CPDP LatAm 2025: governança de dados, soberania, desenvolvimento e democracia

Nos dias 16 e 17 de julho, aconteceu a quinta edição da Computers, Privacy and Data Protection Conference Latin America (CPDP LatAm), conferência que se estabeleceu como a principal plataforma para debates multissetoriais sobre governança de dados e regulação de tecnologias emergentes na América Latina.

Considerando a proximidade com a cúpula do Brics, que aconteceu na semana precedente no Rio de Janeiro, o encontro foi dedicado à “Governança de dados para o desenvolvimento e democracia na Maioria Global”, contando com duas sessões plenárias e 29 sessões organizadas de maneira bottom-up, como resultado da anual chamada de painéis. Como tradição, o evento foi seguido de um side event dedicado a um assunto identificado como crucial que este ano foi “AI Safety na perspectiva da Maioria Global” no dia 18 de julho.

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As gravações das sessões da CPDP LatAm se encontram disponíveis no canal do evento, enquanto as gravações do evento AI Safety podem ser acessadas aqui. Em seguida, algumas das considerações que nortearam a organização do evento e que emergiram das sessões, particularmente sobre a necessidade de se priorizar a soberania digital, as infraestruturas e a tributação de dados para estimular um desenvolvimento digital sustentável, e se repensar como implementar a autodeterminação informativa para alcançar uma governança democrática de dados.

Colonialismo de dados, maioria global, e (falta de) soberania digital

A expressão “maioria global” representa mais do que uma convenção geopolítica; revela-se como convite essencial para repensar estruturas históricas de poder, questionar as desigualdades, o extrativismo e concentração de renda herdadas do colonialismo, e evitar estas práticas sejam reproduzidas na dominação digital no século 21.

Chamar atenção para a maioria global — frequentemente rotulada como “Sul Global” — é reconhecer o substrato comum a esses países: uma experiência histórica marcada por colonialismo violento e extrativista. Essa herança é a matriz das profundas desigualdades estruturais que persistem, agora também refletidas nas relações digitais e tecnológicas contemporâneas.

Nos últimos anos, o debate em torno da soberania digital e da governança de dados amplia o esforço de compreender como o colonialismo se atualiza mediante práticas de apropriação e exploração de informações. O fenômeno do colonialismo de dados se evidencia, sobretudo, nos contextos em que falta soberania digital, reafirmando padrões históricos de dependência.

A pesquisa em soberania de dados, notadamente no contexto dos BRICS e outros países do Sul Global, busca identificar caminhos para a construção de capacidades técnicas e regulatórias autônomas. Trata-se de promover, por meio dessas capacidades, a autonomia tecnológica, a cibersegurança robusta e a autodeterminação informativa, fundamentais ao desenvolvimento soberano e democrático.

Com base na nossa pesquisa em soberania digital, podemos definir a soberania de dados na aptidão para compreender o funcionamento de tecnologias que processam dados, saber desenvolver tais tecnologias e regula-las efetivamente, rompendo com modelos extrativistas que reproduzem lógicas coloniais na tecnologia digital.

Portanto ser soberano, não significa simplesmente adotar leis de proteção de dados: a soberania depende da habilidade para desenvolver tecnologias baseadas em dados e para implementar efetivamente as normas que as regulam, uma realidade ainda distante da maioria global. Fortalecer esse domínio é crucial tanto para a proteção individual de dados quanto para a promoção de autonomia tecnológica nacional.

Neste sentido, a cibersegurança precisa ser considerada como um pilar estruturante da soberania digital e, vice e versa, a soberania sobre dados é condição prévia para a proteção da segurança individual e institucional. A proliferação de riscos como ransomware, fraudes sofisticadas e o uso ofensivo democratizado de inteligência artificial evidenciam a necessidade urgente de marcos regulatórios robustos. Não basta criar normas ou agências especializadas; é imperativo fiscalizar e implementar efetivamente princípios como a segurança desde a concepção e autodeterminação informativa, já presentes na legislação brasileira.

Ao mesmo tempo, é preciso transmitir para a sociedade as competências básicas que permitam aos cidadãos protegerem seus direitos e exercerem suas escolhas de forma consciente e proativa, para desenvolver plenamente a sua autodeterminação informativa.

Autodeterminação informativa: da dimensão individual à coletiva

Conforme destacado pela jurisprudência da Comissão Interamericana de Direitos Humanos (CIDH) no caso CAJAR v. Colômbia, a autodeterminação informativa é um direito fundamental autônomo e o Estado deve desempenhar papel ativo no auxílio aos titulares, seja através de mecanismos que permitam o pleno gozo destes direitos.

Reconhece-se, inspirado em teóricos como Stefano Rodotà e Donna Haraway, que dados pessoais constituem extensões eletrônicas do corpo e, portanto, controle sobre como dados pessoais são tratados é essencial pela dignidade do indivíduo. Porém, é importante frisar que a autodeterminação informativa, consagrada no artigo 2 da Lei Geral de Proteção de Dados (LGPD), transcende a proteção individual.

