos e sociais.

A Previdência Social absorve a maior fatia, com R$ 1,152 trilhão em 2026 e tendência de alta, podendo alcançar R$ 1,308 trilhão em 2029. Somente os benefícios previdenciários representam R$ 1,11 trilhão. O Bolsa Família terá R$ 158,6 bilhões destinados a 19,9 milhões de famílias. O novo PAC, por sua vez, receberá R$ 52,9 bilhões, um acréscimo modesto em relação ao ano anterior.[7]

Os gastos com pessoal, estimados em R$ 350,4 bilhões, incluem reajustes e novas contratações. Em um cenário de rigidez fiscal, a expansão dessas despesas agrava ainda mais o quadro. Como observa Lucas Saqueto, a manutenção das despesas constantes, sem redução estrutural, deveria soar como alerta: trata-se de um orçamento de quem já está endividado e continua a ostentar gastos supérfluos.

Mesmo que a meta oficial aponte superávit primário de R$ 34,3 bilhões, cálculos independentes indicam déficit de R$ 23,3 bilhões (–0,2% do PIB). Isso ocorre porque R$ 57,8 bilhões em despesas ficam fora do limite do arcabouço fiscal, notadamente os precatórios, cuja execução é determinada pelo Judiciário e que foram excluídos da meta por decisão do STF. Embora juridicamente apartados, esses valores pesam sobre a dívida pública, que continuará a subir.

A “regra de ouro”, outro pilar constitucional, também está pressionada. O PLOA prevê R$ 313,5 bilhões em despesas primárias a serem financiadas por operações de crédito que excedem o limite constitucional. Para viabilizar a execução, será necessário aprovar lei de crédito suplementar no Congresso. Trata-se de mais um exemplo de como a engenharia fiscal tenta driblar os limites legais, em vez de enfrentá-los com reformas estruturais.

As emendas parlamentares constituem capítulo à parte. O PLOA reserva R$ 40,8 bilhões para emendas individuais e de bancadas estaduais, podendo chegar a R$ 52,9 bilhões com as de comissão. Embora legítimas como instrumento de participação, o volume crescente de emendas amplia pressões políticas sobre o orçamento. Em ano eleitoral, esse fator tende a se intensificar, comprometendo ainda mais a racionalidade fiscal.

O quadro que se delineia é o de um orçamento excessivamente otimista em suas premissas e comprometido em sua execução. Do lado das receitas, a dependência de medidas incertas e de difícil aprovação cria instabilidade. Do lado das despesas, a rigidez estrutural, associada ao crescimento contínuo da Previdência e às amarras das emendas impositivas, limita qualquer espaço de ajuste.

Informações direto ao ponto sobre o que realmente importa: assine gratuitamente a JOTA Principal, a nova newsletter do JOTA

O resultado é um orçamento vulnerável, cuja execução dificilmente corresponderá às projeções oficiais. O risco maior, contudo, é o de deterioração da confiança. Quando o orçamento perde credibilidade, não é apenas o governo que sai prejudicado: toda a sociedade sofre com a instabilidade fiscal, o aumento da percepção de risco e o encarecimento do crédito.

A insistência em apresentar previsões artificiais, como se a realidade pudesse ser contornada por decreto, apenas posterga o inevitável. O choque com os fatos, como se sabe, não tarda nem falha. O desafio que se impõe é recolocar o orçamento como instrumento de planejamento sério, baseado em números realistas e compatíveis com as regras fiscais. Sem isso, continuaremos presos ao círculo vicioso do “orçamento imaginário”, em que ficção e realidade se misturam, sempre em prejuízo da credibilidade do Direito Financeiro e da boa governança fiscal no Brasil.

[1] Orçamento imaginário. In Jota, publicada em 31.8.2023 (https://www.jota.info/opiniao-e-analise/colunas/coluna-fiscal/orcamento-imaginario).

[2] Schwartsman, Alexandre. Irrealismo fantástico: um orçamento público além da imaginação. Veja, 5.9.2025.

[3] https://www.cnnbrasil.com.br/economia/macroeconomia/especialistas-apontam-dados-superestimados-no-orcamento-2026/

[4] Informativo PLOA 2026 – PLN 15/2025. Consultoria de Orçamentos, Fiscalização e Controle – SF e Consultoria de Orçamento e Fiscalização Financeira – CD, setembro de 2025.

[5] Soberania com improviso fiscal e mais uma gambiarra econômica, publicada em 28.8.2025 (https://www.jota.info/opiniao-e-analise/colunas/coluna-fiscal/soberania-com-improviso-fiscal-e-mais-uma-gambiarra-economica).

[6] Orçamento de 2026: governo busca de novo alta de impostos para equilibrar as contas públicas; setor produtivo resiste (G1, 23.8.2025 – https://g1.globo.com/economia/noticia/2025/08/23/orcamento-de-2026-governo-busca-de-novo-alta-de-impostos-para-equilibrar-as-contas-publicas-setor-produtivo-resiste.ghtml).

[7] Previdência Social ultrapassa R$ 1 trilhão no Orçamento de 2026 (CNN Brasil, 29.8.2025 – https://www.cnnbrasil.com.br/economia/macroeconomia/previdencia-social-ultrapassa-r-1-trilhao-no-orcamento-de-2026/).

Generated by Feedzy