Desempenho deliberativo e a importância do processo

A legitimação pelo procedimento é um dos maiores desafios da jurisdição constitucional em resposta à dificuldade contramajoritária e ao suposto déficit de legitimidade democrática. Jeremy Waldron, grande crítico da judicial review estadunidense, afirmava ter o parlamento mais condições de conduzir um debate aberto sobre direitos, enquanto cortes limitam a discussão e estão mais preocupadas em emoldurar questões constitucionais a tradições jurisprudenciais, comumente em monólogos.[1]

Para além da justificação democrática, porém, outro elemento se agrega ao maquinário da jurisdição constitucional: o papel dos tribunais como verdadeiro ator institucional no processo de reconstrução do direito por meio dos precedentes judiciais. Dessa forma, a maneira como as cortes produzem normas jurídicas torna-se relevante, pois as decisões representam instrumento de fala das cortes com a sociedade.

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O desenho institucional, portanto, deve ser suficiente para constranger as atividades dos tribunais na direção dos resultados que justificam sua existência e propósitos funcionais, como o caso do Supremo Tribunal Federal. Nesse contexto institucional, o processo importa como premissa de legitimidade normativa e democrática.

É precisamente por essa razão que, ao adotar-se um sistema de precedente, o legislador elaborou procedimento comprometido com o debate qualificado dos problemas jurídicos, como método de amplificação do contraditório e devido processo legal com os atores do processo e os atores sociais. A razão subjacente dessa lógica procedimental é permitir que os precedentes sejam produto de interpretação sincera e amadurecida com a sociedade. A formação de precedente não se confunde com o julgamento ordinário de um caso concreto, cujo objetivo imediato é tutela adequada e efetiva do direito material.

Por projetar efeitos normativos para além do caso concreto e prescrever normas jurídicas de orientação futura para a sociedade, os precedentes exigem das cortes vocacionadas a sua formação um processo decisório que assegure a sua legitimidade institucional e democrática, assim como o seu desempenho deliberativo[2].

No desenho processual do CPC/2015, isso implica publicidade reforçada, contraditório ampliado, participação de amicus curiae e, quando cabível, audiência pública.

Nada obstante essa premissa de comprometimento processual, o STF, em discussão incidental, na questão de ordem na Ação Rescisória 2876, ao decidir pela formação de precedente a respeito dos efeitos da declaração de inconstitucionalidade em relação à coisa julgada – controvérsia que habita o tribunal, em diferentes sentidos, pelo menos desde 2008, na ocasião de julgamento do RE 328.812[3] – adotou postura processual vinculada ao julgamento de caso concreto com efeito restrito às partes.

Sem pretensão de análise a respeito do conteúdo meritório da questão, cuja produção doutrinária e jurisprudencial é profícua e enunciativa da relevância da controvérsia, tenciona-se analisar a tomada de decisão em seu aspecto procedimental.

O caso concreto envolvia ação rescisória movida pela União, para fins de desconstituição de acórdão que debatia prazo decadencial para anulação de ato de concessão de anistia pela administração. Na decisão de recebimento da ação, o ministro relator indicou que a controvérsia se cingia da “duvidosa constitucionalidade da parte final do §8º do art. 535” do CPC”, denunciando a existência de questão prejudicial à resolução do caso concreto.

Ocorre que, sem que publicidade adicional fosse conferida ao julgamento e à fase pré-decisional de deliberação dos argumentos jurídicos que circundam o problema jurídico posto, o ministro relator, em julgamento virtual, apresentou voto com declaração de inconstitucionalidade –– o que foi sucedido com pedido de destaque para julgamento no espaço decisório do plenário presencial.

Em 23 de abril, após a realização das sustentações orais das partes do caso concreto e com a intervenção de apenas dois amici curiae[4], o STF resolveu a questão de ordem, com prescrição normativa de precedente, em decisão autodenominada de per curiam, na qual apreciou a constitucionalidade dos §§14 e 15 do art. 525 e §§7º e 8º do art. 535, do CPC, problemas que apenas foram suscitados e debatidos pelo tribunal na ocasião de julgamento.

