1) O Supremo fragmentado: múltiplos espaços, múltiplos tribunais
Temos hoje 18 Supremos: 11 ministros e seus gabinetes (com suas relatorias e pautas pessoais)[1]; o plenário físico (com sua pauta definida pelo presidente do STF e, eventualmente, em conjunto com seus pares); o plenário virtual (com sua pauta definida por cada ministro quando insere um processo de sua relatoria para julgamento no plenário virtual); 2 Turmas, com julgamentos presenciais definidos pelo ministro presidente de cada Turma; um plenário virtual para cada Turma (PV 1ª Turma e PV 2ª Turma); e temos também o Núcleo de Solução Consensual de Conflitos (Nusol), onde se fazem acordos por meio de conciliação e mediação.
Não temos um Supremo Tribunal Federal, como a Constituição desenhou. Não temos mais 11 ilhas[2]. Nem mesmo 11 Estados soberanos[3]. Não temos 15 Supremos criminais[4]. Passou o tempo da Supremocracia[5]. E a Ministrocracia[6] parece ter se agravado. A outra face dessa moeda é o plenário mudo[7]. Raramente temos tomada de decisão colegiada e deliberativa[8].
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Com a expansão do plenário virtual na pandemia de Covid-19, seu uso cada vez mais amplo e majoritário e a criação de um órgão para conciliação e mediação no Supremo por resolução unilateral do presidente do STF (o atual Nusol), o Supremo aumentou. O STF aumentou de tamanho, em competência, em possibilidades decisórias. Não temos um Supremo Tribunal Federal. Temos 18 Supremos.
É quase lugar comum dizer que o STF hoje é fracionado. Mas parece que a fragmentação do Supremo só aumenta. O plenário do STF vai se transformando em plenário inerte. Ou em plenário lateral. É o principal órgão do Supremo. Está no principal edifício do STF – aquele projetado por Oscar Niemeyer e que ocupa a Praça dos Três Poderes. Mas é o órgão menos ativo, é o que menos tempo funciona no STF[9]. Só é órgão principal quando convém – a um agir estratégico de algum ministro (do ministro relator do caso, do presidente do STF quando faz a pauta ou do ministro que destaca o caso do plenário virtual para levá-lo ao plenário físico).
Os julgamentos aos montes no plenário virtual, literalmente aos montes, onde ministros assinam decisões às dezenas enquanto fazem outras atividades (afinal é humanamente impossível um ministro prolatar a quantidade de decisões que profere, ainda que todos trabalhassem sete dias por semana, oito horas por dia, 30 dias por mês, sem finais de semana, sem férias – e por mais que celebrem sempre, e sempre, os números e milhares de processos que julgam), parecem inaugurar uma nova era de fragmentação. A do STF físico e a do STF virtual.
O STF virtual funciona 24/7. Qualquer ministro, a qualquer hora, pode inserir um processo para julgamento na próxima sessão do plenário virtual. E qualquer ministro, a qualquer hora, pode destacar um caso em julgamento. Mesmo que isso ocorra às 23h30 e o julgamento já tenha formado maioria (vide o caso do destaque feito pelo ministro Nunes Marques no caso da revisão da vida toda e o desfecho completamente diferente que foi dado ao tema).
O STF físico só funciona às terças, quartas e quintas. Às terças funcionam as duas Turmas. Às quartas e quintas o plenário. O Nusol pode funcionar a qualquer tempo – e de qualquer modo. É um órgão não previsto pela Constituição, nem pela lei e nem mesmo pelo Regimento Interno do STF[10].
Foi inventado por resolução unilateral do então presidente do STF, ministro Dias Toffoli. E a cada presidência que o sucedeu (Luiz Fux, Rosa Weber e Luís Roberto Barroso), cada ministro (a) deu uma cara nova, um nome novo e ampliou esse espaço de conciliação e mediação – o que na prática vem transformando o STF no terceiro turno da política e em alguns casos negociando a nossa Constituição (vide o caso do marco temporal na ADC 87, ADI 7.582, ADI 7.583, ADI 7.586 e ADO 86, do IOF e dos descontos do INSS[11]).