Ao lado desta dimensão exista também uma dimensão coletiva da autodeterminação informativa que nos permite reconhecer a centralidade dos dados para o desenvolvimento nacional exige regulá-los de forma a promover o interesse público, o desenvolvimento nacional, e assegurar democracia e a cibersegurança das infraestruturas digitais. Nessa perspectiva, dados são um fator de produção, equiparável a trabalho, capital e terra, e a regulação de dados deve servir ao interesse público, consolidando a democracia, protegendo infraestruturas digitais e promovendo desenvolvimento nacional.

Adicionalmente, a importância da transparência significativa emerge como condição imprescindível para a efetivação da autodeterminação informativa. Ao passo que o direito impõe deveres de transparência, seu exercício por titulares minimiza a assimetria informativa e reduz as disparidades de poder típicas das relações de tratamento de dados.

Contudo, apesar da legislação propiciar o exercício desses direitos, vários levantamentos empíricos nos mostram que a compliance de proteção de dados ainda está longe do ideal. Por exemplo, pesquisas do CTS-FGV, analisando políticas de privacidade de marketplaces e plataformas de IA generativa, evidenciam níveis preocupantes de conformidade com a LGPD, reforçando a urgência de atuação multissetorial organizada, onde acadêmicos, organizações da sociedade civil e reguladores cooperam alavancando a transparência para incrementar a prestação de contas.

Redescobrindo a importância das infraestruturas e da tributação

Outros aspectos que surgiram como fundamentais referem-se ao uso de infraestruturas e tributação como estratégias regulatórias voltadas a facilitar o exercício da autodeterminação informativa. Trata-se de garantir meios e estruturas que viabilizem escolhas informadas e responsabilização adequada no ecossistema informacional complexo contemporâneo.

A tecnologia pode se tornar um poderoso aliado do direito por meio de infraestruturas publicas digitais (DPIs no acrônimo inglês) e protocolos técnicos para registro do consentimento e comunicação de requisições, como já feito de forma embrionária pelo Data Empowerment and Protection Architecture (DEPA) da Índia.

Por meio das DPIs, o estado recupera ume protagonismo atrelado ao desenvolvimento de infraestrutura digital confiável e interoperável, decisivo para construir bases concretas da soberania digital, mitigando as assimetrias e promovendo a responsabilização efetiva contra abusos e usos indevidos dos dados. A adoção de protocolos padronizados merece atenção para facilitar a aplicação de direitos como portabilidade e exclusão, respeitando a diversidade tecnológica e regulatória dos países da maioria global.

Um ponto que surgiu como particularmente interessante é a questão da tributação de modelos extrativistas de dados, ao qual foi dedicado um discussion paper apresentado na conferência. O paper ressalta que a equiparação dos dados ao “novo petróleo” é um reflexo do paradoxo vigente: embora reconhecidos como o principal ativo do século 21, os regimes de tributação para dados ainda são incipientes ou inexistentes.

No contexto de grandes disputas fiscais globais, impõe-se debater estruturas de taxação equitativa para modelos de negócios extrativistas — ou seja, não penalizar indiscriminadamente todo e qualquer agente que coleta dados, mas sim aqueles que extraem, exportam em larga escala e comercializam dados, sem contribuir para os países de origem. Simultaneamente, políticas de incentivos fiscais deveriam ser adotadas para premiar e estimular práticas sólidas de proteção de dados e cibersegurança.

Governança multissetorial e democrática

Por fim, a autodeterminação informativa encontra expressão robusta nas estruturas de governança. Tecnologia e protocolos não resolvem sozinhos os desafios; é imprescindível estabelecer mecanismos deliberativos e decisórios que incorporem participação multisetorial e social.

No Brasil, o reconhecimento legal do princípio da participação multissetorial na governança de dados foi ampliado após o julgamento do STF sobre o cadastro base do cidadão, que impôs a necessidade de composição multissetorial nos comitês responsáveis por regras de compartilhamento entre entidades públicas. Essas iniciativas — ainda que iniciais — sinalizam a importância do controle coletivo sobre dado público e o compartilhamento.

Contudo, a multiplicidade de comitês e mecanismos não garante efetividade por si só. O desafio é promover a real participação social, a transparência e a utilização efetiva desses espaços, conforme estimulado pela Autoridade Nacional de Proteção de Dados (ANPD) em suas consultas públicas e tomadas de subsídios.

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Assim, para que a autodeterminação informativa se concretize, são requeridas pessoas proativas, competentes e habilitadas, capazes de administrar tanto os marcos regulatórios quanto as infraestruturas tecnológicas, garantindo a proteção e o exercício efetivo dos direitos fundamentais nas demais tecnologias digitais.

O futuro da democracia e do desenvolvimento nos países da maioria global depende intimamente da capacidade individual e coletiva de construir e exercer efetiva soberania digital, especialmente no âmbito de sistemas de IA. As opções que se apresentam às nações deste grupo desafiam não apenas a ordem jurídica vigente, mas também os paradigmas de regulação econômica, direitos fundamentais e justiça global.

Compreender e debater soluções inovadoras nos campos da governança de dados, da infraestrutura digital e do direito à autodeterminação informativa é exercício urgente e contínuo para assegurar desenvolvimento com equidade e a plena realização democrática da sociedade da informação.

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