Julgamento de Bolsonaro coroa ascensão do ‘tarcisismo’ como alternativa à direita

Nesta semana, começa o desfecho da agonia de Jair Bolsonaro (PL), que dificilmente vai escapar da condenação por tentativa de golpe de Estado no julgamento que se inicia nesta terça-feira, (2/9), na 1ª Turma do Supremo Tribunal Federal (STF). Distante, porém, está o fim da agonia da democracia brasileira e, portanto, da ordem constitucional pós-ditadura militar.

Sem seu capitão, o bolsonarismo está prestes a ganhar sobrevida num hospedeiro chamado tarcisismo, uma referência ao mais provável líder daquela extrema direita que se apresenta como centro-direita: o governador de São Paulo, Tarcísio de Freitas (Republicanos), desponta como o mais provável candidato da direita com chances contra a quase certa tentativa de Luiz Inácio Lula da Silva (PT) de conquistar um quarto mandato pelo voto democrático.

Conheça o JOTA PRO Poder, plataforma de monitoramento que oferece transparência e previsibilidade para empresas

Conforme já expliquei em colunas anteriores, o tarcisismo combina três grandes vertentes da direita brasileira, todas com raízes mais fortes em São Paulo do que em qualquer outro estado: o malufismo, com um discurso forte acerca de investimentos em infraestrutura – em particular de transportes –, ainda que isso não signifique um real desenvolvimento da sociedade; o tucanismo, repleto de uma retórica tecnocrática que busca uma democracia formal, mas com certa ojeriza ao povo; e, claro, o bolsonarismo, ou seja, o populismo de direita com traços nada sutis de um nacionalismo branco-cristão.

Em aspectos fundamentais do país, no entanto, o tarcisismo pouco se diferencia de seu pai político, que é o movimento bolsonarista. Tarcísio – e os demais governadores de direita que se colocam como presidenciáveis – não foram capazes de articular um discurso de defesa do país contra a chantagem imposta por Donald Trump não porque defendem Bolsonaro e querem herdar seus votos por razões táticas. A direita como um todo torna-se bolsonarista ao negar a nação, em particular os fundamentos sincréticos sobre os quais certa ideia de Brasil foi construída desde a Revolução de 1930.

Com isso, não enxergam que há vida fora da subordinação ao Norte Global, em particular aos Estados Unidos, o que é crucial para sobrevivermos em meio a três fenômenos entrelaçados: a ascensão autocrática no Ocidente liderada por Trump, sua ojeriza ao multilateralismo que empodera potências médias como o Brasil e a reemergência de China e Índia como centros da política e economia globais após 200 anos de liderança do Atlântico Norte propiciada pelo dueto Revolução Industrial e imperialismo.

Na agenda econômica, o tarcisismo sinaliza ser o bolsonarismo pragmático. Se a economia brasileira precisa livrar-se dos voos de galinha intermitentes, é pouco provável que consiga fazê-lo abraçando um liberalismo desenfreado, hoje nem sequer praticado pelos países do Norte Global. Por que não o fazer numa roupagem tecnocrática, em que direitos sociais assegurados pela Carta de 1988 sejam removidos sob a égide do empreendedorismo?

Nem mesmo Paulo Guedes logrou tal façanha durante o governo Bolsonaro, seja por causa da pandemia de Covid-19, seja porque, ao ser tão explícito sobre sua agenda econômico-social, gerou oposição significativa mesmo entre integrantes da base de sustentação do presidente-capitão e futuro presidiário.

O tarcisismo é, portanto, o meio pelo qual o bolsonarismo pode sobreviver e desafiar a ordem constitucional, não mais se opondo a ela frontalmente, mas procurando solapá-la e eventualmente substituí-la por meio de infiltrações em seu edifício principal: a Constituição de 1988. O passo inicial para tanto não será dado na economia, senão na política, com a anistia/indulto prometido a Bolsonaro e aos golpistas/revolucionários reacionários de 8 de janeiro.

Já há dúvidas sobre se Bolsonaro vai cumprir alguma pena atrás das grades por causa de seu aparente delicado estado de saúde aos 70 anos. Mais claro, no entanto, é a falta de compromisso do tarcisismo com a agenda social, a democracia e a soberania nacional. A indumentária desse movimento político que se consolida não como alternativa ao bolsonarismo senão sua continuidade por outras mãos exclui por ora os coturnos e demais elementos dos uniformes dos que servem em quartéis.

Traz no seu código de vestuário, no entanto, os sapatênis dos faria limers, alguns dos quais envolvidos no crime organizado, tal como demonstrado pela megaoperação que desnudou as conexões entre o mundo das finanças e os negócios ilícitos muitas vezes associados a pessoas marginalizadas pelo bolsonarismo: pretos, pobres, moradores de favelas, entre outras minorias sociológicas.

Informações direto ao ponto sobre o que realmente importa: assine gratuitamente a JOTA Principal, a nova newsletter do JOTA

Eis o que une o bolsonarismo e o tarcisismo: a oposição à ordem constitucional vigente e, portanto, uma postura antissistêmica. O último, no entanto, é capaz ainda de manter atores-chave das estruturas atuais no Brasil que vislumbra para o futuro: desregulação para um pretenso liberalismo que, na verdade, fortaleceria as atividades paralelas ao Estado; uma sensação de segurança menos resultante da ordem que da repressão desenfreada e ineficaz como política de combate ao crime – embora virtuosa para fortalecer milicianos e máfias que se beneficiam das fissuras no edifício institucional.

Enfim, fala-se aqui de um Brasil distante do ideal de soberania política e autonomia estratégica, subordinado a interesses externos e de joelhos para oligarcas tradicionais e novas elites que querem sua parte neste latifúndio regado não pelas lágrimas de crocodilo dos que ousaram empreender um golpe de Estado, mas pelo sangue dos deserdados deste chão.

Generated by Feedzy