Como já tivemos oportunidade de nos manifestar anteriormente[1] a discussão sobre a extensão e o alcance da norma prevista no artigo 146, inciso III, alínea “c”, da Constituição Federal — que reserva à lei complementar a disciplina do “adequado tratamento tributário ao ato cooperativo, praticado pelas sociedades cooperativas” — é antiga e remonta à promulgação do texto constitucional em 1988.
Apesar do tempo, persistem as incertezas, especialmente quanto à definição de ato cooperativo e do tratamento tributário que lhe é devido. O cooperativismo, conforme se extrai da leitura sistemática dos artigos 1º, IV; 3º; 5º, XVIII; 146, III, “c”; 170; 174, §§ 2º a 4º; e 187 da Constituição, é sustentado por valores como solidariedade, democracia, liberdade e igualdade. Em coerência com os objetivos previstos no artigo 3º, o constituinte instituiu um regime jurídico diferenciado para o setor, abrangendo inclusive a matéria tributária.
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Trata-se de uma forma de economia compartilhada, na qual os associados se unem para alcançar fins comuns, sem intuito lucrativo. As cooperativas operam a preço de custo; as eventuais sobras são redistribuídas aos cooperados após a destinação de parcelas obrigatórias ao Fundo de Reserva e ao Fundo de Assistência Técnica, Educacional e Social (Fates). O primeiro se presta a cobrir perdas e despesas da atividade; o segundo, a financiar ações de assistência aos associados.
O artigo 146, III, “c”, contém uma regra de não incidência que cria direitos subjetivos e deve, por isso, ser interpretada de forma ampla, com base nos valores constitucionais que a inspiram. Todavia, decisões judiciais recentes têm adotado leitura restritiva, mitigando o benefício constitucional e, com isso, enfraquecendo a própria lógica das atividades cooperativas.
Importa observar que a Constituição Federal não diferencia atos cooperativos típicos de atípicos. Essa classificação é fruto de construção jurisprudencial, fundada no artigo 79 da Lei 5.764/71, que define o ato cooperativo como aquele praticado entre cooperados e cooperativas ou entre cooperativas entre si, sem menção à sua tipicidade. Cumpre lembrar que essa lei é anterior ao atual texto constitucional e reflete um contexto em que o cooperativismo tinha alcance mais limitado. Assim, a definição legal deve ser interpretada em conformidade com o conceito constitucional, ainda que com recepção parcial.
Nesse sentido, Jorge Miranda ensina que a interpretação conforme à Constituição implica atribuir ao texto legal um sentido que, embora não aparente, seja o único possível para mantê-lo compatível com a Lei Fundamental, mesmo que isso demande interpretação extensiva, restritiva, redução ou conversão[2].
Há distinção relevante entre conceito e definição: o conceito exprime a compreensão de uma ideia, enquanto a definição fixa linguisticamente seus elementos essenciais. O conceito de ato cooperativo é constitucional, e o legislador, ao defini-lo, deve respeitar tal conteúdo, sob pena de inconstitucionalidade.
Assim, todo ato do qual participe a cooperativa, inclusive os celebrados com terceiros — usualmente chamados de “atípicos” —, deve receber o adequado tratamento tributário previsto na Constituição da República.
A função essencial das cooperativas é gerar trabalho e renda para os cooperados intermediando e representando-os junto à sociedade, captando contratos remunerados para exercerem suas atividades. Negar a natureza cooperativa a atos firmados com adquirentes de produtos e/ou serviços de seus cooperados é incompatível com essa finalidade.
Por isso, pouco importa as classificações que se criem – “típico” ou “atípico”, o ato cooperativo sempre deve gozar de tratamento tributário adequado a sua particularidade.