2) Decisões sem deliberação
Já não se diz mais que um caso chegou ao STF. E sim que o ministro A é o relator do caso Y. Já não se pergunta mais quando o caso será julgado pelo Supremo, e sim quem é o relator e que medida ele pode tomar – sozinho. As sustentações orais dos advogados continuam a ser performances para clientes verem. Quase sempre tem pouca serventia. Os ministros chegam às sessões plenárias com seus votos prontos. Ouvem os advogados na tribuna e terminada a sustentação começam a leitura de seus votos ou declarações.
De vez em quando uma sustentação oral chama a atenção, arranca algum pedido de esclarecimento por parte de algum ministro ou eventualmente faz surgir um pedido de vista. São as poucas exceções que apenas confirmam a regra. Muitos acreditam que a decisão se toma em plenário, na sessão de julgamento transmitida pela TV Justiça. Mas a verdade é que a maioria das decisões não são tomadas no plenário. Elas são tomadas no Anexo II do STF, aquele prédio comprido e curvo lá atrás e à esquerda do prédio principal do Supremo.
E por que esse diagnóstico importa? Porque como todos os outros – o das 11 ilhas, o dos 11 Estados soberanos, o da Supremocracia, o da ministrocracia, o do plenário mudo, o de que há déficit deliberativo e colegiado na tomada de decisões – mostra que a falta de confiança que temos assistido no STF não acontece do dia para a noite. Ela é construída. Pelos próprios ministros que parecem gostar mais de ver a si próprios do que a instituição a que pertencem. Por agentes antidemocráticos que ligam pouco para o Estado democrático de Direito – deputados, senadores, ex-presidente, empresários, generais, coronéis, almirantes são alguns personagens da nossa história recente.
A Constituição previu um Supremo Tribunal Federal. Todos os ministros são o Supremo. Mas nenhum deles é todo o tribunal. E se todos se creem supremos, então não há um Supremo. Em vez de repararem nos diagnósticos, os ministros parecem ampliar e aprofundar as possibilidades de atuações individuais e individualistas. O resultado? 18 Supremos.
Se vamos fragmentando o STF, ele vai perdendo institucionalidade. Ministros podem ganhar força. Mas essa força também pode ser ocasional. Se os ventos políticos mudarem de rumo, quem é forte sozinho hoje pode perecer amanhã na bancada da política de ocasião. Exemplos não faltam.
Joaquim Barbosa já foi máscara de carnaval na época do mensalão e um meme quando meme ainda era algo novo. Sergio Moro já foi herói nacional. Rodrigo Janot e Deltan Dallagnol também. A Terra girou, o Brasil mudou, os adjetivos de outrora talvez não sejam mais os mesmos. O que não mudou? A fragmentação do STF. Essa só aumentou.
Não à toa se tornou fácil confundir as críticas adequadas ao Supremo com discursos contra o Supremo. É preciso separar as coisas. Uma coisa é criticar o STF por suas decisões, pelas posturas de seus ministros, por esses diagnósticos que se aprofundam cada vez mais. Outra bem diferente é instrumentalizar essas críticas para fechar o Supremo, para propor impeachment de ministro[12] por discordância de suas decisões ou para propor reformas à Constituição que esvaziam o STF ao invés de aprimorá-lo[13].
3) Rotas de saída: três possibilidades imediatas
Se os diagnósticos importam para entendermos o tempo presente, então também é possível pensar em direções, correções e propostas possíveis. Três direções e possibilidades podem dar início a um debate de correção e aprimoramento institucional ao STF nestes tempos em que o tribunal e seus ministros vêm sendo atacados:
1) Fim das cautelares monocráticas em ADI: as decisões cautelares monocráticas em ADI são inconstitucionais, ilegais e antirregimentais. E elas não são necessárias. Não há perecimento de direito provável que as justifique, pois há ao menos quatro alternativas a elas: pedido de preferência e prioridade na próxima sessão plenária; apresentação de Questão de Ordem à pauta e calendário de julgamento; requisição de convocação de sessão extraordinária, submissão imediata do pedido ao plenário virtual. Se o STF insistir nesse discurso e prática, a PEC 8/2021 que veda as decisões monocráticas e ainda impõe prazo para o julgamento da cautelar e do mérito é a melhor correção legislativa em curso hoje.
