“Em todo lugar que eu vou, tento conhecer os espíritos dali e ouvir o que eles têm a dizer. É assim que eu viajo”. Essa foi a explicação que o cacique Raoni Metuktire me deu, durante um passeio em meio à turnê de exibição do minidocumentário O chamado do cacique: Herança, terra e futuro, produzido pelo IPAM (Instituto de Pesquisa Ambiental da Amazônia).
O que parecia um olhar distraído do chefe dos Mebêngôkre (Kayapó) era, na verdade, seu processo de imersão no ambiente que nos encontrávamos. Não era só uma climatização a um local diferente, que muitas vezes ele já conhecia, mas também no momento em que estávamos ali. A meu ver, isso se provou um grande poder de ajuste de presença do chefe. Não lembro de ter visto Raoni repetir discursos, ele sempre encontra palavras que ressoam com cada público.
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Em abril de 2024, iniciamos um ciclo de exibições do filme lançado na Caixa Cultural, durante o Acampamento Terra Livre. Raoni não pôde comparecer por motivos de saúde, mas foi representado por seus netos Beptuk e Mayalú, ao lado da ministra dos Povos Indígenas, Sônia Guajajara. A ausência do cacique destacou ainda mais sua força de unir gerações. “Quando eu era menina, ele segurou minha mão e disse: ‘vamos para luta’. Se estou aqui hoje, é porque ele me estendeu a mão”, lembrou Mayalú, hoje liderança feminina importante.
No Rio de Janeiro, durante o Festival Semeia, Raoni se juntou ao grupo. Entre pedidos de fotos e palavras com o “cacique-que-subiu-a-rampa” junto do presidente Lula, ele lembrava das histórias dos indígenas que habitavam a Baía da Guanabara antes da colonização. Dizia que, embora o povo não estivesse mais ali, os espíritos permaneciam e ainda cuidavam da região.
Esse foi o tom que o chefe trouxe para a Cidade Maravilhosa: o que está no passado já está feito e temos que olhar para frente e não cometer os mesmos erros.
“Há muitos anos, nossos ancestrais [dos homens brancos e dos povos indígenas] se enfrentaram no Brasil. Teve guerra, matança, violência”, disse Raoni com seus gestos assertivos, típicos do povo Kayapó. “Deixemos o passado para trás e pensemos no futuro, pois temos um objetivo em comum”. E esse objetivo é em prol da vida, com água limpa para todos, equilíbrio climático e participação de todos. “Nossa língua, tradição e modo de viver são importantes para que a floresta continue em pé”, completava o chefe.
A força de suas palavras também inspira os mais jovens. Beptuk recorda: “Desde os meus 10 anos escuto ele dizer: não briguem entre vocês, senão vão se enfraquecer. Ele não pensa apenas nos povos indígenas, mas em todos no planeta”.
Nos Estados Unidos, durante uma exibição na Universidade de Stanford, tive a chance de ter um convívio maior e observá-lo de perto. Raoni me explicou que, além de cacique, também é um poderoso xamã de seu povo, papel que exige décadas de comunhão com a terra. O que leva décadas para se masterizar e até hoje se considera um aprendiz. Foi durante um passeio para ver as sequoias que ele me explicou sua maneira de viajar e escutar espíritos de outros lugares. Por diversas vezes, referiu-se aos da Califórnia como antigos e sábios.
Ainda levo comigo uma certa interação que me despertou grande fascínio. Uma pessoa que conhecemos durante a visita pediu para que eu traduzisse o que ela queria dizer ao chefe. Encurtando um pouco a história, ela disse que pertencia a um povo originário do Irã, mas que seu povo há muito tempo vivia disperso, uma vez que foram expulsos do país, resumindo-se a alguns encontros anuais para exercer sua cultura.
