O caminho prudente do Brasil na regulação digital no contexto geopolítico atual

O presidente Luiz Inácio Lula da Silva recentemente defendeu conceder ao Conselho Administrativo de Defesa Econômica (Cade) mais poder para regular as big techs, mesmo com o presidente dos Estados Unidos, Donald Trump, ameaçando impor tarifas “aos países cujos impostos, legislações e regulações visem as grandes empresas de tecnologia norte-americanas, como Google, Meta, Amazon e Apple”.

A declaração de Trump seguiu-se a uma ordem executiva assinada por ele em fevereiro deste ano, na qual afirmava o compromisso do governo norte-americano em defender empresas americanas contra regulações internacionais assimétricas. O Brasil, no entanto, não recuou.

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Mesmo após os Estados Unidos imporem tarifas de 50% sobre as importações brasileiras, por exemplo, Lula reforçou sua posição em regular e tributar as grandes empresas de tecnologia, que, na sua maioria, são de origem norte-americana. Mais recentemente, o Lula respondeu a Trump que qualquer empresa que opere no Brasil, seja russa, chinesa ou americana, deve seguir as legislações brasileiras.

O Brasil é, obviamente, um país soberano e também um mercado digital importantíssimo – uma “nação cronicamente online de 212 milhões de habitantes”, como descreveu o New York Times. O brasileiro é um povo orgulhoso e, com razão, vê o país como um relevante player na América Latina e, por vezes, no mundo. Contudo, como era de se esperar, a retórica e as táticas de Trump geraram reação contrária, fortalecendo o apoio às propostas atuais das autoridades brasileiras.

Porém, entrar em um cabo de guerra contra Trump pode ser um erro de cálculo perigoso. Por trás da retórica agressiva, há um ponto de verdade que merece atenção: muitas das regulações propostas para os mercados digitais, embora apresentadas como universalmente benéficas, tendem a afetar de forma desproporcional as grandes empresas de tecnologia norte-americanas e, intencionalmente ou não, podem favorecer as empresas de tecnologias locais.

Ainda que não aparente ser este (favorecer empresas digitais nacionais em detrimento das norte-americanas) o objetivo dos projetos brasileiros, Trump e outros políticos dos EUA podem ter essa impressão a partir de acontecimentos em outras jurisdições. Essa dinâmica, aliada à disposição já demonstrada de Trump utilizar tarifas no comércio internacional como uma arma, torna a ameaça ainda mais crível.

As ameaças de Trump agora se estendem para além das regulações digitais, alcançando também o enforcement tradicional do direito concorrencial. Após a Comissão Europeia multar o Google em cerca de € 2,95 bilhões (R$ 18 bilhões) pela alegada prática anticompetitiva no mercado de tecnologia de publicidade (ad-tech), Trump considerou a medida como “muito injusta” e ameaçou iniciar uma investigação comercial e, possivelmente, impor tarifas, a menos que a decisão fosse revertida.

Isso ecoa sua postura anterior e reforça que mesmo ações antitruste regulares no exterior, para além das novas medidas regulatórias, podem desencadear represálias de Washington.

Para o Brasil, a perspectiva das tarifas dos EUA não é apenas um debate político abstrato. Trata-se de uma ameaça concreta às indústrias exportadoras, ao crescimento econômico e, em última instância, ao bem-estar dos brasileiros. De acordo com estimativas do governo brasileiro, 35,9% (US$ 14,5 bilhões) das exportações brasileiras para os Estados Unidos serão afetadas pela regra geral de tarifas de 50% de Trump; 44,6% (US$ 18 bilhões) seriam excluídas da tarifa geral de 50%; e 19,5% (US$ 7,9 bilhões) estariam sujeitas a tarifas específicas e diferenciadas.

Nesse sentido, por exemplo, o setor agrícola, um dos pilares da economia brasileira, pode ser particularmente vulnerável e sofrer consequências variadas. Enquanto o suco de laranja foi excluído da tarifa geral de 50%, o café e a carne bovina foram incluídos.