2) Melhor uso do plenário virtual: ele pode entregar mais do que muitas decisões em pouco tempo. O espaço virtual poderia fomentar mais deliberação interna e menos divergência argumentativa. Para tanto, o plenário virtual poderia ter um espaço para apresentação de questões ou contra-argumentos; de janela específica que reúna e liste argumentos consensuais ou majoritários e separe argumentos singulares ou que sejam minoritários; criação de enquetes provisórias para facilitar a definição do que é consensual, majoritário ou minoritário. Tudo isso facilitaria, inclusive, mais decisões per curiam[14]. Já vimos como isso é possível e como o Supremo acerta precisamente quando age desse modo. Um novo uso para o plenário virtual, fomentando, no mínimo, deliberação interna, já poderia ter um potencial transformador: maior deliberação, maior coesão decisória, melhor colegialidade.
3) Melhor uso da conciliação: primeiro de tudo, ao menos criar o órgão e prevê-lo no Regimento Interno do STF, por emenda regimental. Definir onde cabe e onde não cabe conciliação. Quando o STF funciona como tribunal da federação, quando atua em ADPF para evitar possível ato lesivo do poder público, quando atua em ADO, pode ser uma boa via. Em ADI, ADC e ADPF de atos concretos lesivos, não. Outros regramentos conviriam: diferenciar conciliação e mediação, bem como quem pode ser mediador e conciliador. O regramento sobre a publicidade ou sigilo das conciliações também é ponto fundamental, sob pena de termos acordos sendo costurados às escuras, em nome de todos os cidadãos, mas só com alguns partícipes a portas fechadas. Não é transparente, nem republicano e muito menos igualitário. Sobretudo se o acordo afeta quem nem sequer está sentado na mesa de negociação. Já temos muitos exemplos ruins (marco temporal, IOF, INSS), mas temos também alguns exemplos virtuosos (os casos de cotas para mulheres nos concursos da PM de alguns estados e do DF).
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O Supremo está na pauta da política – nacional e internacional. A presidência do STF muda em setembro de 2025 (sai o ministro Barroso e entra o ministro Edson Fachin). As eleições gerais de 2026 vêm aí. O STF estará na pauta da política. E também dos primeiros movimentos do novo governo em 2027, seja ele qual for. Esse é o horizonte que temos e que se avizinha.
A Constituição nos deu um guardião da Constituição: um Supremo Tribunal Federal. Não foram 11 ministros, nem 11 ilhas, nem 11 Estados soberanos, nem uma Supremocracia, muito menos uma Ministrocracia. Tampouco queremos um plenário mudo. Ou razões individuais, 11 votos que não se conversam e apenas potencializam personalismos que hoje colocam o STF em xeque perante a sociedade. Não podemos ter 11 processos. E nem muito menos 18 Supremos. Há rotas de saída e soluções possíveis.
[1] Destaque-se aqui a diferença de competências exercidas pelo Presidente do STF dos demais dez ministros do Supremo. Enquanto os dez ministros exercem primariamente funções judiciais, como a atuação nas Turmas ou no Plenário, na relatoria e revisão de processos, o Presidente do STF acumula competências singulares de caráter diretivo e institucional, conforme previsto no art. 13 do Regimento Interno do STF (RISTF). O ministro Presidente do Supremo representa o Tribunal, conduz sessões, decide questões de ordem, exerce voto de qualidade em caso de empate. O ministro que vai assumir a Presidência do STF leva consigo para a presidência os processos do seu acervo que queira manter sob a sua relatoria.
