O Cade, a lei antitruste e a moratória da soja

Às vésperas da 30ª Conferência da ONU sobre Mudanças Climáticas, a COP30, prevista para acontecer em novembro em Belém, o Conselho Administrativo de Defesa Econômica (Cade) determinou a suspensão cautelar do acordo conhecido como moratória da soja.

A autoridade concorrencial brasileira também instaurou um processo administrativo para investigar indícios de conduta colusiva, “similar a um cartel de compra”[1], pelas empresas exportadoras que participam indiretamente do acordo. Desde então, o assunto ocupa a imprensa nacional e internacional, e a medida preventiva do Cade (alvo de recurso administrativo ao tribunal da autarquia) já é objeto de questionamento em juízo, em batalha que envolve a Abiove e a Aprosoja, além da União e do próprio Cade.

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A moratória da soja é um acordo firmado em 2006 entre associações de empresas do agronegócio, organizações da sociedade civil e o governo brasileiro, com o objetivo de combater o desmatamento na Amazônia relacionado à produção de soja.

Ele é fruto de um movimento internacional, iniciado após denúncias e campanhas associando a redução da vegetação nativa da floresta amazônica à expansão do cultivo da oleaginosa (veja mais detalhes em vídeo disponível no canal do Greenpeace no YouYube[2]) e se tornou um marco na governança ambiental e no monitoramento por satélite de cadeias agroindustriais no Brasil[3].

Em apertada síntese, as empresas signatárias se comprometeram a não comercializar, adquirir ou financiar soja proveniente de áreas desmatadas – legal ou ilegalmente – após julho de 2008 no bioma amazônico, além de localidades que constem das listas de “áreas embargadas por desmatamento do Ibama” ou “de trabalho análogo ao escravo do MTE”.[4]

No centro do debate envolvendo especificamente a atuação do Cade está o aparente conflito entre a tutela da concorrência e a proteção ao meio ambiente, ambos princípios constitucionais no direito brasileiro.

Não é esse, porém, o foco dessas breves considerações.  O nosso objetivo, aqui, é discutir o tema sob a ótica estritamente concorrencial (Lei 12.529/11), incluindo o enquadramento da conduta, a participação do governo federal como atual signatário da moratória da soja, e os limites da atuação do Cade no contexto de políticas públicas, como é o caso do acordo sob investigação.

A análise concorrencial realizada pela Superintendência Geral do Cade[5] aborda a conduta sob a perspectiva de “cartel de compra”, expressão utilizada uma dúzia de vezes na Nota Técnica que embasa a aplicação da medida preventiva. Isso justificaria o enquadramento do potencial ilícito pelo seu objeto.

Ou seja, o acordo poderia ser declarado anticompetitivo e ilegal independentemente dos efeitos causados (ou esperados) sobre o mercado. Um exemplo típico dessa abordagem do Cade é o caso dos frigoríficos, que versou sobre supostas combinações para estabelecer em conjunto valores de compra para a carne bovina, em prejuízo dos produtores rurais[6].

Dada a ausência de elementos – ao menos na versão pública da Nota Técnica – que indiquem um alinhamento de preços ou de condições comerciais ou a fixação de cotas (divisão de mercado) entre as empresas, não nos parece acertada a abordagem proposta.

Do ponto de vista teórico, tratar-se-ia (hipoteticamente, que fique claro) de uma recusa de negociar coletiva, ou seja, um boicote, atingindo produtores de soja não enquadrados nos critérios estabelecidos no acordo, i.e., aqueles com atividades em áreas de bioma de floresta amazônica desmatadas legal ou ilegalmente após julho de 2008.

O boicote coletivo é usualmente analisado pelo tribunal do Cade sob a ótica dos seus efeitos (ainda que potenciais) sobre a ordem econômica[7]. Aplicar-se-ia, portanto, a chamada “regra da razão”, permitindo aos investigados justificar a conduta e, em última instância, sopesar seus benefícios vis-à-vis eventuais prejuízos ou restrições à concorrência.

Trata-se de uma lógica de adequação entre fins e meios, em que cabe ao Cade – e não aos investigados – o ônus de provar que houve eliminação desarrazoada de parcela substancial da concorrência no mercado brasileiro.  Em um cenário como esse não haveria lugar para medidas acautelatórias, interferindo de forma imediata sobre um sistema estabelecido há quase duas décadas. Antes de suspender a vigência do acordo, seria prudente avaliar, no detalhe, estudos e informações quanto aos seus impactos sob a ótica concorrencial.

Outro aspecto que chama atenção na análise inicial da Superintendência do Cade é a ausência de qualquer consideração sobre a participação do governo federal na moratória da soja. Atualmente são signatários do acordo o Ministério do Meio Ambiente, o Ibama, o Instituto Nacional de Pesquisas Espaciais (Inpe) e o Banco do Brasil.

