O propósito deste artigo é sugerir uma nova forma de pensar e, quando necessário, de agir. De pouco adianta um marco regulatório sobre inteligência artificial inspirado no Artificial Intelligence Act, entre outras legislações como o Digital Services Act ou Digital Markets Act, se ainda carecemos de aplicação prática de uma legislação importante como a Lei Geral de Proteção de Dados (LGPD).
É notório que há um grande problema no setor de saúde suplementar, que já motivou pedidos de CPI em alguns estados e na Câmara dos Deputados, ao menos nos arquivos que tive acesso, não há qualquer referência explícita à LGPD.
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A proteção assegurada por essa lei não apenas reforça outras normas e dispositivos legais vigentes, mas também preenche lacunas que outros dispositivos não conseguem alcançar. Na prática, observa-se justamente esse espaço de omissão que a LGPD poderia suprir.
Se nada mudar, a tendência é a sobrecarga do Sistema Único de Saúde (SUS) pelos que mais necessitam de cuidados médicos, diante de decisões minimamente questionáveis e da inação de algumas autoridades que poderiam mitigar esse problema. Ainda assim, arrisco dizer que há alguns sinais de esperança.
Do ponto de vista constitucional, o art. 1º, III, da CF/88 consagra a dignidade da pessoa humana como um dos fundamentos do Estado Democrático de Direito. Para realizá-la, o Estado deve preservar, respeitar e promover direitos essenciais como saúde, educação e segurança.
Este é o entendimento amplamente consolidado pelo Supremo Tribunal Federal. Em meio à crise sanitária em razão da Covid-19, o STF entendeu pela constitucionalidade da vacinação compulsória (ADIs 6586 e 6587), com o uso de medidas restritivas, porém sem imunização à força; referendou liminar para autorizar estados, municípios e o Distrito Federal a importar e distribuir vacinas contra no novo coronavírus (ADPF 770 e ACO 3451), além de determinar que o governo elabore planos para vacinar comunidades e povos tradicionais (ADPFs 709 e 742).[1]
No RE 581.488, a corte julgou inconstitucional a possibilidade de pacientes do SUS pagarem por acomodações superiores ou atendimento médico de sua preferência. Por unanimidade, seguindo o voto do relator, ministro Dias Toffoli, entendeu que a prática viola os princípios da igualdade, da dignidade da pessoa humana e da proteção à saúde.
Ainda destaco o entendimento do ministro Luís Roberto Barroso que interpreta, em breves termos, a dignidade humana como parte do núcleo essencial dos direitos fundamentais, bem como a igualdade, a liberdade ou a privacidade. Segundo Barroso, nos casos envolvendo lacunas no ordenamento jurídico, ambiguidades no direito, colisões entre direitos fundamentais e tensões entre direitos e metas coletivas, a dignidade humana pode ser uma boa bússola na busca da melhor solução. Mais ainda, qualquer lei que viole a dignidade, seja em abstrato ou em concreto, será nula.[2]
Sendo a dignidade da pessoa humana fundamento do Estado Democrático de Direito, refletido na ordem econômica (art. 170, CF/88) e social (art. 226, CF/88), justifica-se a regulamentação e a intervenção nos planos de saúde, dada a relevância pública da prestação de serviços privados de saúde e sua função de assegurar o acesso a todos os cidadãos.
É uma grande preocupação, embora pouco debatida na prática, a forma de tratamento dos dados pessoais e a possibilidade de decisões desfavoráveis aos usuários a partir de usos irregulares, já naturalizados.
Um exemplo é o descredenciamento de rede. O art. 17 da Lei 9.656/98 impõe às operadoras o dever de comunicar o consumidor com 30 dias de antecedência. Ainda que cumprido, quem garante que não houve violação ao dever de “não discriminação” previsto no art. 6º, IX, da LGPD?
Casos isolados não devem ser generalizados e os consumidores, elo frágil da relação, têm dificuldade em sustentar acusações. Contudo, quando há padrão de desassistência a grupos em situação de hipervulnerabilidade, a preocupação é legítima. É nesse contexto que se aplica o art. 11, §5º, da LGPD, que veda o tratamento de dados de saúde para seleção de riscos, inclusive na contratação e exclusão de beneficiários.
