O vídeo publicado pelo youtuber Felca sobre a “adultização” de crianças em plataformas digitais tem provocado forte debate na sociedade que dialoga diretamente com investigações criminológicas contemporâneas: em que medida a internet, impulsionada por algoritmos de recomendação e pela lógica de monetização, se tornou um território virtual que favorece práticas criminais e potencializa comportamentos desviantes?
Longe de ser apenas um espaço de interação, o ciberespaço configura-se como um ambiente social estruturado (uma cidade virtual), onde vítimas potenciais e ofensores motivados convergem, muitas vezes em ausência controle eficazes (Cohen e Felson, 1979; Figueiredo e Llinares, 2024).
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A adultização, entendida como a exposição precoce de crianças a papéis, estéticas e experiências do universo adulto, ganha novos contornos quando mediada pelas plataformas digitais.
O caso narrado no vídeo de Felca é emblemático: o algoritmo, projetado para maximizar engajamento e tempo de tela, cria “atalhos” e “rotas” que não apenas aproximam conteúdos afins, mas também constroem verdadeiros “bairros virtuais”, onde ofensores e vítimas se cruzam no contexto das plataformas digitais.
Essa metáfora urbana remete diretamente à tradição da Escola de Chicago, em especial às contribuições de Park e Burgess (1925) e Shaw e McKay (1942), que viam a cidade como um mosaico de “áreas naturais”, cada uma com normas, valores e níveis distintos de controle social. Hoje, é possível observar dinâmicas semelhantes no ambiente digital, em que comunidades online se organizam em função de fluxos de interação mediados por algoritmos (Kleineberg & Boguñá, 2015).
Nesse sentido, as plataformas podem ser compreendidas como “campos digitais” que moldam disposições e práticas dos usuários, muitas vezes reforçando padrões de ódio e exclusão por meio de feedback algorítmico (Liu, 2024). Assim, mais do que um simples elo entre conteúdo e usuário, o algoritmo pode se tornar um catalisador nos ecossistemas criminosos, especialmente quando promove a circulação de vídeos e imagens de crianças em contextos de exploração.
O fenômeno da adultização expõe também a centralidade da teoria da vitimização para compreender os riscos do ambiente digital. Crianças são vítimas duplamente vulneráveis: por sua idade e dependência dos adultos e, em muitos casos, porque aqueles que deveriam protegê-las assumem o papel de agressores, explorando suas fragilidades.
Essa inversão do modelo clássico de proteção expõe o colapso do primeiro círculo de defesa da criança e evidencia um processo de revitimização: a exposição inicial gera não apenas danos psicológicos duradouros, mas também abre portas para assédios contínuos e exploração comercial ao longo da trajetória de vida de grande parte dessas vítimas (Leukfeldt & Holt, 2020).
Esse quadro pode ser interpretado à luz da teoria da desorganização social e de sua reformulação mais recente, a teoria da eficácia coletiva (Sampson, Raudenbush & Earls, 1997). Em ambientes marcados por anonimato, alta rotatividade de membros e heterogeneidade de valores, como as redes sociais digitais, a ausência de normas compartilhadas e de mecanismos de controle e confiança mútua favorece a emergência de espaços de desorganização social digital.
Por outro lado, comunidades virtuais também podem desenvolver formas de eficácia coletiva online, organizando-se para denunciar abusos e excluir ofensores, embora essa mesma lógica possa ser instrumentalizada em fóruns hackers ou grupos extremistas para reforçar práticas ilícitas (Dupont, 2020).
O fenômeno da adultização, portanto, deve ser compreendido como sintoma de uma ecologia digital em crise, onde algoritmos estruturam trajetórias e ampliam oportunidades criminosas, enquanto instituições sociais falham em proteger populações vulneráveis.
Se, no passado, a ecologia urbana de Chicago mostrou como pobreza, mobilidade residencial e heterogeneidade étnica, traduzidos no conceito de desorganização social, poderiam corroer laços comunitários e enfraquecer o controle social, hoje vemos como a arquitetura algorítmica das plataformas reproduz essa lógica, criando áreas de risco no território virtual.
