É possível destituir os presidentes das Casas Legislativas?

Se as Casas Legislativas podem eleger, naturalmente, também têm o poder de destituir os seus presidentes. Por mais que a Constituição não discipline o assunto, essa é a lógica que se extrai dos arts. 51, incisos III e IV, e 52, incisos XII e XIII, da CF, que conferem poderes, respectivamente, à Câmara dos Deputados e ao Senado para elaborar seu regimento interno e dispor sobre sua organização, funcionamento etc.

Assim, a rigor, as Casas Legislativas têm autonomia para disciplinar a matéria em regimentos internos. Entretanto, as atuais normas internas da Câmara e do Senado – seguindo a grande maioria dos regramentos parlamentares do mundo – não preveem um procedimento específico para a destituição das funções de quaisquer dos membros da Mesa.

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Não há quaisquer regras com hipóteses de suspensão ou deposição da função de chefe do Legislativo, com exceção das causas naturais de morte, incapacidade ou mudança de partido. Nessa última hipótese, a perda do cargo da Mesa é automática, devendo-se convocar novas eleições, como aconteceu em 2022 para os cargos de 1º vice-presidente, 2º secretário e 3º secretário na Câmara, após os então titulares – Marcelo Ramos (PSD-AM), Marília Arraes (Solidariedade-PE) e Rose Modesto (União-MS) – mudarem de partido.

Diante dessa omissão regimental, a literatura brasileira se divide quanto à possibilidade de destituir os membros da Mesa por votação dos pares. Um segmento não desprezível entende não ser possível remover os membros da Mesa eleita, incluindo o chefe do Legislativo.

Para Luiz Alberto dos Santos, por exemplo, o único modo de afastar o presidente de uma Casa Legislativa é cassando o seu mandato. Então, seria necessário abrir um processo de cassação do próprio mandato, com base no art. 55 da CF, com o que se exigiria a infração a quaisquer das proibições estabelecidas no art. 54 da CF (impedimentos e incompatibilidades); a violação do decoro parlamentar, o abuso das prerrogativas, a percepção de vantagens indevidas ou outra conduta incompatível com o mandato; ou a condenação criminal por sentença por transitada em julgado.

Nesses casos, a perda do mandato segue o rito constitucional já conhecido, mediante provocação da respectiva Mesa ou de partido político representado no Congresso Nacional, exigindo decisão do plenário da Casa, por maioria absoluta, assegurada ampla defesa.

Não custa recordar que os casos de não comparecimento à terça parte das sessões ordinárias da Casa, em cada sessão legislativa; de perda ou suspensão dos direitos políticos; e de decretação pela Justiça Eleitoral estão sujeitos a mera declaração da Mesa, de ofício ou mediante provocação de qualquer de seus membros, ou de partido político representado no Congresso.

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Como se vê, essa linha de raciocínio (de que a lacuna regimental significa uma proibição) não contempla a possibilidade de destituição da função por mera perda do apoio político, situação em que o deputado ou senador perderia, não o mandato, mas tão somente a função na Mesa. De fato, não se tem registro de casos de destituição de presidentes da Câmara ou do Senado por votação do plenário correspondente.

Normalmente, quando o presidente da Casa Legislativa já não mais reúne as condições políticas para o exercício do cargo, a solução costuma ser a renúncia, de forma a evitar o desgaste do processo de cassação. Foi o que aconteceu, por exemplo, com Severino Cavalcanti (PP-PE).

Ele havia sido eleito presidente da Câmara em fevereiro de 2005, mas renunciou ao cargo em setembro do mesmo ano após denúncias de corrupção envolvendo um suposto esquema de cobrança de propina de um concessionário de restaurante na Câmara, episódio que ficou conhecido como “mensalinho” da Câmara. Ao renunciar, ele deixou tanto a presidência da Câmara quanto o mandato de deputado federal.

Em 2007, Renan Calheiros (MDB-AL) também renunciou ao cargo de presidente do Senado. O senador recém tinha sido absolvido no processo de cassação por quebra de decoro parlamentar no mês de setembro, por votação secreta no plenário. No entanto, diante da pressão política e novas acusações, ele acabou renunciando à presidência do Senado em dezembro do mesmo ano, mas não renunciou ao mandato de senador.

