Marbury v. Madison, o STF e a nova onda de conciliações

O ano era 1800, os Estados Unidos acabavam de passar por sua segunda eleição e Thomas Jefferson (Partido Democrático-Republicano) se sagrava vencedor, desbancando o então presidente John Adams (Partido Federalista). A derrota, esmagadora, custou aos federalistas não apenas a presidência do país, mas também o controle sobre o Congresso.

Veterano na política, Adams tentou, então, buscar formas de mitigar os danos sofridos com a eleição. Uma das formas que encontrou para fazer isso foi olhando para o Judiciário. Em março de 1801, apenas dois dias antes do encerramento de seu mandato, Adams nomeou algumas dúzias de apoiadores do Partido Federalista para cargos de juízes de circuito e juízes de paz.

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O Senado, que naquele momento ainda era controlado pelos federalistas, não demorou para confirmar as nomeações. Em seguida, John Marshall, então secretário de Estado – que temporariamente acumulou o cargo de presidente da Suprema Corte até 1801 –, mobilizou-se para garantir que os juízes fossem empossados antes que Jefferson assumisse a presidência.

Muitos dos “termos de posse” foram entregues durante a noite, na véspera da posse do novo presidente, o que fez com que os democratas-republicanos apelidassem esses magistrados de “juízes da meia-noite”.

O esforço de Marshall, no entanto, não foi suficiente para garantir que todos os juízes recebessem seus documentos. Nesse cenário, os novos inquilinos da Casa Branca, mais especificamente o novo secretário de Estado, James Madison, recusou-se a dar posse aos juízes que não haviam sido alcançados por Marshall a tempo.

Entre aqueles que não haviam sido empossados estavam William Marbury, indicado por Adams ao cargo de juiz de paz. Decidido a agradar seu patrono, Marbury resolveu criar um fato político que prejudicasse o novo governo. Valendo-se de um dispositivo do Judiciary Act of 1789 (lei que organizou o Judiciário federal), o aspirante a juiz de paz manejou um writ of mandamus junto à Suprema Corte dos Estados Unidos requerendo que o novo secretário de Estado o empossasse.

Na Suprema Corte, ao analisar o caso, Marshall se viu em um dilema que resultaria em uma das mais importantes decisões da história. Também apadrinhado pelo ex-presidente Adams, Marshall queria elaborar uma decisão que pudesse, de alguma forma, beneficiar o responsável pela posição que ocupava. Contudo, conferir a Marbury o direito a ser empossado poderia colocar em risco a própria existência da corte, que naquele momento ainda estava construindo sua autoridade.

Como bem escreveu Alexander Hamilton em “O federalista 78”, o Judiciário, por não ter controle sobre a bolsa ou a espada, “será sempre o menos perigoso dos Poderes aos direitos políticos da Constituição”. Sob os ecos dessa lição, Marshall compreendia os riscos de emitir uma ordem e vê-la descumprida pelo novo secretário de Estado – o que acabaria por levar a corte ao descrédito.

Marshall, contudo, não entrou para a história como um dos mais famosos juízes que já pisaram sobre a terra à toa. Habilidoso com a caneta, o presidente da corte olhou para o Judiciary Act of 1789 e encontrou uma saída que lhe garantiria o melhor dos dois mundos. Invertendo a ordem que hoje estamos acostumados a ver em um processo, Marshall primeiro deliberou sobre o mérito. Seu voto deixava claro como a decisão de Madison de negar a posse a Marbury era uma violação da Constituição.

Estava, assim, cumprida sua primeira tarefa: mandar uma mensagem pública de que o novo governo estava violando o pacto fundador do país. Em seguida, contudo, explicou que o Judiciary Act of 1789, que havia expandido o acesso à Suprema Corte, violava os delineamentos originalmente estabelecidos sobre o tema pela Constituição, por essa razão, Marbury não poderia ter recorrido diretamente à corte através do writ of mandamus.

Como explicam Tom Ginsburg e Mila Versteeg,[1] a ideia de constitutional review já existia antes mesmo da formação do governo federal dos Estados Unidos. Já no início de 1780, constituições das colônias autorizavam juízes a deixar de aplicar leis que fossem incompatíveis com aqueles documentos. Hamilton, no mesmo “Federalista 78”, já justificava a prática. Ainda assim, a prática não fazia parte das práticas constitucionais estabelecidas no nível federal,[2] o que demonstra, por parte de Marshall, não só um olhar astuto, mas um grau elevado de ousadia.

Cortes, portanto, antes de pensar em garantir os imperativos e as promessas constitucionais, buscam preservar sua existência na estrutura constitucional, condição essencial para que possam desenvolver suas funções.

Suprema consensualidade explicada (em parte)

Nos últimos anos, vimos uma nova atribuição ser reivindicada pelo Supremo Tribunal Federal: a competência para realizar conciliações em processos – ainda que inexistam partes ou que digam respeito a direitos indisponíveis. Essa não foi a primeira vez – e arrisco dizer que não será a última – em que o tribunal se autoatribui novos poderes.

