Carta pela rejeição da criação da figura do ‘devedor contumaz’

Recente operação policial na Faria Lima, envolvendo instituições financeiras alegadamente associadas ao crime organizado (Operação Carbono Oculto), foi coroada com autoridades públicas sacramentando: o crime prosperará sem a regulamentação da figura do devedor contumaz. Avanço no combate ao mercado ilícito, à concorrência desleal, modernização do aparato estatal – os benefícios proclamados são tentadores.

A nossa sociedade imperfeita agora é testada, mais uma vez, a ceder ou não ao poder, porque a alternativa seria insuficiente: sem abdicarmos de mais uma fatia de nossa liberdade, será impossível enfrentar certos males que tanto prejudicam a coletividade.

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Não poderíamos ser mais contrários a essa ideia. Resistimos à expansão do poder público e clamamos por mais e melhor debate diante do que enxergamos como perigosa concessão de juristas ao bom-mocismo inconsequente.

Ocorre que, nesse debate suicida, não se ouve a quem melhor poderia contribuir, como se assim se evitasse o constrangimento da dissonância.

Em tais matérias, o melhor jurista será sempre o advogado criminalista, pois, se o Direito tem algum propósito, consistirá fundamentalmente no da limitação do poder humano. Daí que, resiliente em meio às complexidades dos fluxos de poder, estará sempre o advogado criminalista alerta aos escorregadios caminhos do passadiço.

No entanto, não vemos estes juristas no centro das discussões, mas sim agentes públicos e representantes de entidades privadas usualmente vítimas dos crimes que se busca combater, ambos de suspeitável imparcialidade, ou, pior, advogados tributaristas a contemporizar.

Nossa incursão no mundo do Direito Penal interrompeu-se nos bancos da faculdade, então só nos resta não contemporizar.

A tributação disfuncional do Brasil convive com a organização econômica fundada na sonegação desde que se tem notícia – Santo do Pau Oco? Em oposição a tais atividades, a expropriação pelo Estado não é ciência e exige constante consideração dos fatores socioeconômicos e tecnológicos que influenciam a maior ou menor eficiência da atividade de tomar coisas de valor das pessoas.

O teste a que seremos submetidos será produto dessa tríade: de um lado, grupos extensos de pessoas que se dedicam ao refinamento de atividades criminosas, com intenção deliberada de se beneficiar da lesão a terceiros; de outro, pessoas mais ou menos bem-intencionadas sobrevivendo com dificuldades substanciais no dia a dia do sujeito tributado; e, sobrepondo-se a ambos, o Estado, com demanda retroalimentada de recursos e poder.

A aprovação pelo Senado do PLP 125/2022, para instituir o Código de Defesa dos Contribuintes e regulamentar o instituto do “devedor contumaz” (artigos 13 a 17 e disposições esparsas), coincide com os desdobramentos das operações policiais da Faria Lima e aumenta ainda mais a resistência à dissonância. Contudo, é exatamente esta que o momento exige, antes que a Câmara dos Deputados aprove a legislação.

O projeto de lei é temerário, não importa quão nobre a causa a ele associada.

Os defensores dessa regulação clamam por critérios objetivos que permitam distinguir a contumácia do mero inadimplemento, a sonegação profissional da divergência de interpretação da legislação fiscal. No entanto, o que temos são critérios objetivos tão abrangentes que excluem da peneira só os muito pequenos – criminosos ou não.

A chave está na definição da inadimplência substancial, reiterada e injustificada de tributos, a ser constatada mediante processo administrativo próprio para o enquadramento de um contribuinte como devedor contumaz.

No âmbito federal, a inadimplência substancial ocorrerá quando o contribuinte detiver ao menos quinze milhões de reais em créditos tributários “em aberto”, e quando esse valor representar montante superior ao seu patrimônio conhecido, assim entendido como o ativo informado em sua contabilidade.

A inadimplência será reiterada quando os créditos tributários permanecerem irregulares por quatro períodos de apuração sucessivos ou seis alternados, no prazo de 12 meses.

A inadimplência injustificada depende da ausência de motivos objetivos que afastem a configuração da contumácia.

Para quem lida com o Direito Tributário, o teste da hipótese deve causar alarde.

