Caso Unigel: o atraso da legislação de securitização no país em relação à Europa

Nos últimos anos, o mercado de securitização brasileiro segue em desenvolvimento e expansão, inspirado no modelo americano, onde tal prática surgiu intitulada como “securitization”.

Nosso objetivo neste artigo é abordar brevemente a construção desse mercado no Brasil, chamando atenção para o caso da utilização desse tipo de veículo no âmbito da recuperação extrajudicial do grupo petroquímico Unigel e a forma como o case pode despertar uma discussão da matéria no país, bem como lançar ideias para uma futura (e possível) aproximação de como se dá a securitização no Brasil com modalidades praticadas no mercado europeu – especialmente na Irlanda e Luxemburgo.

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Muito além dos títulos de dívida

A securitização surge nos EUA com os Mortgage-Backed Securities (MBS), títulos lastreados em hipotecas imobiliárias. No entanto, ao longo dos anos, a técnica passou a ser aplicada a outros setores da economia, acontecendo uma diversificação do crédito securitizado, com o surgimento dos Asset-Backed Securities (ABS), títulos lastreados em diversos tipos de ativos, desde créditos imobiliários e financeiros aos direitos de propriedade e royalties.

Na medida que a securitização ganha mercado, podemos ver o surgimento de estruturas em outros países com lastros inicialmente improváveis. Operações com direitos de propriedade intelectual e da imagem ganham forma no final da década de 1990, sendo vinculada a nomes do cenário musical como Iron Maiden e David Bowie.

A legislação brasileira vigente conceitua a securitização como uma “aquisição de direitos creditórios para utilização como lastro de emissão de títulos de securitização para colocação junto a investidores”, sendo taxativo o uso de direitos creditórios.

No mercado europeu, a Comissão Europeia apresenta uma definição mais abrangente: “uma transação por meio do qual o risco de crédito associado a uma exposição ou a um conjunto de exposições é parcelado”, observando que “os pagamentos na transação dependem do desempenho da exposição ou do conjunto de exposições”

Existem discussões doutrinárias sobre se as operações securitizadas configuram um financiamento – o que pode ser uma verdade se olharmos para estruturas corporativas montadas para empresas do mercado imobiliário e do agronegócio no Brasil, por meio dos Certificados de Recebíveis Imobiliários (CRI) e Certificados de Recebíveis do Agronegócio (CRA).

Mas merece menção a exposição de Diego Leite Campos, ao conceituar o mecanismo como um financiamento estruturado, chamando atenção ao fato de não ser uma mera transformação de ativos em valor mobiliário, mas sim o desenvolvimento de uma estrutura personalizada capaz de atender às necessidades dos investidores e do tomador dos recursos.

O caso Unigel

Olhando para o mercado brasileiro, uma operação baseada em estruturas financeiras complexas e personalizadas que merece destaque é o caso do Grupo Unigel, o qual viabilizou parte do seu plano de recuperação extrajudicial por meio da securitização.

A estrutura aprovada pelos credores previa a substituição de determinados créditos inadimplidos por bonds emitidos pela Unigel Luxembourg e a HoldCo, companhias sediadas em Luxemburgo e nos Países Baixos, respectivamente. Acontece que, para determinados detentores desses créditos não era viável realizar a alocação de recursos no exterior de forma direta, motivo pelo qual utilizou-se de uma operação securitizada, e consequentemente uma companhia securitizadora, para a aquisição dos bonds.

No Brasil, as companhias securitizadoras foram criadas em 1997, momento no qual instituiu-se o primeiro título do segmento, o CRI. Com o CRI, surge também a figura do regime fiduciário, sendo esse essencial para viabilização das operações securitizadas. Em 2004, olha-se para o agronegócio, e é criado o CRA.

Apesar das regulamentações esparsas desenvolvidas pela Comissão de Valores Mobiliários (CVM) em relação aos CRI e CRA nos anos seguintes, a consolidação da securitização, em termos de arcabouço legal, acontece somente entre os anos de 2021 e 2022, por ocasião da  publicação da Resolução CVM 60, que dispõe sobre as companhias securitizadoras e às regras para as operações de CRA e CRI. Na sequência, é instituído o Marco Legal da Securitização, por meio da Lei n°14.430, de 03 de agosto de 2022, responsável por permitir a emissão de certificados de recebíveis de outros setores econômicos e a utilização do regime fiduciário nos demais títulos e valores mobiliários que sejam emitidos por uma companhia securitizadora no âmbito das operações de securitização.

