A zona cinzenta dos deveres adicionais das plataformas digitais

Este é o último artigo da série sobre a tese fixada pelo Supremo Tribunal Federal, em 17 de junho deste ano, ao apreciar os Temas 533 e 987 da repercussão geral e concluir pela inconstitucionalidade parcial progressiva do art. 19 do Marco Civil da Internet.

Após abordar os novos regimes de responsabilidade civil e os reflexos no direito do consumidor, autoral e penal, é hora de analisar os “deveres adicionais” criados pelo STF para plataformas digitais com atuação no Brasil.

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Este artigo foi elaborado a partir da tese disponibilizada pelo STF, pois o acórdão ainda não estava publicado. No documento elaborado pelo tribunal, intitulado “Informação à Sociedade”, o STF foi bastante claro ao afirmar que a decisão supera a discussão sobre a constitucionalidade do artigo 19 e adentra uma seara verdadeiramente legislativa.

A leitura do material disponibilizado pelo STF revela que os “deveres adicionais” têm inspiração em normas estrangeiras, especialmente o Digital Services Act (DSA), editado na União Europeia. No entanto, há pontos dúbios e lacunas que precisarão ser supridas pela legislação a ser editada.

Lacunas deixadas pela decisão do STF

A tese do STF incorpora ao ordenamento jurídico brasileiro uma série de deveres que não existiam no Marco Civil da Internet. Esses deveres reforçam o que se entende por accountability das plataformas digitais, por meio de mecanismos de devido processo legal no âmbito administrativo, medidas de transparência e representação para aprimorar o diálogo e as respostas a demandas da sociedade civil e autoridades brasileiras.

Contudo, a efetiva implementação desses deveres é dúbia, pois a tese publicada contém lacunas relevantes, tendo o STF, inclusive, provocado o Poder Legislativo a regular a matéria.

Âmbito de aplicação

Um ponto primordial que, em nossa opinião, deverá ser melhor definido é o âmbito de aplicação dessas novas regras. Hoje, ao que se sabe, não há distinção sobre quais plataformas estarão sujeitas aos deveres adicionais. E a implementação dessas novas regras, por óbvio, envolverá um investimento massivo – impondo o mesmo ônus para as plataformas independentemente de seu porte, do número de usuários e até mesmo do impacto que elas têm na vida da população.

Essa diferenciação nos parece imprescindível, especialmente quanto ao cumprimento do dever de cuidado e diligência. A decisão do STF acaba por uniformizar o tratamento para todo e qualquer provedor de aplicação, sem distinguir o tipo de serviço.

Nesse sentido, é interessante analisar as regras do DSA, que cria diferentes obrigações para plataformas a depender do número de usuários cadastrados e do tipo de serviço – como sistemas de auditoria independente e medidas para mitigação de riscos. Uma sistemática estratificada evita o risco de estrangulamento de empresas menores pela necessidade de investimentos com obrigações destinadas a um determinado serviço online.

Relatórios de transparência

A decisão do STF incluiu a obrigação de publicação semestral de relatórios de transparência, mas a tese disponibilizada não especificou as regras para essa publicação, nem que tipo de dado deve ser incluído. Quando analisado o DSA, por exemplo, a publicação de relatórios sobre a moderação de conteúdo deverá ser realizada anualmente e há, no artigo 15 do DSA, o detalhamento de quais informações são imprescindíveis nesses materiais.

A tese também não esclareceu quem seriam as autoridades responsáveis pela análise dos relatórios, a fim de confirmar o cumprimento das regras introduzidas pela decisão. Também não há clareza sobre as consequências de eventual descumprimento desse dever adicional. Essas lacunas que deverão ser preenchidas por uma norma estruturada, que deverá, assim como o DSA, especificar quem são os agentes obrigados a cumprir as regras do jogo.

No espírito de criação de uma verdadeira regulação, vimos a aprovação do PL 2628/2022, o chamado ECA Digital, que aguarda sanção presidencial.

