Estamos diante de cenários políticos desprovidos de sutileza. Assistindo ao julgamento de Jair Bolsonaro e seus colaboradores na tentativa de golpe de Estado somos lembrados de como o golpismo foi farta e recorrentemente explicitado ao longo da presidência do capitão reformado. E constatamos que não há explicitude capaz de constranger lideranças políticas que ascenderam embaladas pela onda antidemocrática a abrir mão da tosca – e ameaçadora – retórica de matriz golpista.
A história demonstra que o golpismo costuma perverter princípios e valores democráticos para minar os pilares da própria democracia. E nestes tempos de naturalização de absurdos, admiradores declarados de opressores e tiranos se dizem perseguidos quando julgados de acordo com a Constituição e o devido processo legal de um Estado democrático.
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Só há devido processo – e Estado democrático de Direito – quando a defesa pode exercer suas prerrogativas. Só há democracia onde impera o amplo direito de defesa, conforme prescrito no ordenamento constitucional e legal. Isso vale para todos os investigados e acusados.
Por isso, a advocacia é uma instituição indispensável à democracia. Pela mesma razão, o maior ídolo internacional do bolsonarismo, Donald Trump, submete a advocacia ao mesmo tipo de chantagem com que tenta subjugar o Judiciário brasileiro.
Espelho quebrado
Muitos analistas veem a atuação de Trump como chefe de governo como caótica ou, no mínimo, confusa. Mas a atual presidência dos Estados Unidos mostra-se muito coerente quanto à sua orientação antidemocrática.
No final do seu primeiro mandato, entre os últimos meses de 2020 e a posse de Joe Biden, em janeiro de 2021, Trump tentou interferir na contagem de votos, questionou a lisura das eleições sem apresentar evidências de fraude, não reconheceu a vitória de Biden e fomentou a violenta invasão do Capitólio. Agora, no segundo mandato, coerentemente atua em favor de Bolsonaro, que, com dois anos de atraso, protagonizou no Brasil episódios golpistas alinhados ao exemplo trumpista.
Como aponta a revista The Economist, a impunidade do golpismo trumpista de 2020 e 2021 contrasta com o atual julgamento, pelo Supremo Tribunal Federal, da tentativa de golpe bolsonarista de 2022 e 2023. Houve notável espelhamento entre os dois líderes e movimentos de extrema direita em seus discursos e ações golpistas.
Mas comparadas as atuações das instituições americanas e brasileiras, o espelho se quebra. Lá, marcados por hesitação e lentidão, os processos contra Trump tornaram-se letra morta com seu retorno à presidência. Aqui, a aplicação tempestiva da lei evidenciou maior aptidão e resiliência institucional na defesa da ordem constitucional e da democracia.
Vontade imperial
Reconhecendo-se em seu imitador, Trump, que se apresenta como vítima de perseguição do “Estado profundo” nos EUA, é também coerente ao atacar o Judiciário brasileiro por, supostamente, perseguir Bolsonaro.
Enquanto atua internamente perseguindo (efetivamente) adversários políticos, violando a independência e impessoalidade de instituições e órgãos públicos, promovendo a manipulação de mapas eleitorais para favorecer seu partido e tentando intimidar a imprensa, Trump ataca explicitamente a soberania brasileira usando tarifas comerciais como instrumento de chantagem.
Nesse cenário, onde se dispensa até a etiqueta da hipocrisia protocolar, não falta explicitude antidemocrática. Pela ótica trumpista, lá como cá, princípios republicanos e democráticos devem se dobrar aos desejos e interesses do “grande líder” – única entidade à qual o próprio Trump e seus seguidores fanatizados atribuem soberania.
Advocacia chantageada
Desde o início do seu atual segundo mandato, Trump vem utilizando o poder estatal e a pressão econômica para abolir a autonomia das universidades e outras instituições científicas e culturais sujeitando-as à sua visão de mundo e à sua agenda político-ideológica.
Outro alvo estratégico do projeto autoritário trumpista é a advocacia.
Desde fevereiro, Trump vem alvejando, com medidas punitivas, advogados e escritórios de advocacia envolvidos na defesa de causas contrárias ao próprio presidente e à visão de mundo que pauta a agenda política, social e cultural do trumpismo.
Por meio da emissão de ordens executivas e memorandos sem precedentes na história dos Estados Unidos, o presidente atua com o flagrante objetivo de submeter o exercício da advocacia a seus interesses.
As medidas incluem limitação do acesso de firmas e profissionais a edifícios governamentais, veto ao acesso de advogados a cargos estatais, cancelamento de contratos federais com firmas de advocacia e até a punição, com o impedimento de firmarem contratos com o governo federal, a empresas que utilizem serviços advocatícios dessas firmas.
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Diante desse ataque à independência da advocacia e ao amplo direito de defesa, boa parte da comunidade advocatícia americana se dividiu. Para não arcar com prejuízos, alguns escritórios e profissionais abriram mão de causas e princípios, enquanto outros resistem e lutam para preservar a sua própria integridade e a sobrevivência de valores republicanos e democráticos sob ataque do Executivo.
Teste de estresse
Como o Brasil, portanto, a advocacia americana está sendo submetida ao abuso de poder político e econômico por parte do governo Trump. Lá como cá, a resiliência dos que resistem a esse teste de estresse e enfrentam prejuízos mantendo sua integridade e independência é reconhecida pelos que prezam a justiça e a democracia.
Nesse contexto, a defesa da democracia é missão prioritária de toda a cidadania. Para a comunidade jurídica, isso inclui tanto a defesa das prerrogativas necessárias à operação independente e constitucional do Direito, quanto o rechaço a discursos e práticas que buscam solapar os fundamentos democráticos que sustentam essas mesmas prerrogativas.