Raoni ouviu com muita atenção. O que será que ele falaria sobre um povo do outro lado do mundo de um país que certamente teve pouca interação? Com muita calma disse: “um povo sem terra é um povo sem corpo. Um povo sem cultura é um povo sem alma. Vocês podem ter perdido seu corpo, mas enquanto sua cultura estiver viva, eles nunca poderão matá-los. O corpo pode voltar. A alma não”.
A iraniana ficou estarrecida. Expressou que nunca se sentiu tão validada desde que chegou em um país que não era o seu. Disse que temia não poder ver seu povo novamente, por estar doente. Há alguns meses, havia descoberto um câncer. Antes mesmo de eu terminar de traduzir, Raoni rapidamente colocou a mão nas costas de sua nova amiga e perguntou “aqui?”. Ela, já se emocionando, respondeu que sim, que era um câncer de pulmão.
Mantendo as mãos em suas costas, Raoni fechou os olhos, encostou sua testa na dela e começou um canto de reza. Fui pego de guarda baixa. Me dei conta que, de alguma forma, estava participando de algo muito forte. Quando ela arrepiava, Raoni também arrepiava. E eu junto. Ela já soluçava e vi que Raoni também derramava lágrimas. Sem nem ter notado, eu já estava com a cara molhada.
Não foi um ritual que demorou muito, mas me pego pensando nessa interação frequentemente. Testemunhar o cruzamento de histórias tão distantes, mas ao mesmo tempo tão familiares, foi muito humano. Duas pessoas que se enxergavam por inteiro e entendiam que não estavam sozinhas. Como já disse, Raoni ensina pelo exemplo, e seu maior ensinamento é escutar. Aquela escuta verdadeira, sensível, que atravessa línguas e fronteiras. Espero um dia masterizar essa conexão como faz Raoni.
Durante o evento em Stanford, Raoni decidiu tomar outro rumo em suas falas. Começou dizendo que nossas divisões no mapa são meras ilusões e que as forças naturais não conhecem fronteiras e, por isso, ele também não. “Vivemos num mundo só, respiramos o mesmo ar, bebemos da mesma água. Precisamos estar unidos nesta luta para acabar com os problemas que preocupam os espíritos da floresta: a destruição da natureza e o futuro da vida nesta terra. Precisamos caminhar juntos por um mundo onde possamos viver em harmonia”, ressaltou o cacique.
Para uma plateia repleta de cientistas, professores, acadêmicos e alunos de ciência, Raoni resolveu falar da cosmovisão Kayapó. Contou de uma visão, após perguntar para os espíritos qual era sua missão na Terra. Um grande pássaro preto o levou a uma imensa árvore repleta de frutos. Notou que um deles era o nosso planeta e entendeu que fazemos parte de algo maior. Raoni pediu uma pena ao espírito para provar o que via. Porém, o sábio espírito tinha mais uma lição: retirar algo do lugar que cumpre seu papel é causar desequilíbrio. Uma simples pena pode significar a morte de um mundo. Por isso, Raoni traz essa mensagem.
Foi incrível ver cada interpretação à sua maneira: ecólogos viram relações entre espécies e ambientes, antropólogos, arquétipos simbólicos. Outros lembraram da Yggdrasil, a árvore da vida nórdica. Mas todos chegaram à mesma conclusão: o futuro depende das escolhas que fazemos agora e elas devem vir com respeito e consciência.
Desde sua estreia, O chamado do cacique foi exibido em eventos nacionais e internacionais: no UK-Brazil Forum; na London Climate Action Week; no Festival de Garopaba; e na 10ª FESTiFRANCE, onde ganhou como melhor documentário. Mas nenhum prêmio se compara ao que se ganha ao caminhar com Raoni. Seja em Stanford, no Acampamento Terra Livre ou em Paris, o que fica é a consciência viva de que toda existência tem voz.
O chamado do cacique é também um chamado para nós. Sabemos da força das vozes indígenas, mas temos coragem de escutá-las de verdade? Em tempos de urgência climática e desintegração humana, a sabedoria de Raoni é um lembrete vital. Ou aprendemos a escutar a Terra e uns aos outros, ou perderemos ambos.