Recentemente, a Corte Interamericana de Direitos Humanos (Corte IDH) emitiu a Opinião Consultiva 31, reconhecendo o cuidado como direito humano autônomo, fundamentado nos princípios de dignidade, solidariedade e corresponsabilidade social, abrangendo as dimensões de ser cuidado, cuidar e do autocuidado.
O posicionamento da corte soma-se à aprovação, no Brasil, da Lei 15.069/2024, que instituiu a política nacional de cuidados. Os dois movimentos deixam claro que a noção de cuidado, agora juridicizada, é cada vez mais um tema de economia política e também uma lente necessária para enxergarmos a dinâmica das relações sociais e econômicas. Ao tempo em que o cuidado passa a ser mais claramente uma questão econômica, devendo ser pensado nesses termos, ele redefine as margens do que é a própria economia.
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Nesta coluna, temos refletido sobre as fronteiras do direito econômico, segundo uma perspectiva construída por professoras mulheres. Em nosso texto de estreia, afirmamo-nos como “mulheres no sempre indispensável direito econômico” e delimitamos que, no final das contas, a disciplina serve para que possamos “vislumbrar quem ganha e quem perde nos arranjos jurídicos que envolvem as mais difíceis escolhas políticas e econômicas de nossos tempos”[1].
Retomando esse fio, desta vez, nos perguntamos como o florescimento da ideia de um direito humano ao cuidado se relaciona com o campo do direito econômico. Compreendemos que esse esforço não é simbólico ou retórico. O debate sobre o direito ao cuidado possui uma expressão econômica. Ao questionarmos a modelagem mercantil do trabalho, pretendemos iluminar a sua dimensão afetiva e emocional e colocar em xeque o sentido das atividades tidas como produtivas em geral[2].
No que toca às relações trabalhistas, podemos mirar a assimetria de pagamento ou – até mesmo – a absoluta falta de remuneração da maior parcela do trabalho de cuidado. Aqui, ganha relevo o debate sobre a ampliação da licença-paternidade e outros mecanismos que favoreçam a corresponsabilização pelo cuidado.
Ainda, como aponta Hila Shamir, diferentes regimes de bem-estar social conformam distintas noções de família[3]. A autora explica que o direito redefine as fronteiras entre o mercado, o estado e a família, repercutindo inclusive na divisão de trabalho entre membros de uma mesma família. Isso equivale a dizer que há uma relação inversamente proporcional: quanto menor a provisão estatal de cuidado, maior a dependência do mercado e a comodificação das relações sociais e familiares. Assim, o processo de solidificação do bem-estar social propicia a “decomodificação” e a “desfamiliarização” do cuidado, pois as famílias não são vistas como suas provedoras únicas e exclusivas.
Num país em desenvolvimento e premido por conflitos distributivos como o Brasil, cabe ao direito econômico reimaginar políticas e instituições para que elas deem cabo do desafio de cuidar.
O direito ao cuidado: uma questão econômica
Os manuais apresentam a clássica definição de acordo com a qual as três grandes questões da organização econômica são entender o que uma sociedade irá produzir, como e para quem[4]. O que constitui valor e o que é considerado produtivo, no entanto, é objeto de um conjunto de decisões políticas[5]. Tais escolhas têm sido problematizadas pelas teorias feministas e pela economia do cuidado. Nancy Folbre explica que as atividades de cuidado são também produtivas porque geram benefícios a terceiros e fazem parte das circularidades econômicas[6]. E, de modo crítico, Nancy Fraser expõe que o capitalismo intensificou a divisão de gênero, gerando uma “crise do cuidado”, pois[7]:
“Em resumo: o capitalismo liberal privatizou a reprodução social; o capitalismo estatal a socializou parcialmente; o capitalismo financeirizado a mercantiliza cada vez mais. Em cada caso, uma organização específica da reprodução social acompanhou um conjunto distinto de ideais de gênero e família: da visão liberal-capitalista de “esferas separadas” ao modelo social-democrata do “salário familiar” e à norma financeirizada neoliberal da “família com dois assalariados”.
Como se observa, o cuidado é parte nuclear da reprodução social e não pode ser tido como atividade “não econômica”. Ainda, é o trabalho de cuidado que sustenta a própria possibilidade de acumulação de capital[8].
