Junta profissional e o valor da divergência: análise crítica do PDL 784/17

A recente aprovação do PDL 784/2017, que susta a Resolução Normativa 424/2017 da Agência Nacional de Saúde Suplementar (ANS), reacende um debate crucial para a saúde suplementar: a suposta eliminação do instrumento da junta profissional para dirimir divergências entre médicos assistentes e operadoras. A pergunta que se impõe é se essa medida radical realmente atende ao interesse do consumidor e à qualidade do cuidado, ou representa um retrocesso perigoso.

É fundamental esclarecer um equívoco central do projeto: a RN 424 da ANS não criou o instituto da junta profissional. Ele já estava previsto na Consu 08/1998 como solução técnica e ética para casos de autorização prévia onde há discordância.

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O papel da agência foi, justamente, regulamentar seu funcionamento, estabelecendo regras claras de transparência e procedimento para evitar abusos e garantir segurança jurídica a todos os envolvidos. O PDL, ao sustar a norma regulamentadora, não elimina a previsão da junta – que permanece na Consu – mas sim destrói o marco que a tornava um processo íntegro e previsível.

Ao analisar os argumentos utilizados para justificar a medida, verifica-se uma profunda incompreensão sobre o funcionamento prático do instituto e do mercado de saúde suplementar.

A alegação de que a junta levaria a “negativas padronizadas” ignora que ela é justamente a segunda etapa, acionada para solucionar uma negativa inicial. O problema dos pedidos padronizados, quando existem, deve ser combatido em sua origem, não pela eliminação do canal de solução técnica.

Afirma-se também que a junta permite “recusas baseadas em critérios financeiros”. A RN 424 é categórica ao vedar isso, restringindo a discussão estritamente a aspectos técnicos. A obrigatoriedade de apresentação de três marcas de produtos, citada como um entrave, é uma conquista de segurança pós-investigação da “Máfia das Próteses”, destinada a coibir conluios muitas vezes associados a uma falha de mercado denominada “problema de agência”, portanto, para proteger tanto o paciente quanto o próprio sistema.

Quanto à “composição sem especialização adequada”, a norma da ANS exige expressamente que os profissionais da junta sejam especialistas na área em discussão. O desrespeito a esse critério, de fato, configura irregularidade passível de punição pela agência e merece ser fiscalizado.

O argumento mais frágil talvez seja o de “desrespeito à prescrição do médico assistente”. Questionar uma prescrição com base em evidências técnicas, em um colegiado de pares, não é desrespeito; é a essência de um sistema de freios e contrapesos que garante qualidade e segurança. Seria o equivalente a afirmar que um recurso judicial representa desrespeito à sentença de primeira instância, no âmbito do Judiciário.

As demais alegações – como “indução à desistência do procedimento”, “decisões sem base científica”, “imposição de alternativas ineficazes ou inadequadas” ou “uso de pareceristas com vínculo” – são contrabalanceadas pelas regras da Resolução Normativa. A decisão da junta versa sobre a cobertura obrigatória pelo plano, não sobre a realização do procedimento, que permanece uma escolha do paciente. A decisão da junta profissional decide se o plano de saúde deve cobrir o procedimento, sem qualquer interferência na relação médico paciente. A escolha dos desempatadores é feita por acordo entre as partes, e a indicação de membros de sociedades de especialidade garante lastro científico.

O cerne da questão é que os problemas apontados no relatório do PDL – como eventuais abusos por parte das operadoras – não são falhas da junta profissional, mas sim de sua aplicação. A solução, portanto, não é extinguir o regulamento, mas sim empoderar a ANS para fiscalizar com mais rigor o seu cumprimento e punir os infratores.

A pergunta que fica é: a quem realmente interessa a desregulamentação de um instrumento que institucionaliza o contraditório técnico? O debate sobre a melhoria dos processos de autorização é necessário e bem-vindo. Mas deve ser conduzido com profundidade pela ANS, a agência reguladora competente, com transparência e base em dados concretos, não por meio de um projeto transversal e raso que, travestido de defesa do consumidor, pode na verdade colocar em risco a saúde do paciente em favor de interesses econômicos escusos.

Em regra, não deveria ser papel do Congresso Nacional atuar na busca por soluções de supostos problemas regulatórios, quando existem órgãos reguladores com competência legal e técnica para exercer tal atividade.

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Na prática, cada vez identifica-se intervenções do parlamento sob falaciosos argumentos, assumindo – oportunamente – posturas populistas, em detrimento da avaliação técnica e responsável do tema, sendo certo que, ao final do dia, o resultado é o enfraquecimento institucional das autarquias, bem como o agravamento do ruído na comunicação entre o setor e a sociedade.

O pedido médico é a materialização de um juízo clínico, mas não é um título executivo extrajudicial. O valor da divergência técnica resolvida por pares é um pilar da medicina baseada em evidências e da segurança do paciente, implementada inclusive pelo Judiciário com a criação dos Núcleos de Apoio Técnico aos Magistrados. Desmantelar seu marco regulatório é um desserviço a todos, exceto àqueles que temem a luz da técnica sobre seus interesses.

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