A Constituição de 1988 consagrou um relevante avanço normativo ao reconhecer, de forma expressa, a diversidade étnica e cultural do Estado brasileiro, atribuindo aos povos indígenas um conjunto de direitos fundamentais específicos, notadamente aqueles relativos à posse e ao usufruto de suas terras tradicionais, à preservação de suas manifestações culturais e ao exercício da autodeterminação, conforme estabelecem os artigos 216, 231 e 232 do texto constitucional.
Nesse contexto, destaca-se a atuação de Ailton Krenak[1], notável liderança indígena, cuja participação na Assembleia Nacional Constituinte[2] contribuiu para a positivação de garantias que asseguram a proteção das identidades coletivas, materiais e imateriais dos povos originários, promovendo o rompimento definitivo com a antiga política estatal de assimilação forçada e integração compulsória.
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A concretização dos avanços constitucionais pode ser observada, de modo expressivo, na seara eleitoral. Nas eleições municipais de 2024, registrou-se um total de 2.500 candidaturas autodeclaradas indígenas aos cargos de prefeito, vice-prefeito e vereador — número que representa um acréscimo de 332 candidaturas em relação ao pleito de 2020, conforme dados divulgados pela Articulação dos Povos Indígenas do Brasil (Apib).[3]
Embora o aumento do número de candidaturas aparente ser modesto, ele é significativo, especialmente quando consideramos o número de candidaturas bem-sucedidas. Nas eleições de 2024, foram eleitos 9 prefeitos e 13 vice-prefeitos autodeclarados indígenas.[4]
O presente artigo tem por finalidade analisar os principais entraves à efetivação dos direitos políticos e eleitorais dos povos indígenas, com ênfase na relevância de sua inclusão nos espaços de representação democrática. Para tanto, procede-se à investigação dos parâmetros jurídicos necessários à proteção e promoção dos direitos dessas comunidades, além da identificação de mecanismos normativos e institucionais aptos a superar os óbices ainda existentes.
A lógica monocultural do sistema político brasileiro e os desafios à efetivação dos direitos políticos indígenas
Segundo os dados mais recentes do Censo Demográfico de 2022, divulgados pelo IBGE, o Brasil possui uma população indígena de 1.693.535 pessoas, o que representa 0,83% da população total do país. Esse contingente populacional, amplamente distribuído por 86,7% dos municípios brasileiros e cada vez mais concentrado em áreas urbanas, evidencia a importância estratégica de sua inclusão nos espaços de poder.[5]
Contudo, esse dado demográfico contrasta com a limitada representação política dos povos indígenas, resultado de um sistema político estruturado sob uma lógica monocultural, que desconsidera as especificidades socioculturais dos povos originários.
Embora o artigo 14 da Constituição Federal assegure a todos os cidadãos brasileiros, inclusive os indígenas, o direito ao voto e à elegibilidade, a efetivação plena desses direitos encontra obstáculos institucionais e culturais persistentes. O sistema de representação vigente baseia-se em concepções jurídicas e institucionais de matriz eurocêntrica[6], que ignoram ou subvalorizam as formas próprias de organização política das comunidades indígenas. Em consequência, as estruturas políticas formais revelam-se incapazes de promover uma inclusão efetiva e interculturalmente sensível.
Essa lacuna institucional contribui para a reprodução de práticas excludentes. Campanhas eleitorais e processos de votação, por exemplo, raramente são adaptados aos modos de vida e aos ciclos culturais das comunidades indígenas, o que gera desinteresse, descrença e, por vezes, a exclusão de fato desses povos do debate público.