Levando isso em consideração, as práticas de invisibilização e subvalorização do cuidado[9] não escaparam à Corte IDH. O tribunal referiu que as mulheres realizam 76,2% de todo o trabalho de cuidado não remunerado, dedicando 3,2 vezes mais tempo a essa tarefa do que os homens.
Além disso, os deveres de cuidado recaem mais pesadamente sobre mulheres pretas ou pardas e imigrantes, uma força de trabalho extenuada e mal remunerada[10]. Nesse ponto, a corte advertiu que as trabalhadoras imigrantes deixam suas próprias famílias desamparadas nos países de origem, gerando o que se conhece como “cadeias globais de cuidado”.
Por fim, o tribunal mostrou-se atento à relevância que os direitos socioeconômicos possuem na América Latina. O continente tem uma história marcada por novas constituições ricas em direitos, mas que encontram dificuldades para se efetivar, ante a escassez de recursos. Esse contexto de plenitude constitucional muitas vezes não realizada propiciou uma certa dose de inventividade econômica e jurídica, conformando um repertório que precisará ser acionado para, mesmo com dificuldades, conseguirmos introjetar a gramática do cuidado.
O direito econômico e a implementação da política de cuidados
O capitalismo contemporâneo mobiliza intensamente o Estado e o Direito para promover, de um lado, a diminuição de direitos sociais e, de outro, a financeirização, incluindo o aumento da disponibilidade de crédito e de expansão de novos instrumentos financeiros para diversas áreas tradicionalmente vistas como funções do Estado.
Esse cenário é revelador do complexo caminho que teremos até a implementação do Plano Nacional de Cuidados, recentemente editado pelo Poder Executivo (Decreto 12.562, de 2025). Ali está posta a necessidade de coordenação intergovernamental capaz de nos fazer avançar na mensuração do valor do trabalho de cuidado; nas políticas de corresponsabilização; na visibilização do cuidado direcionado a pessoas idosas e deficientes; na promoção do trabalho decente, ante os processos de dessindicalização e fragmentação; e, por fim, no custeio da seguridade social.
No eixo da corresponsabilização pelo cuidado, destacamos a tramitação de projetos voltados à ampliação do período de licença-paternidade. O Supremo Tribunal Federal (STF) decretou a mora do Congresso Nacional em regulamentar o dispositivo constitucional que prevê a licença-paternidade, conforme julgamento da ADO 20. Sobre o tema, algumas proposições tramitam nas Casas, entre elas o PL 3773/2023, de autoria do senador Jorge Kajuru (PSB‑GO), que prevê a possibilidade de compartilhamento da licença entre pai e mãe, bem como o salário-parentalidade; e o PL 6216/2023, de autoria da deputada Tabata Amaral (PSB-SP), que propõe uma ampliação gradativa da licença de 30 a 60 dias.
Já no campo do enfrentamento à precarização do trabalho, múltiplas discussões estão colocadas no parlamento e no Judiciário, merecendo especial atenção o PLP 12/2024, que trata da garantia de direitos previdenciários para trabalhadores vinculados a empresas de aplicativos.
Por fim, no que concerne à seguridade social, o Brasil enfrenta pressões por austeridade, ao tempo em que expande a sua cobertura social. Adriana Gregorut explica que esse paradoxo tem como consequência a redução da provisão de serviços universais. Para a autora, o Estado neoliberal utiliza o instrumental jurídico para um projeto ambivalente: enquanto amplia políticas sociais de transferência de renda e o gasto social como um todo, seu foco está em políticas que desuniversalizam benefícios e empurram as famílias para o mercado financeiro.
Essa dualidade em que grassam expansão e retração revela-se no agigantamento do BPC/Loas, dos benefícios previdenciários e de transferência de renda em geral, que se dá em paralelo ao endividamento das mulheres “para acessar serviços básicos de saúde, educação e previdência”[11].
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Como se pode depreender, todos esses assuntos que orbitam a ideia de um direito humano ao cuidado possuem dimensão econômica e servem para demonstrar que a arquitetura propiciada pelo direito econômico é fundamental para a delimitação entre o que é considerado capital produtivo e o que não é.
O papel da disciplina nessa equação não está fechado, pois, se de um lado, como propõe Nancy Fraser[12], precisamos refundar as bases da vida privada, adotando o modelo de “cuidador universal”, em que todas as pessoas – homens e mulheres – são tanto cuidadoras quanto trabalhadoras assalariadas; de outro, devemos revisitar também os rumos de um Estado que tem se afastado da universalização de serviços.