Essas mudanças, sobretudo o Marco Legal da Securitização, trouxeram mais segurança jurídica às operações, uma vez que permitiram a instituição do regime fiduciário a qualquer título de securitização. Tal previsão ensejou a imediata simplificação do processo de emissão das debêntures securitizadas e/ou debêntures financeiras, as quais até então eram realizadas por meio de uma sociedade de propósito específico denominadas securitizadoras financeiras.

Voltando ao caso do Grupo Unigel, merecem destaques dois itens: primeiro, a existência de um movimento de substituição do lastro local por um lastro emitido no exterior; e, segundo, a menção à conversão dos direitos creditórios securitizados em participação societária, pontos esses que chamam atenção para as possibilidades de evolução e aperfeiçoamento da prática brasileira.

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Pensando no cenário brasileiro, se olharmos para a manutenção do lastro ao longo da operação, constataremos que as possibilidades de substituição dos direitos creditórios são restritas — exceto pelo instituto da revolvência (possibilidade de que os recursos gerados pelos recebíveis que lastreiam um título sejam utilizados para a aquisição de novos recebíveis), criado inicialmente para atender uma demanda específica do Agronegócio, cujo ciclo de receitas é determinado pelas safras e estendido em 2023 aos demais títulos de securitização. Fora desta exceção, à luz da Resolução CVM 60, artigo 18, §3°, a substituição de direitos creditórios é possível apenas em três hipóteses: quando existirem vícios na cessão capazes de afetar a cobrança dos créditos; visando a manutenção do nível da retenção de risco; ou para a manutenção do teto de concentração.

Na operação do Grupo Unigel, foram emitidas, pela VERT Securitizadora, duas debêntures securitizadas, as quais espelharam os bonds emitidos pelas Unigel Luxembourg S.A. e a Unigel Netherlands Holding Corporation B.V. (HoldCo).

A integralização dos títulos de securitização aconteceu por meio da entrega dos créditos inadimplidos, pelos então credores do Grupo Unigel, os quais passaram a ser vistos como investidores de um papel emitido pela VERT. A companhia securitizadora realizou então a substituição desses direitos creditórios inadimplidos pelos bonds emitidos.

Se olharmos para o mercado europeu, veremos que apesar da característica essencial do lastro à operação securitizada, é possível a substituição do ativo desde que previamente acordado nos documentos da operação. Isso acontece em países como a Irlanda e Luxemburgo.

Na Irlanda, a securitização é pautada pelas normas da União Europeia, especialmente o Regulamento 2017/2402, o qual não faz restrições à substituição de ativos. No entanto chama atenção à existência de critérios de elegibilidade e à transparência nos documentos da operação. A legislação luxemburguesa, partindo da mesma premissa, goza de uma lei específica sobre a securitização, de 22 de março de 2004, que permite em seu artigo 61 a substituição dos ativos: “Uma organização de securitização somente está autorizada a transferir seus ativos de acordo com os termos previstos em seus estatutos ou regulamentos de gestão”.

No tocante ao segundo ponto relevante da operação do Grupo Unigel destacado neste artigo, veremos que no documento de emissão das debêntures securitizadas lastreadas nos bonds devidos pela HoldCo, diferente da outra operação, é previsto uma possibilidade de resgate antecipado mediante a entrega dos direitos creditórios aos investidores caso a devedora opte por exercer o direito de conversão dos bonds em participação societária. Esse mecanismo é criado como uma solução, temporária, para um problema da legislação brasileira – a proibição da utilização de posições societárias como lastro de operações securitizadas.

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Voltando ao conceito brasileiro de securitização exposto acima, existe uma necessidade legal de o lastro ser um direito creditório, sendo proibido a utilização de outros direitos. Tal proibição não acontece na legislação europeia, sobretudo nas operações realizadas na Irlanda e em Luxemburgo. Os países citados são flexíveis quanto à utilização de outros ativos, permitindo o uso de equity como lastro.

No Brasil não existe a possibilidade da emissão de um valor mobiliário por companhia securitizadora lastreado em participações societárias, o qual poderia gozar de um regime fiduciário. Ou seja, a legislação brasileira sobre a matéria, embora tenha evoluído nos últimos anos e hoje apresente normas consolidadas, ainda não foi capaz de aproximar-se totalmente dos mercados globais.

O caso do Grupo Unigel ilustra como, com uma eventual aproximação dos modelos internacionais brevemente analisados, a discussão acerca da substituição dos direitos creditórios inadimplidos pelos bonds não existiria. No mesmo sentido, o mecanismo de resgate antecipado das debêntures vinculadas aos bonds da HoldCo não seria necessário.

Assim, fica o questionamento: seria a hora do legislador brasileiro revisitar a matéria da securitização buscando um aprimoramento e a aproximação com o mercado internacional?

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