Suspensão de processos sobre RIFs subverte lógica do sistema de precedentes

Em 2019, no Tema 990, o STF reconheceu a constitucionalidade do compartilhamento espontâneo de informações entre órgãos de controle e o Ministério Público, sem necessidade de ordem judicial, desde que em caráter formal, documentado, sigiloso e oficial.

A ratio decidendi (razão de decidir) do precedente restringiu-se a esse ponto: a validade do compartilhamento espontâneo. Qualquer interpretação que projete esse entendimento para abarcar requisições ativas formuladas por órgãos de persecução penal constitui mero obiter dictum (observação lateral, sem força vinculante), ou, no máximo, construção interpretativa ampliativa sem correspondência com a tese efetivamente firmada[1].

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Mas essas observações laterais foram suficientes para gerar uma baita divergência nas cortes superiores.

A 1ª Turma do STF entendeu ser válida a requisição de dados do Coaf pelos órgãos de persecução penal, sem autorização judicial, à luz do Tema 990[2], ao passo que a Segunda Turma adotou posição contrária[3].

Já a 3ª Seção do STJ decidiu, por maioria, que é inviável a solicitação direta de RIFs pelo MP ou polícia junto ao Coaf sem autorização judicial prévia, seguindo o entendimento da 2ª Turma do STF[4].

Diante desse impasse, a questão foi afetada ao plenário no Tema 1.404 da repercussão geral, instaurado no RE 1.537.165/SP: “Provas obtidas pelo Ministério Público por requisição de relatórios de inteligência financeira ou de procedimentos fiscalizatórios da Receita, sem autorização judicial e/ou sem a prévia instauração de procedimento de investigação formal”.

Na sequência, sobreveio a decisão do ministro Alexandre de Moraes no RE 1.537.165/SP, a pedido da PGR, suspendendo nacionalmente “todos os processos pendentes que tratem da matéria discutida no Tema 1.404 da repercussão geral”, nos termos do art. 1.035, § 5º, do CPC.

Ficou igualmente estabelecida a suspensão dos efeitos futuros das decisões já proferidas que “contrariem o entendimento firmado no Tema 990”, bem como a interrupção da contagem da prescrição da pretensão punitiva nos processos sobrestados.

Mas algumas dúvidas permanecem.

Alcance procedimental

Embora a decisão mencione apenas os “processos pendentes que tratem da matéria”, sem especificar os procedimentos criminais, a própria razão de ser do art. 1.035, §5º, do CPC é suspender todos os feitos relacionados ao tema submetido à repercussão geral, evitando decisões contraditórias e preservando a segurança jurídica.

Nessa lógica, não faria sentido restringir o sobrestamento apenas aos processos judiciais, excluindo investigações criminais e medidas cautelares autônomas.

O ministro relator enfatizou que o objetivo da suspensão é garantir segurança jurídica, propósito que restaria esvaziado se inquéritos e cautelares continuassem a produzir efeitos com base em provas cuja validade será definida apenas pelo plenário.

O próprio STF já reconheceu essa abrangência.

No RE 1.055.941/SP (Tema 990), o ministro Dias Toffoli determinou a suspensão nacional não apenas dos processos, mas também de inquéritos e procedimentos instaurados sem supervisão judicial, além da interrupção da prescrição.

A finalidade era clara: impedir que a máquina investigativa operasse sobre provas de legalidade questionada até que o plenário fixasse parâmetros constitucionais.

À luz desse precedente, a conclusão é inevitável: a decisão no RE 1.537.165/SP deve alcançar investigações e medidas cautelares fundadas em RIFs.

Nesse mesmo sentido, ainda que o Tema 1.404 mencione apenas requisições de RIFs do Ministério Público, sua lógica deve abranger igualmente inquéritos policiais em que houve requisição de RIFs pela polícia judiciária.

O que está em jogo não é a titularidade do pedido, mas o acesso estatal a dados financeiros e fiscais sem autorização judicial, não importando qual órgão requisitante.

Não por acaso, a própria PGR, ao justificar o pedido de suspensão dos feitos, alertou para os efeitos práticos da interpretação do STJ acerca do tema 990/STF, que, segundo ela, vinha gerando “trancamentos de inquéritos”.

O impasse dos processos reformados pela 1ª Turma em sede de reclamação

A decisão inicial limitou-se a suspender os efeitos futuros de decisões que “contrariem o entendimento firmado no Tema 990”.

Nada disse, porém, sobre os casos em que tribunais ordinários e o STJ haviam reconhecido a nulidade de RIFs obtidos sem ordem judicial e que, posteriormente, foram reformados pela 1ª Turma do STF em sede de reclamação constitucional (exemplo paradigmático é a Rcl 61.944).

Diante dessa lacuna, a PGR e o MPSP solicitaram esclarecimentos ao ministro Moraes, defendendo que tais processos não deveriam ser abrangidos pela suspensão, sob o argumento de que não afrontam o Tema 990. O pleito foi acolhido no último dia 25, resultando na exclusão da suspensão das decisões que validaram requisições diretas, com a justificativa de evitar entraves à persecução penal.

A solução, contudo, não se sustenta. Ela inverte a lógica do art. 1.035, §5º, do CPC, que visa uniformizar a jurisprudência justamente em hipóteses de incerteza.

Permitir que decisões monocráticas antecipem o julgamento do plenário significa, em última análise, cristalizar entendimentos parciais e transformá-los em regra de aplicação imediata, esvaziando a própria razão do sobrestamento.

As consequências são graves. De um lado, rompe-se a isonomia processual: enquanto a 2ª Turma do STF já assentou que o Tema 990 não abrange a requisição ativa de relatórios de inteligência, a 1ª Turma validou situações idênticas.

