Músicas criadas por IA: a nova fronteira dos direitos autorais

Um dos principais debates trazidos pela inteligência artificial generativa diz respeito aos direitos autorais. Há, como se sabe, uma intensa discussão sobre o uso de obras intelectuais por ferramentas de IA, sem a necessária autorização prévia de seus autores.[1]

O problema, contudo, não está apenas no input (dados de que a IA se vale), mas também no output (resultados que a IA produz). Uma imagem produzida por IA generativa está protegida por direitos autorais ou, ao contrário, pode ser livremente utilizada por qualquer pessoa?

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Os poucos tribunais do planeta que já se posicionaram sobre isso vinham adotando uma resposta negativa, rejeitando a incidência de direitos autorais sobre as obras geradas por IA, ao argumento de que os direitos autorais foram concebidos para incentivar a produção intelectual humana. A IA nem sequer precisaria deste incentivo, pois produz obras atendendo a um comando, de maneira que os direitos autorais não teriam, aí, utilidade e cabimento.

No mês passado, uma decisão da 2ª Câmara de Direito Civil do Tribunal de Justiça de Santa Catarina (TJSC) reacendeu a polêmica, particularmente no campo da música. O parque de diversões Spitz Aventura, localizado na cidade de Pomerode, havia ingressado com demanda judicial contra o Escritório Central de Arrecadação e Distribuição (Ecad) para se eximir do pagamento da taxa por execução de músicas em ambientes públicos, sob a alegação de que a trilha sonora utilizada no parque era produzida exclusivamente por inteligência artificial generativa.[2]

Como se sabe, a veiculação de músicas como trilha sonora em ambientes públicos não tem nada de trivial. Há um sofisticado arcabouço jurídico por trás da sonorização relaxante da chamada música-ambiente. A execução das músicas exige que o estabelecimento comercial pague uma taxa ao Ecad, que é a sociedade civil responsável por distribuir os valores arrecadados aos titulares dos direitos autorais das obras musicais.[3]

O parque catarinense Spitz Aventura alegou, porém, que, no seu caso específico, não haveria titulares de direitos autorais a quem distribuir os valores eventualmente pagos ao Ecad. O próprio parque afirmou ter utilizado a ferramenta de IA denominada Suno para desenvolver a trilha sonora que embala o seu divertido ambiente. Assim, na visão dos representantes do parque, não faria qualquer sentido o pagamento de uma taxa, na medida em que não há beneficiários finais destes valores.

Registre-se que o uso de IA para criar músicas não é nenhuma novidade. Em 2023, a canção “Heart on my sleeve”, produzida por meio de IA, tornou-se viral, amealhando milhões de acessos no TikTok e no Spotify. A ferramenta teria sido treinada com as vozes dos cantores Drake e The Weeknd, mimetizando seus cantos.[4] O sucesso de “Heart on my sleeve” ajudou a chamar atenção para a polêmica relativa à incidência de direitos autorais sobre obras produzidas por IA.

A maior parte dos países alude, em sua legislação, à necessidade de criação “humana” para a atração da proteção autoral. No Brasil, a Lei 9.610/1998 afirma expressamente, em seu artigo 11, que “autor” é a “pessoa física” que criou a obra intelectual.[5] Naturalmente, o uso de tecnologia pelo próprio autor no seu processo criativo não é vedado.

No caso de obras criadas por IA, é muito importante verificar o verdadeiro grau de autonomia que a IA apresenta: a obra produzida exprime um resultado imprevisível da combinação de dados realizada pela ferramenta ou expressa, ao contrário, a vontade minuciosa do desenvolvedor? Neste último caso, pode-se estar diante de uma obra intelectual protegida por direitos autorais porque criada por um ser humano, ainda que com a mediação da tecnologia.

Como já advertia José de Oliveira Ascensão, se o desenvolvedor programar certos parâmetros para obter o resultado, mas não puder prever o conteúdo em si, “é de sustentar que sobre as obras assim produzidas não recai direito de autor. Este pressupõe necessariamente a criação humana, e por isso se prolonga através de um direito moral ou pessoal de autor.”[6]

No caso do Spitz Aventura, o TJSC concluiu, contudo, que “a tese de que composições geradas por inteligência artificial estariam automaticamente isentas de proteção autoral carece de respaldo legal. A ausência de um autor humano identificável não implica, por si só, a inexistência de direitos autorais ou de obrigações decorrentes da utilização pública dessas obras”.

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A decisão constitui um contraponto à tese que vinha prevalecendo em relação à proteção autoral de obras intelectuais produzidas por IA generativa. A chave de leitura do acórdão pode estar, todavia, naquele aspecto que se destacou ao início deste texto: a IA generativa, afinal, cria a música com base em quê? Quais dados são utilizados para produzir a sua própria trilha sonora? Se tais dados forem, eles próprios, obras intelectuais já protegidas, estaremos diante de uma nova música realmente original?

Na visão da corte catarinense, este debate “se torna ainda mais relevante diante da possibilidade de que tais criações derivem, mesmo que de forma indireta, de obras preexistentes protegidas, o que pode configurar violação aos direitos dos titulares originários.[7]

Em que pese o modismo tentador das sintéticas expressões inglesas, a questão do output talvez não possa realmente ser examinada de modo desvinculado da questão do input. Nem é ideal que o tema seja tratado com base em uma análise casuística. É preciso ter uma abordagem uniforme sobre as novas criações da IA generativa, e não empurrar para o Judiciário a missão de decidir, caso a caso, se incidem ou não direitos autorais, bem como todos os seus corolários. Uma coisa é certa: a aventura da IA está apenas começando e os direitos autorais já estão sendo chamados a ampliar ou proteger suas tradicionais fronteiras.

[1] Para mais informações, seja consentido remeter a Anderson Schreiber, “Inteligência artificial: uma devoradora de direitos autorais?”, in O Globo, 11.4.2025.

[2]ECAD pode cobrar por música feita por IA? Decisão inédita diz que sim” (Medium, 27.8.2025).

[3] Lei no 9.610/1998, art. 99: “A arrecadação e distribuição dos direitos relativos à execução pública de obras musicais e literomusicais e de fonogramas será feita por meio das associações de gestão coletiva criadas para este fim por seus titulares, as quais deverão unificar a cobrança em um único escritório central para arrecadação e distribuição, que funcionará como ente arrecadador com personalidade jurídica própria e observará os §§ 1º a 12 do art. 98 e os arts. 98-A, 98-B, 98-C, 99-B, 100, 100-A e 100-B”.

[4]AI-generated Drake and The Weeknd song goes viral” (BBC, 17.4.2023).

[5] Lei no 9.610/1998, art. 11: “Autor é a pessoa física criadora de obra literária, artística ou científica.  Parágrafo único. A proteção concedida ao autor poderá aplicar-se às pessoas jurídicas nos casos previstos nesta Lei”.

[6] José de Oliveira Ascensão, Direito Autoral, Rio de Janeiro: Renovar, 1997, pp. 663-664.

[7] TJSC, 2ª Câmara de Direito Civil, Agravo de Instrumento no 5032376-37.2025.8.24.0000, Rel. João Marcos Buch, j. 31.7.2025.

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