A Lei 12.529/11 não faz distinção entre as pessoas jurídicas de direito público ou de direito privado para fins de aplicação das normas sobre infrações à ordem econômica (vide art. 31). Nesse sentido, o Cade já aplicou pena a empresas públicas e sociedades de economia mista por ele investigadas em outras ocasiões[8]. Porém, o próprio Cade reconhece a limitação dos seus poderes no que se refere à administração pública direta (federal, estadual ou municipal), cingindo-se, nesses casos, a aconselhar os entes públicos sobre melhores práticas concorrenciais (advocacia da concorrência)[9].

Além disso, o Cade, historicamente, reconhece a imunidade antitruste, explícita ou implícita, aplicável a determinados setores ou agentes econômicos privados quando a atuação ou participação estatal impede ou desaconselha a adoção de conduta diversa (em virtude de lei, regulamento, edital etc.)[10].

A primeira (imunidade explícita) decorre de previsão expressa (constitucional ou legal). A segunda (imunidade implícita) advém da incompatibilidade entre as previsões contidas na lei concorrencial e políticas públicas, em especial em virtude de regulação específica, mas não se limitando a ela[11].

A moratória da soja é um exemplo didático da segunda modalidade. Trata-se de um acordo multilateral, com participação do governo federal, que instrumentaliza uma política pública, em linha com as metas de desmatamento zero oriundas de compromissos internacionais.

O fato de ser um instrumento de natureza consensual – e não uma política unilateralmente imposta – é absolutamente irrelevante, já que “[a]s expectativas e os direitos derivados de atividades estatais devem ser protegidos, sob o pressuposto de que os particulares têm a fundada confiança em que o Estado atua segundo os princípios da legalidade, moralidade e da boa-fé. (…) Os particulares orientam a própria conduta de acordo com as condutas estatais. A participação estatal na produção de uma situação produz a confiança do particular.”[12] (os destaques são nossos).

Haveria espaço para a atuação do Cade em situações como essa? A resposta não é trivial. De um lado, não se pode, imotivadamente, afastar a competência do Cade, em particular na falta de previsão expressa nesse sentido. De outro lado, é preciso reconhecer que, a depender da abrangência ou da profundidade das regras adotadas, o espaço para a atuação da autoridade concorrencial fica sensivelmente limitado[13].

Na Nota Técnica que inicia o processo administrativo em face das empresas exportadoras de soja, não há referências – ao menos em sua versão pública – a comportamentos coordenados não abarcados pelas regras da moratória. A preocupação da autoridade parece estar centrada no acordo em si, e não em eventuais espaços porventura deixados em aberto pela regulação. Nesse sentido, a investigação aparentemente questiona comportamentos com relação aos quais os agentes econômicos gozariam de imunidade antitruste.

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Nesse contexto, sem elevar a concorrência a princípio absoluto e inafastável[14], mas buscando preservar o importante papel do Cade em prol da economia brasileira, vislumbramos dois caminhos a serem trilhados, de forma não excludente:

atuação repressiva nos espaços não regulamentados, caso sejam observados comportamentos oportunistas de agentes econômicos (públicos ou privados) em relação à moratória da soja – o que é aventado hipoteticamente, apenas para fins argumentativos, já que não parecem existir indícios a esse respeito nos autos públicos da investigação; e
atuação via advocacia da concorrência, contribuindo para aprimorar aspectos relacionados à implementação, à governança, ao acompanhamento ou à transparência do acordo, se e quando necessário.

Longe de ser um antagonista, consideramos que o Cade tem vasta experiência, além de um ferramental importantíssimo para se tornar um forte aliado do governo federal, das empresas e da sociedade civil na defesa do meio ambiente, zelando para que a sustentabilidade e as condições concorrenciais na cadeia da soja estejam em perfeito alinhamento.

[1] §134 da Nota Técnica n. 73, emitida no Processo Administrativo n. 08700.005853/2024-38.

[2] Disponível em: https://www.youtube.com/watch?v=KHSLUt8lFIU

[3] Conforme manifestação do Ministério do Meio Ambiente, o acordo, que já tem quase duas décadas, teria produzido resultados “inegáveis para a proteção ambiental”. Nesse sentido, vide: https://forbes.com.br/forbesagro/2025/08/ministerio-do-meio-ambiente-manifesta-preocupacao-com-decisao-do-cade-sobre-moratoria-da-soja/

[4] Vide Termo de Compromisso da Renovação da Moratória da Soja disponível em: https://www.sojanalinha.org/wp-content/uploads/2023/05/Moratoria-Soja-Amazonia.pdf

[5] Nota Técnica n. 73, Processo Administrativo n. 08700.005853/2024-38, em trâmite perante o CADE.

