A Argentina reconheceu perante a Corte Interamericana de Direitos Humanos (Corte IDH) que violou direitos fundamentais de Marcela Brenda Iglesias Ribaudo, morta aos 6 anos ao ser atingida por uma escultura de ferro de 250 quilos, em um espaço público em Buenos Aires.
O fato se deu em fevereiro de 1996, quando a menina participava de uma atividade infantil promovida pelo Banco Hipotecario Nacional, que consistia em um passeio recreativo pelo “Paseo de La Infanta”, um complexo cultural localizado no famoso bairro de Palermo, na capital argentina.
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Segundo testemunhas, a maioria das crianças brincava em uma área destinada a pedestres, onde estava a escultura de ferro, chamada “Elementos”, criada pelo artista Danilo Dazinger. Repentinamente, a referida escultura desabou em cima de Marcela Iglesias e a matou de imediato.
A morte originou um processo penal por homicídio culposo, lesões corporais culposas e violação do dever de cuidado, no qual foram indiciados o escultor da obra, o gerente da galeria de arte “Der Brucke”, responsável pela obra, e funcionários públicos incumbidos da fiscalização do local, entre agentes policiais e da prefeitura.
A investigação apontou que a “estrutura metálica estava em evidente estado de ferrugem e corrosão; que, apesar de seu grande tamanho e peso, estava fixada em apenas duas extremidades com uma única solda; e que nunca havia sido fixada adequadamente, considerando seu peso e proporções”.
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O julgamento, no entanto, foi adiado diversas vezes por causa de recursos e contestações impetrados pelos réus – ao todo, foram 117 apelações, conforme o relatório apresentado à Corte IDH. O processo acabou prescrito e, até o momento, ninguém foi responsabilizado.
Pedido da CIDH
Em razão dos fatos, a Comissão Interamericana de Direitos Humanos (CIDH) considerou que o Estado argentino violou os direitos à vida, à integridade física, à liberdade pessoal, ao acesso à justiça e à proteção judicial, em detrimento de Marcela Brenda Iglesias e de seus familiares.
A Comissão solicitou, como medidas de reparação, que a Corte ordene que o Estado indenize satisfatoriamente a família, que disponha de medidas de atenção à saúde física e mental deles, que ofereça “verdade judicial” e que adote medidas para fiscalizar atividades culturais.
O presidente da Comissão Interamericana de Direitos Humanos, José Luis Caballero Ochoa, relator para Infância e Adolescência, destacou que a importância jurisprudencial do caso, em audiência pública realizada na quarta-feira (20/8).
“Este caso possui aspectos de ordem pública e, em particular, permitirá à honorável Corte pronunciar-se sobre obrigações estatais de supervisão e fiscalização na concessão de espaços públicos, em particular em lugares onde se realiza atividades recreativas de crianças”, disse.
Declarações da família
Aos juízes da Corte, Nora Ester Ribaldo, mãe de Marcela, falou sobre o sentimento de impunidade em relação ao caso. “Trataram minha filha como se fosse nada. Ela tinha uma vida toda pela frente, era uma menina saudável, inteligente, extremamente carinhosa. Terminou ali: nos entregaram uma criança morta, com todos os ossos quebrados, e ninguém nunca nos deu uma explicação”.
Segundo ela, a Corte IDH era a última esperança que a família tinha de que se fizesse justiça. “Quando Marcela morreu, nós prometemos a ela que iríamos cobrar justiça. Depois de tantos anos, o fato de o caso ter chegado à Corte Interamericana, a mais importante da América, para nós é como dizer: bom, seu nome vai soar neste recinto e, se ela nos vê desde uma janela no céu, vê que seus pais estão lutando para que seja feita justiça por sua vida”.
O pai de Marcela, Eduardo Iglesias, lamentou ter sido silenciado pelo poder judiciário argentino por quase três décadas. “Este é o primeiro lugar que posso falar, que posso me expressar, porque sempre nos censuraram a palavra. Nunca pude falar com um juiz”.
O homem disse que tanto ele quanto a esposa carregam marcas emocionais profundas, que não se curam com o passar do tempo. “Dentro de mim há duas pessoas: ao mesmo tempo que quero justiça, não quero mais passar por esse sofrimento. Minha casa estava bem composta: havia minha esposa, minha filha, eu. Para nós, agora, só restaram espaços vazios”.
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Após o depoimento dos pais, o subsecretário de Direitos Humanos argentino, Alberto Julio Baños, manifestou solidariedade a eles e reconheceu a responsabilidade estatal pelas violações.
“Neste caso não há como fazer justiça. Já se passaram quase 30 anos. A justiça, 30 anos depois, não é justiça. Tudo o que podemos fazer é demonstrar empatia pelo senhor Iglesias, pela senhora Ribaldo, por todo seu calvário, seu desamparo impotente. Eu realmente sinto vergonha alheia por todos aqueles que, por ação ou omissão, contribuíram para que, durante 30 anos, na fase administrativa ou contenciosa internacional, não se encontrasse maneira de reparar o dano provocado”, declarou o subsecretário.
O advogado José Manuel del Cierro, representante das vítimas, defendeu que o reconhecimento de culpa não se reflita em sentença branda.
“O Estado da Argentina demonstrou desdém em relação à menina e a seus pais, à medida que demorou para oferecer uma solução satisfatória a seus pedidos, o que gerou a espera de 29 anos de processos nacionais e internacionais. Tal conduta reprovável não pode ser desconsiderada pelo reconhecimento claramente tardio, nem mitigar sua responsabilidade internacional”, pontuou.
O defensor cobrou uma punição exemplar. “Uma sanção exemplar é necessária para desestimular condutas violadoras de direitos humanos. Passaram-se 29 anos e hoje chegamos ao final de um caminho árduo, sinuoso, cheio de obstáculos, que só pôde ser transitado por Nora e Eduardo por causa do imenso amor a sua filha Marcela. O tempo é lento demais para aqueles que esperam”.