Como vídeos gerados por IA alimentam a polarização afetiva

Uma jovem adolescente aparece num vídeo vestindo preto, maquiagem carregada e ar sério. Ela se dirige ao pai, num tom de desafio: “Pai, eu sou gótica. Respeita as minhas escolhas.” O pai, sem pestanejar, retruca: “Vá limpar a casa!”. A garota então sai correndo pelo quintal gritando: “Ninguém me respeita aqui em Xique‑Xique, Bahia!”.

À primeira vista, parece apenas mais um meme para gerar piada nas redes sociais. Mas, na verdade, esse é apenas um entre milhares de vídeos que performam identidades sociais com estereótipo, com o objetivo de ridicularizar, aprofundando barreiras simbólicas entre grupos que, na esfera política, se veem cada vez mais como inimigos afetivos e não apenas adversários ideológicos.

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Uma persona, normalmente parte de alguma minoria social, pede respeito a pais ou avós, e a resposta vem num tom de deboche, dizendo “vai trabalhar” ou, no caso das mulheres, “vai limpar a casa” ou “vai lavar uma louça”. Assim, cria-se espaço para preconceito velado estar cada vez mais presente nas redes sociais: um conteúdo que reforça estereótipos e consolida papéis sociais arcaicos, materializando discriminação em forma de piada, sem que ninguém precise se responsabilizar pela autoria, afinal, esse exemplo apresentando é um vídeo produzido por inteligência artificial.

A política por trás do meme

Não se trata apenas de memes e piadas, as IAs generativas de vídeo estão materializando discursos de ódio sem assinatura, transformando as redes em um verdadeiro faroeste digital. O Veo 3, um dos modelos de geração de vídeo mais famosos do momento, revolucionou o mercado ao oferecer uma interface extremamente simples para criação de vídeos hiperrealistas, com sincronização de voz, expressões faciais e legendas, a um custo baixo, às vezes até gratuito.

Em poucos cliques, qualquer usuário pode produzir clipes de qualidade broadcast, antes restritos a grandes estúdios. Essa mesma facilidade e rapidez que fazem do Veo 3 uma ferramenta poderosa para marketing, educação ou arte, o tornam também uma arma quando empregado para fins escusos: deepfakes eleitorais, propaganda de ódio e discursos de intolerância ganham escala instantânea, camada após camada, somando na disseminação de ódio e desinformação.

Mas não para na piada. Liliana Mason aponta que a polarização afetiva ocorre quando múltiplas identidades sociais, como ideologia, religião, etnia ou classe, convergem, criando um sentimento de pertencimento tribal e, ao mesmo tempo, uma rejeição visceral ao outro. Nessa dinâmica, o julgamento político passa a ser mediado por emoções intensas e não pela análise racional.

Outro exemplo circula na fila do INSS, onde repórteres entrevistam idosos sobre o que farão com o benefício, as respostas: “vou gastar no tigrinho”, “vou comprar cachaça” ou “quem sabe arrumar um novo namorado”, resultam em risadas cúmplices entre entrevistado e jornalista. À primeira vista, parecem apenas piadas leves, mas acabam funcionando como engrenagens simbólicas de uma cultura que naturaliza a desigualdade e cristaliza preconceitos sob a máscara da leveza. É conteúdo suficiente para desacreditar programas sociais e políticas públicas com base em uma imagem caricata sobre seu público beneficiário.

Para ilustrar como essa dinâmica se espalha com rapidez, basta pesquisar “Veo 3 PT” ou “Veo 3 Lula” no TikTok, Facebook, YouTube ou Instagram: surgem vídeos que retratam militantes petistas em tom depreciativo e desqualificador. Conteúdos que reforçam uma dinâmica de “othering” e aversão, dois ingredientes do que a literatura recente chama de sectarismo político. Esses clipes evidenciam como a ferramenta já é explorada para reforçar a disputa política, divulgando narrativas negativas sobre adversários partidários e ampliando ainda mais a polarização.

Anonimato vantajoso

O anonimato conferido pelas IAs generativas de vídeo funciona como um poderoso incentivo à produção desse tipo de material: sem precisar se expor, qualquer pessoa, ou qualquer grupo interessado em espalhar ideias extremistas, pode criar clipes carregados de ódio, preconceito e estereótipos com poucos cliques. Ferramentas como o Veo 3 viabilizam um verdadeiro “atirador solitário” digital, que dispara suas mensagens ideológicas sem jamais assumir a autoria.

