STF e conciliação: é possível haver acordos concretos no controle abstrato?

Na sessão do último dia 28 de agosto, o ministro Luís Roberto Barroso anunciou a publicação, pelo STF, do Manual do Núcleo de Solução Consensual de Conflito (Nusol). O ministro Barroso foi enfático ao dizer que o Nusol é algo inovador e que, até onde se tem notícia, o STF é a única Corte Constitucional a contar com uma unidade especializada em consensualidade, com resultados expressivos, com soluções rápidas, adequadas e participativas.

Em seguida, o ministro Gilmar Mendes também declarou que o Nusol é um avanço, com casos exitosos definidos nesse espaço pelo STF – como o de Mariana ou o acordo sobre o ICMS entre os estados.

O ministro Dias Toffoli, então, pediu desculpas ao ministro Barroso, mas fez questão de registrar que isso que se chama Nusol hoje foi um órgão criado por ele, em sua gestão como presidente do Supremo, com outro nome – Centro de Mediação e Conciliação (CMC) –, e que o ministro Barroso apenas mudou o nome e reformou o órgão. O ministro Gilmar, então, tratou de colocar panos quentes para encerrar a discussão que parecia se iniciar.

Conheça o JOTA PRO Poder, plataforma de monitoramento que oferece transparência e previsibilidade para empresas

O Manual do Nusol sai em boa hora. Mas talvez seja cedo demais para se brigar pela paternidade desse novo órgão do STF. Se a conciliação no Supremo não é algo novo, não é algo errado e não é algo que deva por si só ser rechaçado, criar um órgão só para isso e com competência para atuar em qualquer processo pode ser uma ampliação perigosa das fronteiras do STF.

Essa aposta do STF nas conciliações, com celebrações antecipadas e já qualificadas pelos próprios ministros como “inovadoras”, “exitosas”, “expressivas”, “adequadas”, “participativas”, deveria ser motivo de comemoração do cidadão comum; afinal, quem prefere litigar a chegar a um bom acordo? Acordos são sempre melhores, não é mesmo? Sim, sem dúvidas. Mas sempre? Em qualquer caso? Em qualquer grau de jurisdição? Mesmo no Supremo? Em qualquer classe processual de competência do STF?

Talvez seja melhor dar um passo atrás e investigar com a humildade de quem pergunta e o rigor de quem investiga. Não porque não possamos ser inovadores e inéditos em nossas soluções jurídicas e institucionais. Mas porque esse modo de exercício da competência do Supremo na guarda da Constituição parece incidir em um equívoco normativo e institucional que ameaça sua legitimidade.

O Nusol é, então, algo a ser investigado, com a confiança de quem acredita em uma jurisdição constitucional radicalmente democrática, mas normativamente rigorosa. Se a publicação de um manual vem em boa hora, anunciá-lo endossando as conciliações todas realizadas talvez seja cedo demais.

Até porque boa parte delas nem sequer é consensual mesmo – vide o caso do marco temporal, do IOF e dos descontos indevidos do INSS. O caso do conflito entre os estados por causa do ICMS, mencionado pelo ministro Gilmar, é sim um exemplo virtuoso. Quando o STF funciona como Tribunal da Federação, conciliar divergências e conflitos entre os estados pode ser mesmo a melhor via.

Mas, e no controle abstrato de constitucionalidade? É possível conciliar? O tema está em aberto e em desenvolvimento. Mas, até aqui, entendemos que não é possível. Tratamos dessas perguntas e pontos em outros trabalhos[1] e artigos (você pode lê-los aqui, ou aqui e aqui também).

Neste artigo específico, interessa-nos enfrentar outro argumento que tem sido posto – o de que, nas conciliações levadas a cabo no controle abstrato de constitucionalidade, o STF não negocia a constitucionalidade das leis, mas apenas os efeitos concretos gerados pela aplicação da norma impugnada. Ou seja, o STF não disporia sobre a constitucionalidade ou inconstitucionalidade do objeto da ADI ou da ADC, mas apenas sobre os efeitos concretos da lei impugnada, promovendo acordos concretos no controle abstrato.

Os fundamentos utilizados para esse argumento parecem críveis. Eles se baseiam na previsão geral do CPC quanto à possibilidade de conciliação e buscam, de boa-fé, resolver problemas concretos advindos das leis e atos normativos impugnados e tidos por inconstitucionais pelos proponentes das ações do controle abstrato.

Lendo os autores e seus argumentos sob a melhor luz, com toda a potencialidade positiva de suas justificativas pelos acordos (e é claro que pode haver acordos que cheguem a bom resultado, mesmo no controle abstrato, e já temos exemplos exitosos disso), há, todavia, um erro de fundamentação anterior.

A defesa dos acordos sobre os efeitos das leis, ou dos acordos concretos no controle abstrato, confunde o lócus de exercício adequado da competência constitucional do STF de guarda da Constituição.

Não é possível conciliar sobre efeitos quando a própria lei não pode ser reputada como válida. O juízo de validade precede o da eficácia, como já afirmado por Kelsen ao indicar que “a lei recentemente promulgada ‘vale’, antes ainda de poder ser eficaz”[2]. Já assentou o professor Clèmerson Merlin Clève que, na fiscalização abstrata de constitucionalidade, a ADI se presta para a defesa da Constituição, e os legitimados para a propositura da ADI não possuem qualquer poder de disposição[3].