[6] Processo Administrativo n. 08012.002493/2005-16, entre outros.

[7]Por se diferenciar de um cartel – que, na prática judicante deste Conselho, é tido como um ilícito por objeto, sobre o qual recai presunção de potencialidade lesiva, bastando comprovação da materialidade e autoria do acordo – e diante da ausência de consolidação jurisprudencial, doutrinária e teórica sobre os efeitos de boicotes coletivos, a conduta apurada neste caso faz jus a um exame de regra da razão.” (voto da então conselheira Paula Farani Azevedo Silveira no Processo Administrativo n. 08700.008751/2015-83, instaurado em face do Órgão de Gestão de Mão-de-Obra do Trabalho Portuário Avulso do Porto Organizado do Rio Grande e outros). De forma similar, vide Averiguação Preliminar n. 08012.007704/2004-18, na qual foi afastada a configuração de cartel, em razão do desenho adotado pelo edital.

[8] Nesse sentido, vide o Processo Administrativo n. 08700.003070/2010-14, em face do Banco Brasil e o Processo Administrativo n. 08012.011881/2007-41, em face da Petrobrás.

[9] Vide, nesse sentido, o voto da então Conselheira Relatora Lúcia Helena Salgado, há quase 3 décadas,  ao apreciar a Averiguação Preliminar n.º 08000.025952/96-54, instaurada em face do Departamento de Aviação Civil: “trata-se de autoridade no exercício constitucional e legal de seu poder regulamentar, podendo o CADE, em situações como esta, e em concordância com o que vem sendo entendido e decidido por este Plenário, expedir recomendações ou solicitar providências para o cumprimento da Lei caso verifique, na atividade regulatória, uma norma incompatível com os princípios impostos pela concorrência no mercado”.

[10] Nesse sentido, vide Nota Técnica 241/2013 na Averiguação preliminar n. 08012.008548/2009-17: “não é ilícito haver classificação dos tipos de produtos comercializados, sendo tal fato decorrência de um processo saudável de padronização, o qual tende a diminuir assimetrias de informação. Mais, a classificação usada pelo setor é usada pela autoridade máxima do País na área agrícola, o Ministério da Agricultura, Pecuária e Abastecimento – MAPA e, também, internacionalmente. Assim, não se deve nem se pode afirmar que a simples utilização de classificação seja conduta contrária à concorrência, pelo contrário, ao diminuir as dúvidas contratuais e a assimetria de informações, ela seria pró-concorrencial”.

[11] No Brasil, o tema das imunidades implícitas e suas limitações é abordado com profundidade, por Calixto Salomão Filho (vide, por exemplo, Direito concorrencial: as estruturas e Regulação da atividade econômica: princípios e fundamentos jurídicos), entre outros juristas. Na jurisprudência dos tribunais pátrios, merece destaque o julgado do STJ (rel. Min. Napoleão Nunes Maia Filho) nos Recursos Especiais interpostos por Liquigás Distribuidora S.A. e outras em face do CADE (REsp 1.390.875/RS j. em 19.06.2015). O voto conclui que “não houve qualquer formação de cartel, mas sim o cumprimento de regras pré-estabelecidas e impostas pelo Poder Público que impunham o tabelamento de preços do GLP e a forma de distribuição pelo chamado Sistema Integrado de Abastecimento”.

[12] Marçal Justen Filho. Curso de Direito Administrativo. 7 ed., Belo Horizonte: Fórum, 2011, p. 1.239.

[13] A esse respeito: Caio Mário da Silva Pereira Neto e José Inacio Ferraz de Almeida Prado Filho. Espaços e interfaces entre regulação e defesa da concorrência: a posição do CADE. Revista Direito GV, v. 12, n. 1, pp 13-48, São Paulo, jan-abr 2016. Vide, ainda, Priscila Brolio Gonçalves: Recusa de contratar acesso a bens essenciais: problema regulatório ou antitruste?. In: Pedro Zanotta, Paulo Brancher. (org.). Desafios Atuais da Regulação Econômica e Concorrência. 1ed. São Paulo: Atlas, 2010, v. 1, pp. 263-287.

[14] A própria Lei 12.529/11 estabelece, em linha com a CF/88, que a prevenção e a repressão às infrações contra a ordem econômica devem ser orientadas “pelos ditames constitucionais de liberdade de iniciativa, livre concorrência, função social da propriedade, defesa dos consumidores e repressão ao abuso do poder econômico”. A concorrência não é um fim em si mesma, mas um dos pilares da ordem econômica que, “fundada na valorização do trabalho humano e na livre iniciativa”, tem, por sua vez, o objetivo de “assegurar a todos existência digna, conforme os ditames da justiça social” (art. 170 da CF/88).

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