A padronização do processo democrático, alheia à diversidade cultural, revela-se um entrave concreto à participação política plural. Exemplo disso é a ausência de materiais de campanha em línguas indígenas ou de intérpretes, bem como a incompatibilidade entre o calendário eleitoral e as dinâmicas sazoais de certas comunidades.[7]
A ausência de consulta prévia, livre e informada — em descompasso com a Convenção 169 da Organização Internacional do Trabalho (OIT), ratificada pelo Brasil — durante campanhas e inúmeras decisões que afetam diretamente as comunidades indígenas compromete sua autonomia política e cultural. Tal omissão revela-se especialmente grave em contextos de interferência externa nos territórios indígenas, frequentemente intensificadas em períodos eleitorais, quando interesses econômicos e políticos se sobrepõem aos direitos coletivos.[8]
Ainda que indígenas participem como eleitores ou candidatos, suas demandas específicas encontram pouca ressonância no sistema político nacional. A ausência de representatividade cultural efetiva enfraquece o projeto democrático previsto pela Constituição de 1988 e perpetua a exclusão histórica desses povos.
Nesse cenário, ganha relevância a retomada de propostas debatidas entre 2002 e 2004 pelo movimento indígena, como a implementação de cotas para representantes indígenas nos legislativos estadual e federal, bem como a criação de um parlamento indígena, capazes de promover um modelo de representação plural e adequadamente sensível à diversidade.[9]
Conclusão
A análise do quadro normativo-constitucional e dos dados demográficos recentes evidencia uma contradição estrutural entre o reconhecimento formal dos direitos políticos dos povos indígenas e a ausência de mecanismos efetivos que viabilizem sua participação plena nos espaços de poder. Apesar de constituírem uma parcela expressiva da população nacional, com presença em quase todos os municípios do país, os povos indígenas seguem sub-representados nos órgãos legislativos e nas instâncias de deliberação pública.
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A efetivação dos direitos políticos indígenas exige, nesse contexto, não apenas o respeito formal às garantias constitucionais, mas a implementação de soluções normativas e institucionais que promovam a harmonização entre os direitos individuais e coletivos.
Entre as alternativas possíveis, destaca-se a necessidade de retomada do debate sobre cotas parlamentares e a institucionalização de instâncias específicas de representação indígena, como um parlamento indígena, capazes de fortalecer a democracia e de concretizar o princípio do pluralismo político em sua dimensão mais substantiva.
[1] CAMPOS, Y. & KRENAK, A (2022). Lugares de origem. São Paulo: Jandaíra, p. 35.
[2] Disponível em: https://www.youtube.com/watch?v=ildN6lyXDNE; Acesso em 15 de janeiro de 2025.
[3] Disponível em: https://apiboficial.org/2024/10/10/campanha-indigena-2024-aumenta-o-numero-de-indigenas-eleitos-em-todo-brasil/; Acesso em 10 de janeiro de 2025.
[4] Segundo dados do portal de Estatísticas Eleitorais do Tribunal Superior Eleitoral (TSE), em março de 2024, os eleitores autodeclarados indígenas passaram dos 8% (102.335) do total considerado para a raça no Censo Demográfico 2022 (1.187.246), realizado pelo Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística (IBGE).
[5] INSTITUTO BRASILEIRO DE GEOGRAFIA E ESTATÍSTICA (IBGE). Censo Demográfico 2022: população indígena residente no Brasil. Brasília: IBGE, 2023. Disponível em: https://censo2022.ibge.gov.br. Acesso em: 29 jul. 2025.
[6] OLIVEIRA, Denizom. (2023) Justiça de transição e povos indígenas: acesso à justiça, verdade e reparação. Rio de Janeiro, pp. 172-175.
[7] BANIWA, André Fernando (2011) Participação política e políticas públicas para os povos indígenas no Brasil. In: CARDENÁS, Victor Hugo et al. (orgs.). Participación Política Indígena y Políticas Públicas para Pueblos Indígenas en América Latina. La Paz: Konrad Adenauer Stiftung, p. 43.
[8] DE ANDRADE, B. F., & CARVALHO, V. O. (2019). Participação política dos povos indígenas e a perpetuação da invisibilidade no cenário político. Revista do TRE-RS, p. 134.
[9] VERDUM, R. (2009). Povos Indígenas no Brasil: o desafio da autonomia. Povos indígenas: constituições e reformas políticas na América Latina. Brasília, DF: Instituto de Estudos Socioeconômicos, pp. 91-112.