Mais do que uma crítica moral à exposição infantil, a adultização é um retrato sociológico de como a tecnologia reorganiza campos sociais e redefine fronteiras entre proteção e exploração. Incorporar esse fenômeno às teorias criminológicas clássicas não apenas atualiza suas categorias para o século 21, mas também revela a urgência de políticas públicas que combinem regulação algorítmica, campanhas de educação digital e fortalecimento dos mecanismos institucionais de proteção.
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O surgimento de novos delitos ou de novas formas de cometimento de delitos já existentes, que tem sua danosidade impulsionada pelos meios digitais, já encontra discussões em sede jurídica e legislativa. Algumas propostas de lei têm repercutido nesse cenário nos últimos anos.
Pode-se citar, por exemplo, o PL 2630/2020. O projeto buscava a regulação e a responsabilização das big techs e ganhou ampla repercussão no contexto das fake news, sendo alvo de intenso lobby visando a seu desmembramento (FALAVIGNO & KUHN, 2024).
Atualmente, o PL 853/2024 visa a incluir no rol dos crimes hediondos delitos relacionados à exploração sexual de crianças e adolescentes, na esteira da discussão gerada por Felca.
A primeira proposta parece enfrentar mais resistência exatamente porque alcança agentes que dificilmente são responsabilizados no contexto neoliberal, enquanto a segunda utiliza o discurso já recorrente e ineficaz de nosso sistema jurídico que trata questões penais de forma mais individuais que coletivas, afastando-se da concepção de uma política criminal como política pública.
Repensar o sistema de responsabilização penal nesse novo contexto exige propostas que compreendam amplamente o funcionamento desse espaço virtual. Como mostram as evidências recentes, o ciberespaço não é apenas um reflexo da sociedade: ele é um território autônomo, com ecologias próprias, onde a prevenção ao crime e à violência exige novas lentes analíticas e estratégias de ação.
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Esta pesquisa contou com o apoio da Fundação de Amparo à Pesquisa do Estado de Minas Gerais (Fapemig), processo APQ-02174-25
Cohen, L., & Felson, M. (1979). Social change and crime rate trends: A routine activity approach. American Sociological Review, 44(4), 588–608.
Dupont, B. (2020). The ecology of cybercrime. In R. Leukfeldt & T. Holt (Eds.), The Human Factor of Cybercrime (pp. 389–408).
Falavigno, C. F. ; Kuhn, L. L (2024). Lobbying en el proyecto de ley sobre noticias falsas un análisis del proceso legislativo en la Cámara de Diputados y las posibles repercusiones de las posiciones de los grupos de presión. Critica Penal y Poder. https://doi.org/10.1344/cpyp.2024.27.45302, v. 27.
Figueiredo, Braulio; Llinares, Fernando Miro. Digital life and crime trends in the global south: on the impact of increased Internet use on opportunities for crime. Revista Española de Investigación Criminológica, [S. l.], v. 22, n. 2, p. e863, 2024. DOI: 10.46381/reic.v22i2.863. Disponível em: https://reic.criminologia.net/index.php/journal/article/view/863.
Kleineberg, K. K., & Boguñá, M. (2015). Digital ecology: Coexistence and domination among interacting networks. Scientific Reports, 5, 10268.
Leukfeldt, R., & Holt, T. J. (2020). The Human Factor of Cybercrime.
Liu, S. X. (2024). The Digital Ecology of Hate: Technology, Policy and Online Fields. CIGI – Digital Policy Hub.
Park, R. E., & Burgess, E. W. (1925). The City. University of Chicago Press.
Sampson, R. J., Raudenbush, S. W., & Earls, F. (1997). Neighborhoods and violent crime: A multilevel study of collective efficacy. Science, 277(5328), 918–924.
Shaw, C. R., & McKay, H. D. (1942). Juvenile Delinquency and Urban Areas. University of Chicago Press.