No que tange aos relatórios, o ECA Digital, além de trazer obrigações de elaboração de relatórios semestrais apenas para empresas com mais de um milhão de usuários crianças e adolescentes, estabelece as informações mínimas que os relatórios a serem publicados deverão conter. Determina-se a inclusão de informações como os canais de denúncia, a quantidade de denúncia recebida e de moderação de conteúdo realizada, dentre outros.

Representação legal no Brasil – e uma sede?

Outro ponto dúbio na tese disponibilizada após a conclusão do tribunal pleno diz respeito à representação legal. Decisões recentes da 1ª Turma do STF já vinham demandando que plataformas digitais nomeassem representante legal no Brasil. Contudo, a tese parece ir além ao referir a necessidade de se manter uma “sede” no país.

A obrigação pode ter sido extraída dos artigos 86 e 171, § 1º, da Lei de Telecomunicações (Lei Federal 9.472/1997), que vinham sendo mencionados em decisões da 1ª Turma em casos envolvendo redes sociais. O voto inicialmente apresentado pelo ministro Dias Toffoli não exigia sede, apenas representante legal, e não fazia referência à Lei de Telecomunicações.

O tema é relevante, porque plataformas digitais não são propriamente serviços de telecomunicação e, por isso, não estariam sujeitas a essa regulação. Na Alemanha, por exemplo, o Telemedia Act de 2007 estabeleceu que a regulação se aplicaria a provedores de serviços de comunicações eletrônicas, como websites, serviços de e-mail e vídeo sob demanda e serviços de acesso à internet. A descrição da lei já indica que o termo “Telemedia” não inclui serviços de telecomunicação e radiofusão – que já são regulados por leis específicas.

Claro, talvez faça sentido estender a regulação específica de telecomunicações para alguns serviços de mídia. Porém, faz sentido ampliar a regulação existente de forma indistinta e sem nenhuma discussão sobre o que está dentro de “telecomunicações” ou não?

Outro ponto é que, de acordo com a tese publicada, o representante legal deve ser “necessariamente pessoa jurídica com sede no país”. Essa exigência também chama a atenção, pois parece impedir a nomeação de uma pessoa física como representante legal, algo que se admitia tanto no Código Civil (art. 1.134, § 1º, inciso V) quanto na própria Lei de Telecomunicações já referida.

O PL 2628/2022, recentemente aprovado pela Câmara e pelo Senado, prevê a obrigatoriedade de nomeação de representante legal no Brasil, mas não exige que esse representante seja uma pessoa jurídica, nem que se constitua sede em território nacional. Este de fato parece ser o melhor caminho.

O apelo ao legislador

O resultado do julgamento do STF foi uma legislação em formato de precedente. O art. 19 do MCI segue disponível no Diário Oficial de Justiça com a redação original e as inúmeras nuances criadas pela Suprema Corte só têm detalhamento até agora em um resumo de tese que aguarda um acórdão final. A solução, inevitavelmente, está nas mãos do Legislativo.

O primeiro passo parece ter sido dado com a aprovação urgente do PL 2628, que aguarda sanção presidencial. Se sancionada, a Lei suprirá lacunas importantes abordadas ao longo do texto, mas as obrigações lá introduzidas também contribuíram para a complexidade da regulação da internet no Brasil.

Ainda assim, o PL 2628 tem aplicação específica para a promoção da segurança de crianças e adolescentes. Ele não é suficiente para resolver todas as preocupações mencionadas no julgamento do STF e melhorias já constatadas como necessárias para o Marco Civil da Internet.

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Não por outro motivo, espera-se que novos projetos de lei sejam discutidos no parlamento para consolidar a nova realidade regulatória do Brasil para a internet. E um dos desafios nessa caminhada será, inevitavelmente, conciliar múltiplos interesses e problemas que demandam respostas estatais em um framework regulatório coerente.

Uma coisa é certa: será necessário o diálogo aberto e esclarecido entre sociedade, governo e empresas afetadas. Caso contrário, há risco de serem criadas regras sem efetiva força vinculante, contraditórias ou sobrepostas, que podem dificultar – ou mesmo impedir – a efetividade das soluções encontradas na via judicial e legislativa. Para além, é claro, do risco de afugentar plataformas com interesse em atuar no Brasil.

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