Sem adentrar em questões como verticalização ou tendências a partir de dados genéticos, tema atual que exige estudo próprio, aqui interessa focar no básico. Relatos em plataformas como o “Reclame Aqui” revelam práticas preocupantes; operadoras que comercializam planos com determinado hospital ou maternidade credenciada e, já na reta final da gestação, “descredenciam” a instituição sem justificativa plausível.
Esse padrão repete-se há anos, com consumidores reportando à ANS sem resultado prático. A conduta afronta a LGPD, o CDC e normas da própria ANS. No âmbito da LGPD, pode haver tratamento automatizado de dados, desvio de finalidade (art. 6º, I) e violação ao consentimento (art. 7º, I), já que a operadora teria conhecimento de dados sensíveis, como a semana de gestação, sugerindo um uso abusivo dessas informações.
Esse tipo de prática padronizada viola a dignidade da pessoa humana, o direito à saúde e, em última instância, o próprio Estado Democrático de Direito. Soma-se a isso a sensação de impunidade gerada pela ausência de enforcement.
A ANPD, vinculada ao Ministério da Justiça, alega limitações estruturais, apenas quatro ou cinco pessoas atuariam na fiscalização. A ANS, por sua vez, é alvo de críticas por inação, conforme registrado nos pedidos de CPI. Assim, restam ao Ministério Público, Procon, entidades de tutela coletiva e ao Judiciário as tentativas de equilibrar minimamente o setor.
O titular que busca exercer o direito de transparência (art. 6º, VI, LGPD) frequentemente esbarra em alegações de segredo comercial ou recebe respostas genéricas, restritas ao contrato. Nesse cenário, não se trata de cultura litigiosa, embora ela exista, mas da necessidade de recorrer ao Judiciário para fazer valer princípios constitucionais. A crítica, portanto, não deve ser contra todos os players do mercado, mas contra o desvirtuamento sistêmico que produz violações graves à dignidade humana e ao direito à vida.
Apesar de realmente existir uma cultura litigiosa que deve ser trabalhada em nosso país, a necessidade de socorrer-se ao sistema judiciário para valer-se dos princípios constitucionais, como o exercício da dignidade da pessoa humana, indo de encontro com o entendimento aplicado pelo STF e por doutrinadores evidencia a ausência de eficácia normativa; portanto, não se deve impor a culpa generalizada à classe dos advogados ou aos consumidores, obviamente, a pauta não deve ser generalizada a todos os players.
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Além disso, há o risco de oligopolização: se um player se beneficia de práticas questionáveis visando lucro, a concorrência se torna injusta e anticompetitiva. Esse desequilíbrio, aliado ao descumprimento de decisões judiciais – inclusive liminares sob pena de multa –, eleva o problema. Não raro, operadores ignoram ordens judiciais em massa, criando previsibilidade de descumprimento sem consequências proporcionais.
Nesse ponto, cabe refletir sobre a efetividade dos meios coercitivos, sobretudo diante da banalização da multa e da interpretação restritiva sob o argumento de “enriquecimento sem causa”.
Vislumbra-se que o sistema precisa ser reinterpretado para evitar que quem viola princípios constitucionais, confronte o Judiciário, gere instabilidade e saia impune.
Por isso, ganha relevo a difusão da cultura da privacidade e da autodeterminação informativa por advogados, especialistas, entidades e organizações da sociedade civil. Quando ligada à saúde, essa pauta deve ser levada ao conhecimento público com responsabilidade e transparência.
[1] Disponível em: https://portal.stf.jus.br/noticias/verNoticiaDetalhe.asp?idConteudo=463871&tip=UN. Acessado dia 17/08/25.
[2] AQUI, LÁ E EM TODO LUGAR” 1 : A DIGNIDADE HUMANA NO DIREITO CONTEMPORÂNEO E NO DISCURSO TRANSNACIONAL. Fl. 119. Disponível em: https://www.mprj.mp.br/documents/20184/2592408/Luis_Roberto_Barroso.pdf. Acessado dia: 17/08/25.