Aconteceu com a capacidade de declarar a inconstitucionalidade de emendas constitucionais e aconteceu também com o exercício do que a literatura acadêmica chama de controle judicial semiprocedimental,[3] para citar apenas dois casos.

O reconhecimento ou a reivindicação de novas atribuições não é, entretanto, um problema por si só. Quando bem fundamentadas em elementos normativos e, sobretudo, dogmáticos, essas atribuições acabam por lidar com problemas não antecipados pelo legislador.

Tomemos a existência de cláusulas pétreas como justificadoras do poder da corte de invalidar emendas constitucionais que violam seu conteúdo. Interpretações contrárias a essa prática, apesar de existirem, precisam enfrentar uma nova tradição de supremacia da Constituição além de mais de meio século de produções acadêmicas sobre a centralidade dos direitos fundamentais.

Não é o caso das conciliações em processos de controle concentrado.

Um primeiro argumento invocado para sustentar esse poder é de natureza pragmático-realista: o instrumento traz bons resultados, então deve ser estimulado. Apesar da eficiência traduzir um dos imperativos do Estado de maneira holística, esse raciocínio esbarra em uma ideia que caminha para os 300 anos de idade. A Guilhotina de Hume, o maior dos empiristas, explica que não se pode derivar um dever ser de um ser, porque inexiste um conectivo lógico que permita tal inferência. Dessa forma, o fato de audiências de conciliação trazerem bons resultados não é um argumento capaz de, por si só, justificar a adoção dessa prática.

Outro argumento utilizado para fundamentar essa nova competência é a ausência de dispositivo constitucional expresso em sentido contrário. A isso se somam interpretações de valores constitucionais abstratos, a exemplo da “solução pacífica das controvérsias” presente no preâmbulo da CF/88, e do dever do magistrado de estimular a solução consensual de conflitos constante do CPC. Defensores dessa tese enxergam nos acordos um “método adequado à solução de conflitos e a pacificação social”.[4]

Esse argumento, contudo, esbarra na função contramajoritária que uma Corte Constitucional deve desempenhar. O trabalho precípuo do Supremo é, sobre todas as coisas, a guarda da Constituição, a pacificação social é bem-vinda, mas não pode prevalecer sobre a proteção do nosso pacto fundador.

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Há um outro obstáculo que é, a meu ver, intransponível: a impossibilidade de tais acordos em controle concentrado em decorrência da violação de pressupostos lógicos do processo. Do ponto de vista subjetivo, como realizar uma conciliação em um processo em que não há partes, somente interessados? Do ponto de vista jurídico, como conciliar um caso sobre a correta interpretação da lei e que envolve direitos indisponíveis? Do ponto de vista representativo, com que mandato as pessoas envolvidas falam por todos os atingidos quando inexistem partes formalmente estabelecidas?

Marbury v. Madison não explica a razão de ser de todas as conciliações feitas pelo Supremo, mas a lógica usada por Marshall para preservar a autoridade da corte no longo prazo também pode ser vista em casos como o do marco temporal. Como em Marbury, o Supremo calibra remédios para preservar sua autoridade diante do risco de inefetividade; a diferença é que, no controle concentrado, não se “concilia” a Constituição – discute-se, quando muito, seu modo de execução.

Nesse contexto, o STF garante a manutenção de sua autoridade, assegurando sua capacidade de continuar efetivando os direitos constitucionais. Só não se pode admitir que preço a pagar por isso seja permitir que o lobo e a ovelha discutam que partes do carneiro serão servidas no jantar.

*

Agradeço a Miguel Godoy pelas conversas que sempre ajudaram a aperfeiçoar alguns dos argumentos neste texto; e aos membros do Ulisses: Grupo de Estudos Constitucionais pelas instigantes trocas que me fizeram escrever estas reflexões

[1] Tom Ginsburg & Mila Versteeg, Why Do Countries Adopt Constitutional Review?, 30 J.L. Econ. & Org. 587, (2014).

[2] Mark Tushnet, Constitutional Hardball, 37 J. Marshall L. Rev. 523 (2004).

[3] Salvo melhor juízo, a ideia foi primeiro abordada em território nacional em artigo escrito por Roberta Simões Nascimento e Natasha Salinas aqui no JOTAVer NASCIMENTO, Roberta Simões; SALINAS, Natasha. Piso da enfermagem: legisladores contadores?, JOTA, 14 set. 2022. Disponível em: https://www.jota.info/opiniao-e-analise/colunas/defensor-legis/piso-salarial-da-enfermagem-legisladores-contadores.

[4] GOMES, Juan Carlos; DIMATEO, Michele do Nascimento. A hora da conciliação: Por que o acordo nas ações de planos econômicos é a solução inteligente para todos?, Migalhas, 14 ago. 2025. Disponível em: https://www.migalhas.com.br/depeso/436790/a-hora-da-conciliacao-acordo-nos-planos-economicos-e-solucao

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