Sempre que deslocamos uma tarefa de cuidado da esfera familiar, fazemos uma escolha política. Pouco a pouco, tais escolhas compõem uma fotografia maior, e, como temos insistido por aqui, o direito econômico precisa seguir escrevendo alguns capítulos dessa história.
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[1] Mota, Clara; Pimenta, Raquel; Saito, Carolina; Levy, Mariana; Kira, Beatriz. Por um direito econômico com mulheres, para mulheres e além delas: pensar em mulheres na teoria e na linha de frente é pensar na economia política do desenvolvimento. JOTA, 05 out. 2023. Disponível em: https://www.jota.info/. Acesso em: 30 ago. 2025.
[2] Pereira, B. C. J.; Fontoura, N. O.; Pinheiro, L. S. Economia dos cuidados: marco teórico-conceitual. Rio de Janeiro: Instituto de Pesquisa Econômica Aplicada (Ipea), 2016. Relatório de pesquisa. Disponível em: https://repositorio.ipea.gov.br/server/api/core/bitstreams/f4f1754f-f43a-47f0-aa80-c0ddae94519d/content. Acesso em: 26 ago. 2025.
[3] Shamir, Hila. The State of Care: Rethinking the Distributive Effects of Familial Care Policies in Liberal Welfare States, 58 The American Journal of Comparative Law, Part II (955-59).
[4] Samuelson, Paul A.; Nordhaus, William D. Economia. 19ª ed. Porto Alegre: AMGH, 2012.
[5] Mazzucato, Mariana. 2019. O valor de tudo: produção e apropriação na economia global. São Paulo: Portfolio-Penguin.
[6] Folbre, Nancy. Rethinking the economics of the family. Cambridge, Massachusetts: Harvard University Press, 2008.
[7] Leonard, Sarah; Fraser, Nancy. 2016. “A crise do cuidado no capitalismo.” Dissent Magazine, Fall 2016. Disponível em: https://www.dissentmagazine.org/article/nancy-fraser-interview-capitalism-crisis-of-care/. Acesso em 28 ago. 2025.
[8] Bhattacharya, Tithi (Org.). Social reproduction theory: remapping class, recentering oppression. London: Pluto Press, 2017.
[9] Federici, Silvia. Revolution at point zero: housework, reproduction, and feminist struggle. Oakland: PM Press, 2012.
[10] Cottle, Michelle. Who Will Take Care of American Caregivers?. New York Times (Aug. 12, 2021).
[11] Gregorut, Adriana Silva. O papel do Estado neoliberal na desuniversalização dos direitos sociais / The role of the neoliberal state in the de-universalization of social rights. Revista Direito e Práxis, Rio de Janeiro, v. 16, n. 2, p. 1–22, 2025. Dossiê: Economia Política na América Latina. Fundação Getulio Vargas, São Paulo. Artigo recebido em 06 jan. 2025; aceito em 09 mai. 2025. DOI: 10.1590/2179-8966/2024/88982. Disponível em: https://www.e-publicacoes.uerj.br/revistaceaju/article/view/88982/54878. Acesso em: 30 ago. 2025.
[12] Fraser descreve três principais momentos históricos de organização do cuidado. Para ela, no capitalismo pós-guerra (era fordista) vigorava o modelo do “salário familiar masculino”, que refletia a situação em que o homem da família era quem trabalhava no mercado, enquanto a mulher ficava em casa e era responsável pelo cuidado da família. Tal modelo é entendido como problemático por reforçar a dependência das mulheres, invisibilizar o trabalho de cuidado e excluir as mulheres e as atividades de cuidado da esfera pública. Com a dominação do pensamento neoliberal nas principais economias do mundo, é possível verificar um novo modelo, que a autora chama de trabalhador universal. Nesse cenário, todos – homens e mulheres – devem ser assalariados, enquanto os trabalhos de cuidado passam a ser terceirizados ou até precarizados. Segundo a autora, esse modelo também é problemático, pois sobrecarrega as mulheres, mercantiliza o cuidado e transfere de forma desigual a carga de trabalho para mulheres pobres, muitas vezes negras e/ou imigrantes. O terceiro modelo seria o universal, tratado no corpo do texto. (Fraser, Nancy. Fortunes of Feminism: From State-Managed Capitalism to Neoliberal Crisis. Verso Books, 2013).