“Eu tô te explicando
Pra te confundir
Eu tô te confundindo
Pra te esclarecer
Tô iluminado
Prá poder cegar
Tô ficando cego
Prá poder guiar”
Tom Zé, “Tô”, do álbum Estudando o Samba, 1976.
Depois que o ministro Luís Roberto Barroso se valeu do darwinismo social para condenar a legislação trabalhista, agora foi a vez do ministro Gilmar Mendes partir para o ataque em outro evento público patrocinado pelo empresariado (Lide), pregando que a CLT deve ser abolida por interpretação constitucional.
Os ministros Barroso e Gilmar, que nunca tiveram qualquer autoridade doutrinária em Direito do Trabalho, jamais tendo escrito um reles artigo sobre a matéria (cujos princípios fundamentais são por ambos deliberadamente ignorados em seus votos e pronunciamentos), resolveram agora assumir o papel de profetas da disciplina, decretando sua agonia iminente e necessidade de “adaptação” aos ditames do mercado e da tecnologia.
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Curiosamente, apresentam sua profecia apocalíptica em fóruns empresariais plutocráticos e conclaves organizados por advogados patronais, onde, claro, são aplaudidos com regozijo, como se fossem destacados líderes da categoria.
O discurso dos ministros é sempre o mesmo: vivemos uma maravilhosa e deslumbrante revolução tecnológica, diante da qual a legislação trabalhista tradicional se tornou obsoleta, devendo ser abandonada em prol de um “novo” Direito do Trabalho, no qual o trabalhador determinará as condições de contrato sem a intervenção do Estado.
Ou seja, o trabalhador deve aceitar o determinismo tecnológico e um retorno ao século 19, quando as relações de trabalho eram reguladas pelo Direito Civil, com respeito absoluto à autonomia da vontade e à liberdade de contrato (viva a Era Lochner!). Aliás, segundo esse mesmo discurso, não existe mais o “trabalhador fabril”, mas sim o “colaborador”, o “microempreendedor individual”, o “nanoempresário”.
Essa retórica sofista, que não tem consistência alguma (já que não existe iPhone nem computação em nuvem sem “trabalhador fabril” e o trabalhador “não fabril” continua sendo trabalhador sujeito de direitos), é construída sobre inúmeras falácias argumentativas.
É evidente que estamos passando por uma revolução tecnológica de dimensões profundas, mas ela não significou a “liberdade” do trabalhador ou a sua transformação em microempresário. A tecnologia não fez desaparecer, em um passe de mágica, a assimetria de poder inerente à relação capital-trabalho.
As chamadas “novas formas de trabalho”, como o de entregadores de aplicativo, apenas configuram novos mecanismos de exploração do trabalhador e de intensificação do trabalho, agora controlado e medido por algoritmos e sistemas de controle remotos e “invisíveis”.
Todos os estudos contemporâneos de sociologia do trabalho na Europa, nos Estados Unidos, no Japão e aqui mesmo no Brasil (estudos que os ministros nunca citam porque talvez não os convenham) dedicados a examinar o trabalho no mundo atual apontam para o surgimento do neotaylorimo, com a metrificação do trabalho e a sujeição dos trabalhadores sendo determinada e programada por softwares, semelhantes aos métodos de controle de trabalho desenvolvidos pela Amazon (que, diga-se, tem 500 mil trabalhadores batendo cartão de ponto todos os dias, inclusive domingos e feriados).
Por isso, o mundo desenvolvido, especialmente a Europa, caminha no sentido de aumentar a proteção do trabalhador contra o avanço das novas ferramentas tecnológicas, permitindo, por exemplo, que empregados e sindicatos tenham acesso aos códigos-fonte dos programas que são aplicados para controlá-los, discipliná-los e demiti-los. Nada disso passa pela cabeça dos falsos profetas do Direito do Trabalho, que desejam, ao contrário, diminuir as proteções legais do trabalhador.
A defesa da atualidade e necessidade do Direito do Trabalho no tempo presente não é, como infantilmente sugeriu Barroso em sua lamentável e vexatória palestra na USP, um esforço de deter o curso da história ou de reverter o progresso tecnológico, mas sim de fazer com que os efeitos nocivos da tecnologia em face dos trabalhadores sejam mitigados, remediados ou eliminados por meio da imposição de normas jurídicas protetivas da classe trabalhadora.
A quarta revolução industrial que vivenciamos, por mais radical que seja, não foge do que já se experimentou nas suas etapas anteriores: a cada novo salto tecnológico, formas inéditas de exploração do trabalho surgem e a norma jurídica precisa conter os efeitos maléficos gerados neste processo. Os trabalhadores, em todo o mundo, estão trabalhando mais horas e em ritmos mais intensos. A solução para esse problema é mais regulação – e não menos.
É curioso que os mesmos ministros que defendem regulação das redes sociais para evitar que elas sejam usadas para o abuso de crianças e ataques à democracia se negam a aceitar que os instrumentos de trabalho e métodos de organização da força laboral criados pelas novas tecnologias também podem produzir efeitos deletérios em relação aos trabalhadores.
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Desde que o homem começou a produzir lâminas de pedra no paleolítico, se percebeu que a tecnologia invariavelmente produz efeitos adversos que se voltam contra a própria sociedade humana: a faca ajudava a matar animais, descarná-los e prepará-los como alimento. Mas esse mesmo instrumento também era uma arma capaz de gerar homicídios na comunidade.
Todas as tecnologias geram efeitos adversos que precisam ser contidos, reduzidos ou eliminados mediante regulação, como por exemplo a energia nuclear. E isso, claro, vale para os efeitos maléficos que os novos métodos de produção geram sobre o trabalhador e sobre sua organização como força laboral. Não há nada de novo nessa compreensão. Como diz o professor italiano Giuseppe Ludivoco, da Uniservisitá Degli Studi di Milano, “o Direito do Trabalho é companheiro de viagem do progresso tecnológico”.
Acreditar que as novas tecnologias desenvolvidas dentro de um sistema capitalista “libertam o trabalhador” e eliminam a necessidade de proteção legal da classe trabalhadora é um prognóstico totalmente dissociado da realidade, digno dos falsos profetas do apocalipse.