Os defensores da conciliação têm indicado que os acordos concretos pertenceriam apenas ao plano da eficácia. No entanto, em nossa visão, é um equívoco teórico supor que bastaria admitir a possibilidade de composição para que ela fosse automaticamente legítima. Antes de qualquer coisa, é preciso averiguar se a lei que serve de fundamento é válida perante a Constituição.

A relação entre validade e eficácia não é simétrica: ainda que se saiba que não é incomum que normas inválidas – inconstitucionais– sejam temporariamente eficazes (durante o período que antecede a sua declaração de constitucionalidade, ou em caso de modulação de efeitos pela maioria absoluta do tribunal), só é possível cogitar de efeitos legitimamente produzidos a partir da pressuposição de uma norma válida.

Quando se afirma que basta negociar sobre “efeitos concretos” da lei impugnada, ignora-se que tais efeitos não pairam no ar, mas decorrem justamente da vigência de um ato normativo. Se a norma não se sustenta no plano da validade, não pode produzir (não de forma legítima) efeitos aptos a serem objeto de composição, dado que a eficácia jurídica não se autonomiza a ponto de se tornar independente da validade normativa.

Esse ponto é especialmente relevante no controle abstrato de constitucionalidade. Nessa via processual, não se está diante de partes que possam dispor de direitos subjetivos (há muito se sabe que a ação direta não visa à proteção de posições jurídicas subjetivas), mas de legitimados que atuam em nome da coletividade para a defesa objetiva da Constituição. O espaço de autonomia, que serve de pressuposto à conciliação em litígios ordinários, simplesmente não existe no plano do controle abstrato.

Assim, quando se fala em “acordos sobre efeitos”, cria-se uma ficção perigosa: a de que se poderia conciliar sobre a eficácia jurídica sem tocar na essência da validade constitucional da lei. Trata-se, porém, de uma ilusão conceitual, pois a eficácia da lei não poderia (ou não deveria) ser destacada da avaliação quanto à sua validade, e o STF não pode transigir sobre aquilo que lhe cabe afirmar ou negar de modo definitivo — a compatibilidade do ato normativo com a Constituição. Ao se fazer essa cisão, acaba-se por deslocar o problema do plano da normatividade para o plano da conveniência, o que distorce a natureza do processo constitucional.

A tentativa de legitimar acordos nesse espaço, fundada na distinção entre validade e eficácia, representa uma inversão da lógica constitucional. A jurisdição constitucional não se presta a abrir arenas de barganha, mas a preservar a supremacia normativa da Constituição. Se a corte admite que legitimados e interessados componham entre si sobre os efeitos de uma lei ainda sob exame, eximindo-se de seu papel de julgador sobre a validade do ato, desloca-se a função do STF da guarda da Constituição para a gestão pragmática de conflitos.

Isso enfraquece a normatividade constitucional, relativiza a ideia de supremacia da Constituição e transforma o controle abstrato em espaço de transações políticas. Em última instância, a lógica dos acordos concretos no controle abstrato ameaça corroer a própria razão de ser do instituto: a proteção objetiva da Constituição, que não pode ser objeto de disposição consensual.

Informações direto ao ponto sobre o que realmente importa: assine gratuitamente a JOTA Principal, a nova newsletter do JOTA

A consequência dessa construção é grave. Admitir acordos sobre efeitos em sede de controle abstrato equivale a relativizar a supremacia da Constituição, convertendo a jurisdição constitucional em espaço de negociação pragmática. A lógica subjacente ao controle abstrato é a da defesa intransigente da Constituição como norma suprema, e não a da composição entre interesses contrapostos.

O STF, ao assumir o papel de guardião da Constituição, não pode ceder à tentação de transformar o juízo de validade em questão disponível, sujeita a transações políticas. Se a validade é (ou deve ser) condição da eficácia, não pode ser relegada a segundo plano em nome da busca de soluções práticas. Fazer isso significaria negar o próprio fundamento teórico que legitima a jurisdição constitucional.

[1] CHUEIRI, Vera Karam de.; GODOY, Miguel Gualano de.; FONÇATTI, Gabriel Martins. Conciliações no STF para além da normatividade: entendendo a constituição negocial; mobilizando a constituição radical. In.: Revista Direito e Praxis, v. 16, n.02, 2025. Disponível em: https://www.scielo.br/j/rdp/a/6d8DFkSTF5wxXbBHZTmsMLD/?lang=pt. Vide ainda: GODOY, Miguel Gualano de. STF e Processo Constitucional: caminhos possíveis entre a ministrocracia e o Plenário mudo. Belo Horizonte: Ed. Arraes, 2021.

[2] KELSEN, Hans. Teoria Pura do Direito: Introdução à Problemática Científica do Direito, 4ª ed. São Paulo: Revista dos Tribunais, 2006, p. 102.

[3] CLÈVE, Clèmerson Merlin. A fiscalização abstrata da constitucionalidade no direito brasileiro, 3ª ed. São Paulo: Revista dos Tribunais, pg. 167 e seguintes.

Generated by Feedzy