Utilidade pública à paulista: eficiência ou precaução na delegação de competências?

O desafio primordial do gestor público, especialmente aqueles com mandatos eletivos, é ser responsivo às demandas sociais, cada vez maiores e mais complexas, demandando soluções inovadoras e eficientes a ritmo acelerado. A população busca por melhorias visíveis: escolas de melhor qualidade, mais estradas, transporte público eficiente e menos burocracia. Independentemente do campo político, há um anseio por respostas aos desafios sociais, econômicos e políticos.

Na esteira da busca por soluções mais eficientes em gestão pública, o Governo do Estado de São Paulo realizou uma reforma regulatória, com enfoque primordial nas agências reguladoras estaduais, culminando na edição da Lei Complementar 1.413/2024, tema complexo e que demanda um debate à parte.

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Para regulamentar essa legislação, foi publicado o Decreto 69.339, de 4 de fevereiro de 2025, que trouxe uma solução inovadora no âmbito dos projetos de infraestrutura entre estados e municípios: a delegação da competência para declarar a utilidade pública ao secretário de Parcerias em Investimentos, no âmbito dos serviços públicos que lhe são de competência e que sejam objeto de contratos de parceria ou de projetos integrantes do Programa de Parcerias de Investimentos do Estado de São Paulo.

A possibilidade, apesar de inovadora no âmbito estadual – e até onde se tem informação – também no nível municipal, já ocorre nas matérias de competência da União, em que há uma tradição de delegação de poderes expropriatórios aos titulares de ministérios ligados à infraestrutura, como atualmente, ao ministro de Portos e Aeroportos, por exemplo.[1]

Cabe destacar que a declaração de utilidade pública, notadamente para fins de desapropriação, prevista no Decreto-Lei federal 3.365/1941, é um dos institutos mais sensíveis do direito brasileiro, já que afeta um dos direitos fundamentais previstos na Constituição da República, o direito de propriedade.

Não se questiona, todavia, a compatibilidade do instituto com o regime jurídico vigente, já que a própria Constituição prevê que a propriedade atenderá a sua função social, além de solidificação, no texto constitucional, do inequívoco direito expropriatório do Estado.[2]

No entanto, apesar da previsão constitucional e legal do instituto no ordenamento pátrio, deve ser destacada a sensibilidade do seu uso descomedido. Não por acaso, a competência para declarar a utilidade pública pertence ao Chefe do Poder Executivo.[3] O instituto da desapropriação deve ser utilizado, assim, quando há interesse público na restrição do direito individual da propriedade para potencializar um uso coletivo e social.

É a lição de Odete Medauar: “Sob o ângulo do direito privado, a desapropriação representa um modo de perda da propriedade. Sob o enfoque do direito público, configura um meio de aquisição de bem público ou um instrumento de realização de atividades de interesse público, inclusive no tocante a mais justa distribuição da propriedade”.[4]

Trata-se, portanto, de uma intervenção estatal na propriedade com o objetivo de viabilizar a abertura de vias públicas, construção de equipamentos de saúde e educação, requalificação urbana ou até mesmo de preservação de bens históricos e culturais.

Não é por menos que no exemplo citado, as hipóteses em que a competência presidencial de declaração de utilidade pública é delegada, são justamente aquelas que possibilitam a implantação de infraestruturas coletivas, como as de transporte.

A delegação se justifica, como visto, na necessidade de desburocratizar a proposição e o andamento de projetos estratégicos e que visam a melhoria da infraestrutura pública, muitos dos quais dependem do uso dos poderes expropriatórios previstos na Constituição e na legislação aplicável.

Para garantir o sucesso de projetos de infraestrutura, é crucial simplificar e agilizar os procedimentos burocráticos relacionados à sua proposição e implementação. A redução da burocracia pode significar a eliminação de etapas desnecessárias, a otimização dos processos de licenciamento e aprovação, e a criação de mecanismos mais eficientes para lidar com questões legais e administrativas. Isso não apenas acelera o tempo necessário para levar os projetos do papel à realidade, mas também pode reduzir os custos envolvidos, tornando o investimento público mais eficaz e sustentável.

Além disso, a simplificação dos procedimentos burocráticos pode contribuir para aumentar a transparência e a prestação de contas no processo de tomada de decisões do governo. Ao tornar os trâmites mais acessíveis e compreensíveis para todos os envolvidos, incluindo cidadãos, empresas e organizações da sociedade civil, há uma maior probabilidade de que as ações do governo sejam percebidas como legítimas e bem fundamentadas. Isso, por sua vez, pode promover um maior engajamento da comunidade e fortalecer a confiança nas instituições públicas.

Os decretos de desapropriação desempenham um papel crucial nesse processo, pois conferem ao governo a autoridade necessária para adquirir propriedades privadas para fins públicos. Ao delegar os poderes expropriatórios do governador aos secretários responsáveis pelos setores relevantes, a simplificação de trâmites pode ser ainda mais facilitada. Isso porque permite uma tomada de decisão mais ágil e descentralizada, na qual os responsáveis diretos pela implementação dos projetos têm a autonomia para conduzir as negociações e procedimentos necessários. Dessa forma, evitam-se atrasos decorrentes de uma centralização, agilizando o avanço das iniciativas estratégicas do governo.