R$ 15 milhões é muito dinheiro para qualquer pessoa, mas no universo de R$ 3.796.162.000 arrecadados pela União, pelos estados, pelo Distrito Federal e pelos municípios em 2024, conforme informado pelo Tesouro Nacional, o sarrafo não é nada alto.

Vejamos o exemplo de um contribuinte de ICMS, com as seguintes premissas: alíquota média de 18%, multa de 100% no auto de infração, acrescidos de Selic anual de 13%. Cobrança de cinco anos anteriores.

Poupando-os da memória de cálculo, basta um contribuinte com faturamento anual de R$ 34 milhões divergir em relação à tributação de 3% de sua receita (R$ 900 mil), e ser autuado pela apuração dos últimos cinco anos, que terá contra si a cobrança superior a R$ 15 milhões.

Ajustadas as premissas, um contribuinte com maior faturamento anual discutirá menor proporção de tributos, e vice-versa; seja como for, chega-se com surpreendente facilidade aos mesmos R$ 15 milhões de entrada no universo do devedor contumaz.

A condição seguinte é verificar se o crédito tributário supera o patrimônio do contribuinte. No exemplo acima, isso ocorrerá facilmente em setores que exigem grandes investimentos em Capex, como indústria de transformação e infraestrutura, já que nessas atividades faz sentido o patrimônio líquido girar em torno de ou superar 50% do faturamento anual.

Assim, com faturamento de R$ 34 milhões, o crédito de R$ 15 milhões já representaria a integralidade do patrimônio líquido, enquadrando o contribuinte como devedor contumaz.

Por outro lado, em setores cujo patrimônio líquido é proporcionalmente menor em relação ao faturamento – como varejo, comércio e serviços, em que o patrimônio líquido é substancialmente menor que o faturamento anual – o mesmo resultado é atingido com empresas que faturem cerca de R$ 70 milhões, caso detenham patrimônio líquido equivalente a 25% da receita anual.

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Em resumo, a norma federal tem alcance potencialmente universal, podendo enquadrar empresas de diferentes portes e ramos de atividade com surpreendente facilidade. É ruim, mas piora: estados e municípios poderão, por lei própria, prever valores diversos para a caracterização da inadimplência substancial (cf. art. 11, § 2º, I, b).

Vinte e sete estados e 5.570 municípios poderem fixar qualquer valor para definir quem é devedor contumaz negará, por absoluto, qualquer pretensão de fixação de critérios claros e objetivos. Os contribuintes deverão observar, para operações em locais diferentes, limites variáveis de qualificação de devedores contumazes, e o advento do IBS e CBS fará com que o mesmo fato tributável fique submetido a três “critérios claros e objetivos” cumulativamente, conforme a esfera federativa. Será dar a estaca ao empalador!

Indo em frente, a inadimplência substancial dependerá da existência de créditos tributários sem exigibilidade suspensa, ou sem garantia integral, ou que não tratem de matéria afetada ao rito de recursos repetitivos no STF ou STJ, ou que não se refiram a controvérsia jurídica relevante e disseminada nos termos do art. 16 da Lei 13.988/20 (transação por adesão perante a PGFN e SRFB).

Aqui o estreitamento no universo de afetados é relevante, porque é fato que grande parte dos créditos tributários constituídos contra contribuintes de boa índole terá eventualmente sua exigibilidade suspensa (p. ex., processo administrativo, parcelamento, liminar em mandado de segurança, antecipação de tutela, depósito judicial), ou serão garantidos (fiança, seguro garantia ou penhora).

Contudo, observamos da prática da advocacia tributária quantidade nada desprezível de empresas sérias que têm se visto em cenário particularmente desafiador:

a) sem patrimônio disponível para garantir a integralidade de créditos tributários (seja por ausência de crédito bancário para contratação de dispendiosas garantias financeiras, seja por absoluta impossibilidade de caixa para realizar depósito judicial do montante de cinco anos de tributo acrescidos de multa e juros, seja por deter ativos de baixa liquidez não aceitos pelo fisco e Judiciário), e, sobretudo,
b) cuja defesa contra o tributo depende, como é muito comum, de matéria jurídica sujeita a dilação probatória incompatível com pedidos de liminar ou antecipação de tutela para suspensão da exigibilidade (compensações federais indeferidas, divergências na apuração de créditos da não cumulatividade etc.).