Esse anonimato acelera a formação de comunidades políticas baseadas em afetos negativos compartilhados. Ao reforçar emoções como raiva e desprezo, a IA colabora para a consolidação de bolhas identitárias rígidas, onde o outro é visto como ameaça existencial, e não como interlocutor político legítimo. A desinformação torna-se então um catalisador de vínculos emocionais exclusivos.

Antes, muitos hesitavam em veicular ataques justamente pelo receio de serem identificados; hoje, a impunidade aparente estimula a circulação de humor duvidoso e discursos tóxicos, ocupando o feed de maneira desenfreada. O resultado é um ambiente que se assemelha a um faroeste digital, em que a lei, seja moral, social ou legal, parece não existir, e todos os “tiros” midiáticos ecoam sem destino certo, aprofundando a polarização e corroendo qualquer senso de responsabilidade.

É nesse ambiente de faroeste digital que a disputa de ideias se intensifica de forma preocupante. E a polarização afetiva já não preocupa. Ela governa: todo clipe, até aqueles vendidos como mero entretenimento ou humor, carrega um viés ideológico e um brilho de radicalismo.

A facilidade de produção e a ausência de filtro transformam a timeline num campo minado de posições extremas, onde cada “brincadeira” reforça visões polarizadas e alimenta preconceitos velados. Aos poucos, a sociedade é empurrada para bordas opostas, incapaz de dialogar no centro, enquanto as redes se enchem de estereótipos disfarçados e provocações calculadas, retroalimentando um ciclo de intolerância que mina qualquer possibilidade de convívio plural.

Para muito além do digital

Inúmeros estereótipos e preconceitos que pareciam perder espaço na sociedade hoje retornam com força renovada. Piadas que, há poucos anos, já não eram mais aceitas voltam a arrancar risadas, agora, revestidas de uma suposta irreverência que disfarça sua carga ideológica. Esse humor “de retorno” encontra terreno fértil num ambiente de ressentimento coletivo e polarização, onde expressões antes marginais ganham nova audiência, não por serem engraçadas, mas por reafirmarem a fronteira simbólica entre “nós” e “eles”.

Contratos sociais arcaicos ganham novo fôlego quando circulam em vídeos anônimos, e o que parecia superado volta a ocupar lugar de destaque no entretenimento de muitos. Enquanto essas mudanças se dão quase exclusivamente nas redes, grande parte das pessoas não percebe o problema, mas, quando o ódio e o preconceito desembarcam na vida real, é aí que a “realidade” se impõe.

Foi exatamente isso que se viu em 2018, quando a polarização nas redes sociais transbordou para o cotidiano dos brasileiros. Em abril daquele ano, o mestre de capoeira Romualdo Rosário da Costa, conhecido como Moa do Katendê, de 63 anos, foi brutalmente assassinado a facadas em Salvador ao defender um candidato do PT. Um crime motivado politicamente que chocou o país.

Casos como esse mostram como o ódio digital não apenas antecipa, mas frequentemente molda a ação física. A polarização afetiva, como demonstra Mason, distorce a percepção do outro a ponto de torná-lo merecedor de punição, marginalização ou exclusão violenta.

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Paralelamente, as tensões nas timelines e em grupos de WhatsApp e Telegram atingiram níveis tão altos que inúmeras famílias relataram o fim de relações, desde amizades de longa data até casamentos, em razão de discordâncias políticas irreconciliáveis. Almoços de domingo foram cancelados, conversas familiares evitaram qualquer menção a política e muitos lares se dividiram, revelando como a violência virtual transbordou para a vida real, corroendo vínculos afetivos.

A polarização afetiva, longe de ser apenas um subproduto espontâneo da política digital, é cada vez mais instrumentalizada como estratégia ativa de mobilização. O conteúdo emocionalmente carregado, piadas, memes, vídeos, cumpre uma função estrutural: reforçar vínculos dentro do grupo e desumanizar o outro. O espaço público se fragmenta em zonas de hostilidade afetiva, minando as condições mínimas de coexistência democrática.

E é assim que um vídeo aparentemente inocente sobre “Xique-Xique, Bahia” é instrumentalizado pela dinâmica do ódio. Não se trata de um debate moralista sobre qual piada é aceitável ou não, ou então sobre uma postura conhecida como “politicamente correto”. Mas, na verdade, se aprendemos que “de grão em grão, a galinha enche o papo”, na era da deepfake: de vídeo em vídeo, a IA distribui ódio em alta resolução, formando concepções cada vez mais estereotipadas sobre o outro, virtualizando a realidade. Quem paga a conta é o convívio. E, no fim, a democracia.

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