Assim o fato praticado pelas cooperativas é “representar seus cooperados” “ser mandatário de” e tal fato não foi previsto no texto constitucional como uma manifestação de riqueza passível de incidência de tributos, portanto sua prática não se subsume a nenhum dos arquétipos constitucionais dos tributos, não desencadeando consequentemente o nascimento da relação jurídica tributária, o dever de pagar e o correlato direito de cobrar. Temos aqui uma hipótese de não incidência em relação aos atos cooperativos praticados entre as cooperativas e terceiros.
No tocante à extensão desse tratamento, tais atos também são intributáveis pela ausência de manifestação de capacidade contributiva. As cooperativas, por trabalharem pelo custo, não geram riqueza tributável. Isso consagra um direito subjetivo à não incidência, a ser observado por leis ordinárias.
Mesmo sem previsão legal expressa, é possível reconhecer imunidade implícita, ou quando menos a não incidência dada a ausência de capacidade contributiva. Referido princípio há de ser observado em relação a todos os tributos exceto em relação às taxas e às contribuições de melhoria.
Assim, no que diz respeito aos atos cooperativos, seja entre cooperativa e cooperado, entre cooperativas, ou ainda entre cooperativas e adquirentes de produtos e serviços por elas disponibilizados, em nome de seus cooperados, não estão sujeitos à cobrança de tributos por se inserirem na categoria de ato cooperativo e não revelarem capacidade contributiva.
A interpretação sistemática dos dispositivos constitucionais relativos ao cooperativismo sustenta essa conclusão até porque a Constituição refere-se ao “ato cooperativo praticado pelas sociedades cooperativas”, não distingue, portanto, ato típico de atípico, se praticado por cooperativas são todos atos tipicamente cooperativos sujeitos ao respectivo regime jurídico constitucional.
A matéria será enfrentada no julgamento dos Temas 516 e 536 pautados para data próxima, ambos de relatoria do ministro Luís Roberto Barroso que poderá, por meio de interpretação conforme, adequar o artigo 79 da Lei 5.764/71 ao texto constitucional.
O tema 516 está assim redigido: “Recurso extraordinário em que se discute, à luz dos artigos 146, III, “c”, 154, I, e 172, §2º, da Constituição Federal, bem como do art. 1º, II, da LC 84/96, a possibilidade, ou não, de inclusão, na base de cálculo de contribuição para o financiamento da seguridade social, dos valores recebidos pelas cooperativas, provenientes de terceiros tomadores de serviços ou adquirentes das mercadorias vendidas por seus associados”.
Já o 536 tem a seguinte redação: “Recurso extraordinário em que se discute, à luz dos artigos 5º, XVIII; 146, III, c; 194, parágrafo único, V; 195, caput, e I, a, b e c e § 7º; e 239 da Constituição Federal, a possibilidade de lei dispor sobre a incidência, ou não, de Cofins, PIS e CSLL sobre o produto de ato cooperado ou cooperativo em face dos conceitos constitucionais relativos ao cooperativismo: “ato cooperativo”, “receita da atividade cooperativa” e “cooperado”.
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Como se verifica ambos têm como questão de fundo a definição de ato cooperativo, com especial destaque para o tema 536.
É certo que diante das ponderações aqui realizadas não devem de ser incluídos na base de cálculo da Cofins valores recebidos pelas cooperativas e repassados a seus associados, decorrentes de atos praticados em seu nome, nem deve incidir PIS, Cofins e CSLL sobre produto de ato cooperativo, entre eles, os que envolvem os adquirentes que se relacionam com as cooperativas.
Reiteramos afinal que qualquer ato de que a cooperativa participe é ato cooperativo sujeito a não incidência tributária quer porque o fato de representar o cooperado não se subsume a nenhum arquétipo constitucional tributário, quer por absoluta ausência de capacidade contributiva.
[1] https://grupenmacher.com.br/tributacao-do-ato-cooperativo-um-tema-ainda-polemico/
[2] MIRANDA, Jorge. Manual de Direito Constitucional. Tomo II: Introdução à teoria da Constituição. 2. ed. Coimbra: Coimbra Editora, Limitada, 1988. p. 233.