De outro, cria-se um fator de aleatoriedade intolerável: o destino do réu passou a depender do acaso da distribuição, recebendo tratamento diametralmente oposto a depender da Turma responsável.

Em vez de assegurar estabilidade e coerência, a medida legitima a divergência e institucionaliza desigualdades.

O paradoxo é evidente: o mecanismo concebido para garantir uniformidade transforma-se em fonte de insegurança jurídica e tratamento desigual entre acusados em situações equivalentes.

Cautelares e prisões baseadas em RIFs requisitados sem ordem judicial

Outro ponto relevante diz respeito aos réus presos ou submetidos a medidas cautelares pessoais e patrimoniais fundadas diretamente em RIFs. Nesses casos, a manutenção das cautelares parece inaceitável.

Investigados e acusados não podem arcar com o ônus da demora na definição de questão que não lhe é imputável. Se o sobrestamento paralisa a marcha processual e suspende a prescrição por prazo indefinido, a consequência lógica é a revogação das cautelares até que o Supremo Tribunal Federal fixe os parâmetros constitucionais da matéria.

Esse raciocínio é reforçado pelo contexto.

A suspensão foi determinada a pedido da Procuradoria-Geral da República, em momento no qual a 2ª Turma do STF e o STJ já haviam firmado posição favorável à tese.

Não se pode admitir que o sobrestamento, simultaneamente, neutralize a orientação da 2ª Turma do STF e da 3ª Seção do STJ e, ao mesmo tempo, imponha ao réu o peso de restrições indefinidas.

Além disso, o próprio STJ já havia sinalizado a preocupação com a indefinição temporal no STF. No RHC 196.150, o ministro Messod Azulay advertiu: “Por mais que seja mais adequado aguardarmos uma decisão definitiva por parte do Pleno do Supremo, não se mostra possível esperar, tanto porque não se sabe quando a solução virá, quanto porque os ministros deste tribunal são instados a julgar a matéria cotidianamente[5].

Nesse cenário, ganha força a construção de uma tese de excesso de prazo em perspectiva já reconhecida pela jurisprudência[6].

Procedimentos pendentes de apreciação judicial: uniformidade necessária

Resta, por fim, uma indagação adicional: como tratar processos e investigações em que houve requisição de RIF, mas a questão ainda não foi submetida ao Judiciário?

A lógica do art. 1.035, §5º, do CPC aponta para a incidência da suspensão também nesses casos.

Permitir que o procedimento avance apenas porque a defesa ainda não provocou a jurisdição geraria tratamento desigual entre investigados em idêntica situação fática e frustraria a finalidade da suspensão, que é assegurar uniformidade e evitar decisões contraditórias.

Cabe, portanto, à defesa suscitar o reconhecimento da suspensão, ou mesmo que o juízo a declare de ofício, garantindo isonomia e coerência até a definição final pelo Supremo.

Conclusões

Por certo, o cenário atual suscita mais perguntas do que respostas, e a definição concreta apenas virá quando o plenário do STF enfrentar diretamente o mérito da controvérsia.

Até lá, não se pode admitir que a suspensão requerida pela PGR e acolhida pelo ministro Moraes opere apenas em desfavor dos réus.

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O sobrestamento tem como finalidade resguardar a segurança jurídica, uniformizar a aplicação do direito e evitar decisões contraditórias.

Se, no entanto, for utilizado como instrumento de prolongamento indefinido de cautelares, de paralisação seletiva de processos ou de restrição desigual de direitos, a medida perderá sua legitimidade.

O que surge como mecanismo de proteção acabará convertido em fator de insegurança, desarmonia sistêmica e injustiça material.

[1] Para uma compreensão completa da problemática, ler: NOGUEIRA, Thúlio Guilherme; GOMES JUNIOR, Neuler Mendes. O precedente que nunca foi: limites do Tema 990 e a ampliação ilegítima via RCL 61.944. Boletim IBCCRIM, São Paulo, v. 33, n. 390, maio 2025. DOI: https://doi.org/10.5281/zenodo.15262249.

[2] STF, Reclamação 61.944/PA, Rel. Min. Cristiano Zanin, 1ª Turma.

[3] Destaque trecho do voto do ministro Edson Fachin: “Em que pese o Supremo Tribunal Federal tenha autorizado o compartilhamento de relatórios de inteligência financeira da UIF [COAF] e de procedimento fiscalizatório da Receita Federal do Brasil com os órgãos de persecução penal, não permitiu que o Ministério Público requisitasse diretamente dados bancários ou fiscais para fins de investigação ou ação penal sem autorização judicial”. STF, Recurso Extraordinário nº 1.393.219/SP, Rel. Min. Edson Fachin, 2ª Turma.

[4] Foi fixada a seguinte tese: “A solicitação direta de relatório de inteligência financeira pelo Ministério Público, ao Coaf, sem autorização judicial é inviável. O Tema 990 do STF não autoriza requisição direta de dados financeiros por órgão de persecução penal sem autorização judicial”. Processos paradigmas: RHC 174.173; RHC 169.150; REsp 2.150.571.

[5] STJ. Polícia e MP não podem pedir relatórios do Coaf sem prévia autorização judicial, decide 3ª Seção. Disponível em: https://www.stj.jus.br/sites/portalp/Paginas/Comunicacao/Noticias/2025/29052025-Policia-e-MP-nao-podem-pedir-relatorios-do-Coaf-sem-previa-autorizacao-judicial–decide-Terceira-Secao.aspx. Acesso em 22/08/2025.

[6] TJSP, Habeas Corpus 2289127-62.2022.8.26.0000. Rel. Des. LEME GARCIA, julg. 30 de janeiro de 2023.

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