Qualquer ruptura nos fluxos comerciais com os Estados Unidos, o segundo maior parceiro comercial do Brasil, é capaz de repercutir em toda a economia brasileira, afetando desde preços de commodities até taxas de emprego. A Federação das Indústrias do Estado de São Paulo (Fiesp) destacou um estudo do Cedeplar/UFMG que apontou que as tarifas de Trump poderiam reduzir o PIB brasileiro em 0,2% em 2025 e 0,38% em 2026, sendo os setores sujeitos à tarifa geral de 50% os mais impactados.

Em relação a esse debate, pode-se argumentar a favor de uma postura baseada em princípios de defesa da soberania. A prudência, no entanto, dita que, mesmo diante de pressões percebidas, uma nação deve priorizar o bem-estar de sua população. O potencial benefício de uma nova regulação digital – frequentemente especulativo e de difícil mensuração – justificaria o risco concreto e imediato de um dano econômico significativo em um confronto direto entre os presidentes das duas nações?

Isso nos leva ao cerne do argumento: os países devem avaliar cuidadosamente se a regulação dos mercados digitais é realmente necessária e se deve figurar como uma prioridade genuína de política pública, dada a escassez de recursos para seu enforcement. Tudo indica que, no Brasil, há um consenso nesse sentido. Mas, reconhecendo os riscos de uma regulação ex-ante, geral e rígida, o país tem caminhado prudentemente para uma abordagem mais flexível e caso a caso (embora não isenta de riscos).

Ademais, dada a evidente ameaça geopolítica, qualquer nova regulação deveria conter princípios limitadores que assegurem que as intervenções realmente beneficiem os consumidores (como, por exemplo, atrelar as designações de gatekeeper a um poder de mercado significativo ou um poder de monopólio) e a possibilidade de defesas de eficiência.

Aguardar por mais evidências sobre o funcionamento de regimes concorrenciais semelhantes de regulação digital ex-ante certamente enriqueceria o debate. Aguardar também pelos desfechos dos casos antitruste que o Cade iniciou contra algumas plataformas digitais também seria igualmente prudente.

Este último ponto é crucial. O direito concorrencial já fornece ferramentas para lidar com muitos dos danos invocados como justificativa para uma nova regulação dos mercados digitais. Ainda que imperfeito, e reconhecendo que os casos podem demorar por alguns anos, ele permanece suficientemente flexível para coibir condutas anticompetitivas, sem proibir práticas eficientes e benéficas aos consumidores.

Mesmo que a opção de não aprovar tais regulações se mostrasse, no futuro, um erro, uma vez que regulações ex-ante ainda estão longe de serem consenso internacional, tendo sido promulgadas em um número baixo de jurisdições, ainda haveria espaço para adotá-las mais adiante. Por outro lado, os custos do erro ao aprovar leis e regulações são bem mais profundos: uma vez em vigor, são muito mais difíceis de reverter.

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Em suma, a mensagem para o Brasil é clara: proceda com cautela. A ameaça de tarifas ainda mais altas e retaliações por parte dos EUA é um risco econômico sério que não pode ser ignorado. Embora o ímpeto de regular grandes empresas de tecnologia seja compreensível do ponto de vista da soberania, os custos potenciais de fazê-lo – especialmente no atual cenário geopolítico volátil – são substanciais.

O legislativo e os formuladores de políticas públicas no Brasil devem abordar qualquer política pública, tal como a presente regulação digital, com uma análise fria e rigorosa de custo-benefício (lembrando que, dentro do ordenamento jurídico brasileiro, já se tem a figura da análise de impacto regulatório para casos como esse), mantendo o bem-estar econômico dos cidadãos como prioridade central.

Em um mundo cada vez mais definido por disputas de poder digital e tensões geopolíticas, a prudência não deve ser vista como uma fraqueza, mas como um forte ativo estratégico. O futuro digital do Brasil, bem como a prosperidade nessa área, pode depender disso.

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