Reforma do Código Civil: impactos sobre o Direito Processual Civil

Sob o pretexto de aparente modernização e atualização do Direito Civil, o PL 4/2025, que visa à reforma do Código Civil, atualmente em trâmite no Senado Federal, consiste em uma verdadeira ameaça à coerência sistêmica arduamente construída desde 2002. O PL mina a segurança jurídica que deve orientar a vida privada e acarreta risco de sobrecarga do Poder Judiciário com um mosaico normativo baseado em conceitos vagos e subjetivos.

A título ilustrativo dos riscos que nos rondam, fazemos referência a duas ordens de modificações constantes do Projeto de Lei que atingem a esfera do Direito Processual Civil: (i) a inserção, no diploma material, de normas nitidamente processuais, com os consequentes prejuízos à coerência sistêmica e à segurança jurídica e (ii) os efeitos que determinadas inovações de direito material produzirão sobre a atuação do magistrado, sobretudo quanto ao regime de responsabilidade civil e ao cálculo de indenizações.

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Um exemplo da primeira ordem de modificações, que implica em intervenção (indevida) sobre matéria processual, encontra-se no §5º do art. 167 do Projeto de Lei, que prevê que a decisão incidental que reconheça simulação fará coisa julgada.

O Código de Processo Civil (CPC) exige, no art. 503, §1º, a concomitância de contraditório prévio, competência plena do juízo e prejudicialidade para atribuição da força da coisa julgada à decisão incidental. Ao silenciar-se sobre tais requisitos, o projeto cria um regime autônomo, passível de gerar colisão normativa e hermenêutica.

Problema análogo emerge na tentativa do projeto de lei, nos art. 1.111-A e seguintes, de preencher a lacuna procedimental relativa à dissolução total de sociedades. Ainda que a lacuna exista, o deslocamento da disciplina para o CC compromete a unidade principiológica do sistema processual, enfraquecendo a ideia de microssistema societário do CPC (arts. 599-609) e fomentando interpretação casuística.

A coexistência de dois regimes – um parcial, previsto no CPC, outro total, previsto no CC – tende a multiplicar discussões processuais, minando a previsibilidade processual que o legislador de 2015 buscou fortalecer.

Sob a segunda perspectiva, algumas inovações materiais do projeto produzem reflexos diretos sobre o processo. O art. 927-B, amplia a responsabilidade civil objetiva para qualquer atividade que, mesmo que sem defeito e não essencialmente perigosa, implique “por sua natureza risco especial e diferenciado”.

Tal ampliação contraria a jurisprudência consolidada no tema, que já havia definido que a responsabilidade objetiva apenas se verifica em caso de defeito/ato ilícito e para atividades inerentemente perigosas, como transporte de valores, pessoas e cargas, fornecimento de energia elétrica, indústrias químicas, atividades de segurança privada, construção civil e mineração, dentre outras[1].

Além disso, atribui ao julgador a delicada tarefa de definir, caso a caso, a configuração desse risco especial e diferenciado, para o que pode empregar critérios amplos como “máximas de experiência”, prova técnica e estatística. A possibilidade de o magistrado alterar a natureza da responsabilidade civil post factum, apenas no momento do processo judicial, e com base em critérios discricionários como as máximas de sua experiência ou contestáveis no âmbito da responsabilidade civil, como a estatística,[2] revela o potencial de ruptura sistêmica e insegurança jurídica que o projeto pode acarretar.

O bloco normativo dedicado ao dano patrimonial e extrapatrimonial também projeta consequências relevantes. O §1º do art. 944 do Projeto de Lei autoriza a redução equitativa da indenização quando sua integralidade colocar em risco o mínimo existencial do ofensor, valendo-se de critérios subjetivos como a boa-fé e a razoabilidade.

Já o §2º do mesmo artigo, ao permitir que o lesado opte entre reparação do dano patrimonial e a “remoção dos lucros ou vantagens” obtidos pelo ofensor, introduz lógica de restituição de enriquecimento que, embora louvável em termos de justiça distributiva, complica a delimitação do objeto litigioso e a fase de liquidação, impondo ao juiz a conjugação de critérios patrimoniais e sancionatórios. Isso sem falar no rompimento da regra estatuída no caput do art. 944, segundo a qual a indenização mede-se pela extensão do dano.

