O Código de Defesa dos Contribuintes e o ‘projeto do devedor contumaz’

O Senado aprovou o PLP 125/2022, que cria o tão esperado e sonhado Código de Defesa dos Contribuintes, conquanto o debate público tenha preferido chamá-lo de “projeto do devedor contumaz”. O apelido rende manchete, mas distorce o que realmente está em jogo.

O texto é amplo, organiza direitos, deveres e procedimentos e pode inaugurar um estatuto nacional do contribuinte. O capítulo da contumácia existe, porém é apenas uma peça dentro de um projeto muito maior, que deve ser celebrado como uma conquista de todos e um avanço civilizatório.

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Algumas observações cabem, entretanto. Um código pede linguagem geral, coerência interna e vocação para durar. O texto aprovado consolida garantias mínimas para União, estados e municípios. Estabelece comunicações claras, acesso ao processo, identificação de agentes, contraditório e defesa efetivos, pelo menos um recurso administrativo, decisão em prazo razoável, respeito ao sigilo e a vedação de pedir documentos que a administração já possui.

Estimula solução cooperativa de conflitos, impõe a consolidação periódica de normas esparsas e cria programas de conformidade com incentivos mensuráveis ao bom pagador. Esses pontos reduzem incerteza, desarmam litígios desnecessários e aproximam a prática brasileira de padrões internacionais.

Separar o devedor contumaz do inadimplente eventual é outro avanço importante, inclusive no campo penal. O projeto fixa critérios objetivos e rito com devido processo para diferenciar quem usa a inadimplência como modelo de negócio de quem passa por dificuldades por razões econômicas reais. A contumácia passa a depender de comportamento reiterado e injustificado, sujeito a prova e defesa. Ganha o contribuinte regular, que deixa de ser confundido com fraudadores, e ganha o fisco, que concentra energia onde há, de fato, fraude.

Nada disso autoriza reduzir o código ao seu capítulo sancionatório. O tema avançou no calor de uma operação policial que expôs a utilização do sistema financeiro e da cadeia de combustíveis para lavagem de dinheiro. O momento ajuda a explicar a pressa, mas não justifica a caricatura. Um estatuto do contribuinte nasce para dar estabilidade de longo prazo a relações que se repetem diariamente. Emergências pedem leis específicas e regulação setorial. A espinha dorsal de garantias e deveres não deve ser moldada pelo escândalo da semana.

Daí a crítica à inserção de dispositivo casuístico relativo ao setor de combustíveis. O texto aprovado não fixa valores nem estabelece as exigências de forma direta; ele apenas autoriza a ANP a exigir capital social mínimo e a comprovação do beneficiário final e da origem lícita dos recursos, temas próprios de regulação setorial a serem trabalhados pela agência com técnica administrativa e linguagem adequada.

Num código de defesa do contribuinte, tais previsões soam deslocadas. Um texto geral precisa resistir à tentação de resolver, por dentro, problemas conjunturais. Codificação pede abstração suficiente para atravessar ciclos políticos e operações pontuais. Quando normas setoriais são enxertadas no corpo do código, perdem-se a neutralidade e a elegância sistemática esperadas de um estatuto aplicável a todos.

Também merecem atenção os limites e salvaguardas do capítulo da contumácia. É preciso definir com clareza o que seja dívida injustificada, quais débitos entram na conta, como se considera patrimônio conhecido e como se evita retroatividade punitiva. A notificação prévia com prazo para regularização e a defesa com efeito suspensivo são antídotos contra arbitrariedades e devem ser preservadas na Câmara. Convém ainda afastar qualquer incentivo à confusão entre recuperação judicial de empresas viáveis e inadimplência dolosa. São universos distintos e um código maduro precisa dizê-lo de forma inequívoca.

O leitor tem o direito de saber o que merece aplauso e o que merece reparo. Merecem aplauso a carta de direitos do contribuinte, a via cooperativa e transparente de solução de conflitos, a obrigação de consolidar normas, a previsão de prazos e de decisão, a garantia de acesso integral aos autos, a não repetição de exigências documentais, os programas de conformidade com incentivos objetivos e a distinção clara entre devedor contumaz e inadimplente eventual. Tudo isso aproxima o Brasil de boas práticas internacionais e reduz o custo de cumprir a lei.

O que merece reparo é a transformação de um código em veículo de temas setoriais, o risco de converter exceções em regra e a pressa de legislar a reboque de operações midiáticas. O país já dispõe de espaço adequado para endurecer a regulação de combustíveis e de segmentos sensíveis. É a legislação setorial, em diálogo com os reguladores e com critérios técnicos revisáveis à luz de evidências. Um código do contribuinte deve proteger garantias e organizar deveres de forma estável, clara e previsível. É por isso que interessa aos bons pagadores e também ao fisco.

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Há, por fim, um ganho de cultura institucional. Ao separar contumácia de eventualidade, o texto convida o Judiciário a abandonar a zona cinzenta em que tudo vira discussão genérica sobre dívida tributária, por vezes criminalizada sem fundamento, e a reconhecer que há diferença entre dificuldade econômica e fraude estruturada. Isso protege quem faz esforço genuíno para cumprir obrigações e sinaliza a quem vive de não pagar que a estratégia ficou mais cara. Assim se constrói segurança jurídica.

A Câmara tem a oportunidade de aparar arestas, retirar a casuística e firmar a vocação geral do texto. Se fizer isso, entregará algo raro. Um estatuto que não é contra o fisco nem contra o contribuinte, mas a favor de uma relação madura entre ambos. Em um país que litiga muito e confia pouco, este já seria um avanço considerável.

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