[2] MENDES, Conrado Hübner. Onze Ilhas. In: Jornal Folha de São Paulo. Caderno Opinião. São Paulo, 01 de fevereiro de 2010. A metáfora do STF como 11 ilhas foi cunhada pelo ministro Sepúlveda Pertence, e ganhou projeção com o referido artigo de Conrado Hübner Mendes na Folha de São Paulo.
[3] RECONDO, Felipe. Das 11 ilhas aos 11 soberanos. Brasília, JOTA, 26/06/2018. Disponível em: https://www.jota.info/stf/do-supremo/das-11-ilhas-aos-11-soberanos
[4] FALCÃO, Joaquim; BATINI, Silvana; HARMANN, Ivar. ALMEIDA, Guilherme da Franca C. D. de. A realidade do Supremo Criminal – VI Relatório Supremo em Números. Rio de Janeiro: FGV Direito Rio, 2019. Disponível em: https://repositorio.fgv.br/server/api/core/bitstreams/ff0e19d7-3542-4bea-924d-1ceffcbf3805/content
[5] VIEIRA, Oscar Vilhena. Supremocracia. In.: Revista Direito GV, n. 2, p.441-464, jul-dez-2008. Disponível em: https://www.scielo.br/j/rdgv/a/6vXvWwkg7XG9njd6XmBzYzQ/?format=pdf&lang=pt
[6] ARGUELHES, Diego Werneck; RIBEIRO, Leandro Molhano. ‘Ministrocracia’? O Supremo Tribunal Individual e o processo democrático brasileiro. In: NOVOS ESTUDOS CEBRAP (ONLINE), v. 37, p. 13-32, 2018. p. 14.
[7] GODOY, Miguel Gualano de. STF e Processo Constitucional: caminhos possíveis entre a ministrocracia e Plenário mudo. Belo Horizonte: Ed. Arraes, 2021.
[8] RODRIGUEZ, José Rodrigo. Como decidem as Cortes? Para uma crítica do Direito (brasileiro). São Paulo: Ed. FGV, 2013.
[9] VIII Relatório Supremo em números: quem decide no STF? Disponível em: https://direitorio.fgv.br/conhecimento/viii-relatorio-supremo-em-numeros-quem-decide-no-supremo
[10] GODOY, Miguel Gualano de. STF e Processo Constitucional: caminhos possíveis entre a ministrocracia e o Plenário mudo. Belo Horizonte: Ed. Arraes, 2021. GODOY, Miguel Gualano de. O Supremo pode negociar a constitucionalidade das leis? Brasília, JOTA, 03/06/2024. Disponível em: https://www.jota.info/stf/supra/o-supremo-pode-negociar-a-constitucionalidade-das-leis
[11] GODOY, Miguel Gualano de.; BRITO, Leonardo Soares. Lições cruzadas: por que o STF erra ao promover conciliações em ações do controle abstrato? Brasília: JOTA, 18/07/2025. Disponível em: https://www.jota.info/stf/supra/licoes-cruzadas-por-que-o-stf-erra-ao-promover-conciliacoes-em-acoes-de-controle-abstrato
[12] GODOY, Miguel Gualano de. O impeachment de um ministro do Supremo se aproxima? Brasília: JOTA, 26/09/2024. Disponível em: https://www.jota.info/stf/supra/o-impeachment-de-um-ministro-do-stf-se-aproxima
[13] SOBREIRA, David; GODOY, Miguel Gualano de. Guardião ou senhor soberano da Constituição? Brasília, JOTA, 11/10/2024. Disponível em: https://www.jota.info/opiniao-e-analise/artigos/guardiao-ou-senhor-soberano-da-constituicao
[14] GODOY, Miguel Gualano de; MATHEUS, Caio. Quando o Supremo acerta: o voto per curiam na ADPF 635. Brasília, JOTA, 28/04/2025. Disponível em: https://www.jota.info/stf/supra/quando-o-supremo-acerta-o-voto-per-curiam-na-adpf-635