No campo dos danos morais, chama a atenção não apenas a positivação de balizas para sua quantificação, mas, principalmente a possibilidade de inclusão de uma sanção pecuniária de caráter pedagógico em casos de “especial gravidade”, de “dolo ou culpa grave” ou “reiteração de condutas danosas” (art.  944-A, § 3º).

Essa sanção poderá ser de até quatro vezes o valor dos danos morais, levará em consideração a condição econômica do ofensor, a reiteração da conduta e até mesmo a imposição de multas administrativas pela mesma conduta (art.  944-A, § 4º e 5º). Parte dessa sanção poderá ser inclusive destinada a fundos públicos de proteção de interesses coletivos ou estabelecimento idôneo de beneficência (art.  944-A, §6º).

Essa destinação para outra entidade que não a vítima, reforça a conclusão de que se trata de sanção já incorporada na ordem jurídica atual por meio figura dos danos morais coletivos, reforçando a desnecessidade da inovação, a configuração de dupla penalização ou bis in idem e a evidente insegurança jurídica que essa figura poderá trazer.

A despeito do nexo de causalidade direto e imediato ter se mantido intocado, conforme previsão do art. 403 do CC, o art. 944-B do projeto inaugura insegurança diante da previsão de que danos indiretos e futuros também seriam indenizáveis, reforçando o rompimento da lógica sistêmica do CC atual. Além disso, o seu §4º legitima a fixação de danos patrimoniais por estimativa quando forem “de pouca expressão econômica”, desde que a prova exata seja demasiadamente, difícil ou onerosa e desde que não haja dúvidas da ocorrência de danos, conforme “máximas de experiência do julgador”.

Embora a flexibilização probatória possa favorecer o acesso à justiça de hipossuficientes, corre-se o risco de decisões baseadas em juízos intuitivos, amparados em “máximas de experiência” que variam conforme a percepção subjetiva do magistrado, incrementando a imprevisibilidade, especialmente em temática sensível como o cálculo de danos.

A inserção de regras processuais no Código Civil viola a lógica de distribuição temática entre os diplomas, fragiliza a coerência sistêmica e gera sobreposições normativas. Simultaneamente, as mudanças materiais que ampliam a discricionariedade judicial e rompem com a lógica sistêmica, sobretudo no que tange ao nexo causal e a extensão dos danos indenizáveis, são alterações relevantes que merecem a pronta atenção da comunidade jurídica, a fim de se evitar os consequentes e indesejáveis impactos à segurança jurídica e previsibilidade das relações.

[1] “[…] 2. As concessionárias de energia elétrica são objetivamente responsáveis pelos danos decorrentes da má prestação do serviço público, cabendo-lhes adotar medidas de segurança e vigilância para prevenir acidentes, sobretudo por se tratar de atividade de risco inerente. Precedentes. 3. No caso concreto, o Tribunal de origem concluiu, com base no laudo pericial e nos depoimentos testemunhais, que a morte da criança por eletrocussão decorreu de falha na prestação do serviço público pela concessionária, não ficando caracterizada a culpa exclusiva da vítima, então com 11 (onze) anos de idade. […] Não bastasse, convém repisar que o entendimento manifestado pelo TJCE está em perfeito acordo com a jurisprudência desta Corte Superior no sentido de que as concessionárias de energia elétrica são objetivamente responsáveis pelos danos decorrentes da má prestação do serviço público, cabendo-lhes adotar medidas de segurança e vigilância para prevenir acidentes, sobretudo por se tratar de atividade de risco inerente.” STJ. AgInt no Agravo em Recurso Especial n. 924819. Relator: Min. Ricardo Villas Bôas Cueva. Julgado em 03/12/2018, Publicado em 06/12/2018.”

[2] “[…] imprescindibilidade da comprovação concreta do nexo causal entre os danos e o tabagismo, sob o prisma da necessariedade, sendo insuficientes referências genéricas à probabilidade estatística ou à literatura médica”. STJ. Recurso Especial n. 1322964 | 2012/0093051‑8, Relator: Min. Ricardo Villas Bôas Cueva. Publicado em 01/06/2018.

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