Na decisão, o Tribunal entendeu que o § 15 do art. 525 e o § 8º do art. 535 do Código de Processo Civil devem ser interpretados conforme a Constituição, com efeitos ex nunc, com a declaração incidental de inconstitucionalidade do § 14 do art. 525 e do § 7º do art. 535. Para tanto, fixou três interpretações a título de teses de julgamento, quais sejam:

“1. Em cada caso, o Supremo Tribunal Federal poderá definir os efeitos temporais de seus precedentes vinculantes e sua repercussão sobre a coisa julgada, estabelecendo inclusive a extensão da retroação para fins da ação rescisória ou mesmo o seu não cabimento diante do grave risco de lesão à segurança jurídica ou ao interesse social. 2. Na ausência de manifestação expressa, os efeitos retroativos de eventual rescisão não excederão cinco anos da data do ajuizamento da ação rescisória, a qual deverá ser proposta no prazo decadencial de dois anos contados do trânsito em julgado da decisão do STF. 3. O interessado poderá apresentar a arguição de inexigibilidade do título executivo judicial amparado em norma jurídica ou interpretação jurisdicional considerada inconstitucional pelo STF, seja a decisão do STF anterior ou posterior ao trânsito em julgado da decisão exequenda, salvo preclusão (Código de Processo Civil, arts. 525, caput, e 535, caput)”.[5]

A escassez de informações a respeito das razões de decidir do caso não permite maiores investigações: o acórdão ainda está pendente de publicação.

O que se verifica do processo decisório levado a cabo no caso é que o Supremo realizou controle de constitucionalidade, na forma incidental, sem a observância adequada do procedimento voltado para a formação de precedentes. Essa não observância do procedimento impõe uma dificuldade importante da dimensão processual, com impactos na construção do desempenho deliberativo exigido de cortes com vocação de formação de precedente e constitucional.

O déficit deliberativo verificado no caso em análise consiste justamente na insuficiência da tarefa da contestação pública da questão constitucional posta para julgamento[6], na forma incidental, em questão de ordem, assim como na tarefa de deliberação decisória do plenário, que apresentou decisão denominada “per curiam”.

No caso concreto, as repercussões são relevantes e várias: (i) o STF não facultou a intervenção das pessoas jurídicas de direito público responsáveis pela edição da norma (§1º do art. 950 do CPC); (ii) não facultou a intervenção dos legitimados para o ajuizamento das ações objetivas, descritas no art. 103 da Constituição Federal (§2º do art. 950 do CPC); (iii) não amplificou a publicidade da questão constitucional incidental, de modo a promover a pluralização da discussão por órgãos e entidades com representatividade sobre o tema (art. 138 e §3º do art. 950 do CPC); e (iv) não promoveu o diálogo horizontal com o passado decisório da Corte sobre a questão, que já foi debatida em diversos precedentes, fato que acarreta déficit na responsividade argumentativa do tribunal como corte de precedentes[7].

Quanto ao ponto, importante notar que o legislador processual desenhou procedimento específico para a hipótese de superação de precedentes, no artigo 927 do CPC.

A legitimidade decorre não só da adequação do procedimento àqueles que participam diretamente dele, mas especialmente de que maneira o procedimento legitima-se perante aqueles que não participaram.[8] Essas balizas, chamemos assim, são essenciais para manutenção da confiança perante as instituições, e estão ligadas à própria estabilização das expectativas normativas que a sociedade nutre em relação a elas.

Nessa linha, Niklas Luhmann qualifica uma função simbólica do procedimento, na medida em que expõe símbolos que “unem sentimentos e, com a sua ajuda, conscientizam normas sociais e as convertem em lei pessoal”.[9] Esse mesmo autor explica que “o decurso do processo tem de poder ser presenciado pelos não-participantes. […] É decisivo que exista essa possibilidade. Ela fortalece a confiança, ou pelo menos impede a criação daquela desconfiança que se liga a todas as tentativas de guardar segredo”.[10]

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Exige-se das instituições deliberativas, como o STF, um compromisso ético com o engajamento deliberativo, método de tomada de decisão que distingue os modos de produção do direito legislado e jurisdicional. Afinal, na ausência de responsabilização democrático-eleitoral, as cortes têm de exibir qualidades distintas daquelas dos atores eleitos.