O nosso testemunho pessoal é que percentual relevante de nossa clientela na advocacia tributária já passou, ou ainda passa, por períodos de dificuldade dessa magnitude. Empresas nacionais ou estrangeiras, muito bem organizadas e administradas, atravessam crises agudas e, por muito pouco, não fecham as portas. Quantas e quantas vezes não constatamos casos em que clientes confrontaram o fundo do abismo, mas retomaram o caminho da saúde financeira?

O coup de grâce será impor, a tais contribuintes, a pecha de devedores contumazes. Como grandes serão as chances de os créditos tributários permanecerem irregulares por mais de quatro períodos de apuração, assim atendendo à condição de inadimplência reiterada, o catastrófico resultado será inevitável.

Finalmente, a condição da inadimplência injustificada depende da ausência de motivos objetivos que afastem a configuração da contumácia.

A ironia não poderia ser maior: se tudo o que se prega é uma legislação que fixe condições objetivas para a classificação do devedor contumaz, um só dispositivo escancara os reais valores em jogo ao impor ao contribuinte o ônus de provar objetivamente o porquê de não o sê-lo.

Entendemos que, se a legislação pretende oportunizar direito de defesa conforme as circunstâncias de cada caso, não se deve exigir de cada um a apresentação de motivos objetivos de não incorrerem em contumácia, mas o contrário: o afastamento da configuração da contumácia só poderá depender da apresentação de razões subjetivas!

Podemos já antecipar a rejeição de todos os argumentos de defesa, porque invariavelmente nenhum deles será objetivo e, assim, a dura lei se imporá.

O poder de destruição a ser criado com essa legislação é imensurável.

A quem for declarado devedor contumaz, as sanções poderão ser de baixa da inscrição no cadastro de contribuintes (o que equivale ao encerramento das atividades empresariais!), proibição de fruição de benefícios fiscais, proibição de participação em licitações, proibição de propositura de recuperação judicial ou de prosseguimento desta, além da sujeição ao rito de julgamento de processos administrativos tributários federais em última instância pela DRJ, sem acesso ao Carf.

Estes contribuintes ainda não poderão buscar a extinção da punibilidade penal pelo pagamento do tributo antes do início da ação penal e serão impedidos de transacionar com o fisco, dentre outras de menor relevância.

As sanções poderiam ser vistas como razoáveis, se houvesse garantia de que sua aplicação estaria limitada somente aos criminosos que tanto se busca combater. Contudo, está claro que tal garantia não está presente no texto do projeto de lei e, infelizmente, entendemos que esse é um objetivo inalcançável.

Será inevitável assistir à morte de empresas em crise, mas viáveis, em razão da aplicação “rigorosa” da legislação sobre devedores contumazes pelas autoridades fiscais. Rigor idêntico àquele que testemunhamos por décadas na aplicação das multas qualificadas de 150% no âmbito federal em casos de evidente atipicidade, na apreensão de mercadorias para coagir ao pagamento de tributos, na atribuição de responsabilidade tributária solidária de diretores estatutários em casos acadêmicos de divergência na interpretação da legislação tributária, dentre inúmeros outros exemplos que tanto mal produziram ao país.

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Resistir a essa pretensa legislação não é anuir com a criminalidade, mas questionar com a mais genuína honestidade intelectual se, apesar do clamor e promessas contrárias, o texto da lei não promove mais o mal do que o bem. Se, a pretexto de combater o crime, não se escancarará portas para (ainda maior) arbítrio e autoritarismo estatal

Será este o meio adequado para os fins desejados? Será tolerável conviver com os efeitos colaterais dessas novas normas? A resposta é negativa.

Sinceramente, não vemos a menor possibilidade de salvamento desse texto, que deve ser inevitavelmente rejeitado pelo parlamento.

O combate ao crime organizado exige ciência e maior organização estatal. Mas disso não resultada necessariamente cedermos ainda mais liberdade.

Juristas não darão a receita para a solução desses problemas, mas, se tudo seguir o caminho natural, seremos nós quem teremos de dizer quais caminhos evitar, apesar de mais uma vez nos repreendermos por só termos feito esta carta mais longa porque não tivemos o tempo de torná-la mais curta[1].

[1] Blaise Pascal, Lettres Provinciales, 16ª Lettre, 1656, p. 158: “Je n’ai fait celle-ci plus longue que parce que je n’ai pas eu le loisir de la faire plus courte”.

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