No cenário paulista, parece acertada a decisão governamental de delegação da competência declaratória de utilidade pública ao secretário de Parcerias em Investimentos. Veja-se que a delegação proposta é comedida e condicionada: só há delegação em serviços públicos de competência da pasta, como transporte, saneamento etc., e para fins de execução de contratos de parcerias, ou modelagem de projetos integrantes do PPI-SP. Qualquer declaração fora dos limites delegados é ilegal e nula.

Adiciona-se a percepção de adequação da medida, a manutenção da competência do governador para declaração da utilidade pública de bens que se adequem à regra delegatória, ou que a extrapolem, além de, como todo ato delegado, a possibilidade de que o governador, em caso de discordância com alguma declaração expropriatória, sustar o ato, possibilitando um controle da competência delegada.

Do ponto de vista da viabilidade jurídica da delegação, apesar do exemplo federal, vale adentrar as especificidades do regime jurídico estadual. Sabe-se, assim, que a declaração de utilidade pública pode ser feita por decreto editado pelo governador.

Trata-se, portanto, de ato administrativo, conforme leciona Hely Lopes Meirelles: “A declaração expropriatória pode ser feita por lei ou decreto em que se identifique o bem, se indique seu destino e se aponte o dispositivo legal que a autorize. Como se trata, entretanto, de ato tipicamente administrativo, consistente na especificação do bem a ser transferido compulsoriamente para o domínio da Administração, é mais próximo do Executivo, que é o Poder administrador por excelência” [5].

Como ato administrativo, a declaração expropriatória, por utilidade pública, pode ser delegada pela autoridade competente, por ato próprio. É o que dispõe a Constituição do Estado de São Paulo:

Art. 47.  Compete privativamente ao Governador, além de outras atribuições previstas nesta Constituição:
(…)
XVI – delegar, por decreto, a autoridade do Executivo, funções administrativas que não sejam de sua exclusiva competência;
A delegação é, assim, ato essencial ao funcionamento do Estado, facilitando a agilidade e a rapidez na tomada de decisões, sendo amplamente reconhecida pelas Cortes Superiores para atividades de competência privativa – não exclusiva – do Governador do Estado:
“I. A descentralização administrativa pressupõe a delegação de competência de uma autoridade investida de poderes de administrar, cuja execução pode delegar a outros agentes públicos” (STJ. RMS 3.614/DF, 5.ª T., rel. Min. Jesus Costa Lima, j. 14.12.1994, DJ 13.02.1995).

O governador de São Paulo, consoante disposto no inciso XVI, acima transcrito, pode delegar, por ato próprio, a qualquer autoridade do Executivo, atribuições administrativas que não sejam de sua exclusiva competência.

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Apesar de juridicamente viável, eventual replicação do modelo por outros estados e municípios deve levar em consideração as precauções adotadas no modelo federal e no modelo estadual, como boa prática de equilíbrio, entre a potencialidade e sensibilidade do instituto expropriatório e a busca pela eficiência e desburocratização.

A delegação do ato expropriatório, dessa forma, nas experiências realizadas, pode ajudar a mitigar um estigma social quanto a celeridade e o desempenho de obras e intervenções de infraestrutura realizadas pelo setor público. O modelo paulista, a ser observado como teste de um mecanismo mais eficiente, deve ser acompanhado pelo setor e, se confirmado como benéfico, pode ser replicado por outros entes subnacionais que também buscam expandir investimentos públicos e prestar um serviço estatal adequado e alinhado às expectativas da população.

[1] Decreto federal nº 11.354/2023, Anexo I: Art. 1º.  O Ministério de Portos e Aeroportos, órgão da administração pública federal direta, tem como área de competência os seguintes assuntos:

(…)

Parágrafo Único. As competências atribuídas ao Ministério no caput compreendem:

(…)

V – a declaração de utilidade pública, para fins de desapropriação, supressão vegetal ou instituição de servidão administrativa, dos bens necessários à construção, à manutenção e à expansão da infraestrutura em transportes, na forma prevista em legislação específica;

[2] Constituição da República Federativa do Brasil: Art. 5º (…)

XXII – é garantido o direito de propriedade;

XXIII – a propriedade atenderá a sua função social;

XXIV – a lei estabelecerá o procedimento para desapropriação por necessidade ou utilidade pública, ou por interesse social, mediante justa e prévia indenização em dinheiro, ressalvados os casos previstos nesta Constituição;

[3] Decreto-Lei federal nº 3.365/1941: Art. 6o A declaração de utilidade pública far-se-á por decreto do Presidente da República, Governador, Interventor ou Prefeito.

[4] MEDAUAR, Odete. Direito Administrativo Moderno. 2. ed. rev. e atual. São Paulo: Revista dos Tribunais, 1998. p. 366.

[5] MEIRELLES, Hely Lopes. Direito administrativo brasileiro. 22. ed. São Paulo: Malheiros, 1991, p. 525.

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