O caso em análise exigia observância a procedimento vocacionado à formação de precedente, especialmente diante de controvérsia jurídica com interpretações vacilantes nas últimas décadas. Frente a esse cenário, coloca-se em pauta a necessidade do imperativo categórico de ordem processual. Ou seja, ignorar esse itinerário procedimental e firmar “tese” em questão de ordem, sem o adequado desempenho deliberativo, fomenta a formação imatura e frágil de precedente judiciais em área de importância nuclear para o desenvolvimento da segurança jurídica e da estabilidade decisória.

[1] WALDRON, Jeremy. The core of the case against judicial review. Yale Law Journal, vol. 115. 2006.

[2] PESSOA, Paula. Supermaioria no Supremo Tribunal Federal. São Paulo: Revista dos Tribunais, 2025; MENDES, Conrado Hubner. Constitutional courts and deliberative democracy. Oxford: Oxford University Press, 2014; VALE, Andre Rufino. Argumentação constitucional: um estudo sobre a deliberação nos tribunais constitucionais. São Paulo: Almedina, 2019; MARINONI, Luiz Guilherme. Julgamento nas Cortes Supremas. 3 ed. São Paulo: Revista dos Tribunais, 2023.

[3] EMENTA: Embargos de Declaração em Recurso Extraordinário. 2. Julgamento remetido ao Plenário pela Segunda Turma. Conhecimento. 3. É possível ao Plenário apreciar embargos de declaração opostos contra acórdão prolatado por órgão fracionário, quando o processo foi remetido pela Turma originalmente competente. Maioria. 4. Ação Rescisória. Matéria constitucional. Inaplicabilidade da Súmula 343/STF. 5. A manutenção de decisões das instâncias ordinárias divergentes da interpretação adotada pelo STF revela-se afrontosa à força normativa da Constituição e ao princípio da máxima efetividade da norma constitucional. 6. Cabe ação rescisória por ofensa à literal disposição constitucional, ainda que a decisão rescindenda tenha se baseado em interpretação controvertida ou seja anterior à orientação fixada pelo Supremo Tribunal Federal. 7. Embargos de Declaração rejeitados, mantida a conclusão da Segunda Turma para que o Tribunal a quo aprecie a ação rescisória. (RE 328812 ED, Relator Gilmar Mendes, Tribunal Pleno, julgado em 06-03-2008, DJe 02-05-2008).

[4] Os Estados admitidos como amici curiae foram representados pelo Colégio Nacional dos Procuradores-Gerais dos Estados e do DF. O outro amicus curiae admitido foi a Confederação Nacional dos Transportes. As sustentações orais ocorreram na sessão do dia. 26.02.2025.

[5] Informações obtidas do sítio eletrônico da Supremo Tribunal Federal: https://noticias.stf.jus.br/postsnoticias/limites-para-acoes-rescisorias-com-base-em-decisoes-do-stf-serao-definidos-caso-a-caso/.

[6] MENDES, Conrado Hubner. Constitutional courts and deliberative democracy. Oxford: Oxford University Press, 2014.

[7] Cf. MENDES, Paulo. A coisa julgada no STF. Disponível em: https://www.jota.info/opiniao-e-analise/artigos/a-coisa-julgada-no-stf

[8] “Para poder estabilizar essas conjeturas de consenso relativas ao caráter obrigatório da decisão oficial, tem também de se fazer participar no procedimento os não-participantes. Claro que eles não terão acesso ao papel de oradores, mas procedimento, como drama, também a eles se destina.”(LUHMANN, Niklas. Legitimação pelo procedimento. Brasília: Editora Universidade de Brasília. 1980, p. 104).

[9] LUHMANN, Niklas. Legitimação pelo procedimento. Brasília: Editora Universidade de Brasília. 1980, p. 103.

[10] LUHMANN, Niklas. Legitimação pelo procedimento. Brasília: Editora Universidade de Brasília. 1980, p. 105.

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