Em sua carta de renúncia, afirmou: “Compreendo que presidir esta Casa é consequência das circunstâncias políticas. Entendo também que, quando tais circunstâncias perdem densidade, ameaçando o bom desempenho das atividades legislativas, é aconselhável deixar o cargo. Assim, renuncio ao cargo de presidente do Senado Federal, sem mágoas ou ressentimentos, de cabeça erguida”.

Alguns anos depois, em 2016, o ministro Marco Aurélio chegou a proferir decisão monocrática nos autos da ADPF 402, no dia 5 de dezembro (poucos dias antes do início do recesso parlamentar), afastando o presidente do Senado, o mesmo senador Renan Calheiros, por ter se tornado réu no Inquérito 2.593, e, tendo em vista estar na linha de substituição do presidente da República e poder vir a substitui-lo na Chefia do Estado, o que ensejaria aplicação por analogia do art. 86, § 1º, da CF, pelo qual o presidente da República fica suspenso de suas funções caso se torne réu.

Entretanto, como sabido, a Mesa do Senado Federal se recusou a cumprir a determinação de afastamento e resolveu ignorar a decisão monocrática até que o plenário do STF se manifestasse sobre o referendo. Reunido o pleno, o relator ficou vencido, juntamente com os ministros Rosa Weber e Edson Fachin, e a maioria aderiu a divergência aberta pelo ministro Celso de Mello (seguido pelos ministros Teori Zavascki, Dias Toffoli, Luiz Fux, Ricardo Lewandowski e Cármen Lúcia; o ministro Gilmar Mendes esteve ausente justificadamente e o ministro Barroso se declarou suspeito) para impedir o presidente do Senado de substituir o presidente da República, mas mantê-lo na presidência da Casa Alta.

Resumindo, a corte recuou e parece ter reconhecido o não cabimento de decisão monocrática para determinar o afastamento de presidente de Poder.

Por outro lado, permaneceu o “precedente” criado alguns meses antes na AC 4.070 – em que a monocrática do ministro Teori Zavascki foi referendada por unanimidade no mesmo dia em que proferida (ou seja, a decisão foi de plenário) –, determinando a suspensão de Eduardo Cunha (PMDB-RJ) do exercício do mandato de deputado federal e, em decorrência, da função de presidente da Câmara. Na justificação, apontou-se que o deputado vinha agindo em desvio de finalidade, teria coagido testemunhas e tentado interferir na condução de investigações de natureza penal e disciplinar.

Pouco tempo depois, Cunha acabou renunciando à presidência da Câmara. Na sua carta de renúncia, o parlamentar também mencionou que revolveu “ceder aos apelos generalizados” dos seus apoiadores.

Esses dois julgados do STF servem para mostrar que a destituição do presidente de uma Casa Legislativa pelos próprios pares é realmente algo difícil.

Tal realidade não é exclusiva do Brasil. Foi somente em outubro de 2023 que, pela primeira vez na história dos EUA, o speaker (equivalente a presidente da Câmara) Kevin McCarthy foi removido do cargo após nove meses da sua eleição. Curiosamente, foi ele mesmo quem abriu essa possibilidade, ao concordar com uma mudança nas regras da Câmara para permitir que qualquer membro pudesse apresentar uma moção para depô-lo, como condição para que ele fosse eleito speaker. Entre os fatos apontados para que McCarthy desocupasse a cadeira, estavam a quebra de promessas, ou seja, novamente a perda da confiança dos pares aparece como elemento determinante para o realinhamento das forças políticas.

No caso do Brasil, por mais que não haja regras expressas, nem se tenha conhecimento de destituição de um presidente de Casa Legislativa por votação dos pares, o entendimento pela impossibilidade de fazê-lo implicaria conferir uma estabilidade incompatível com a lógica da responsabilidade política a que os parlamentares estão sujeitos. Além disso, se as Casas podem o mais (que é cassar o próprio mandato), também podem o menos (que seria remover o parlamentar da função de presidente).

Outro argumento em favor da viabilidade jurídica no desenho institucional é o de que a mera possibilidade de destituição pode moldar o comportamento do presidente rumo a uma maior neutralidade, já que, na medida do possível, os presidentes das Casas devem estar acima das confrontações partidárias e atuar em consonância com os interesses gerais da Casa. Uma indemissibilidade fragilizaria esse mecanismo de incentivos.

É que há uma relação entre a responsabilização e a neutralidade ou partidarismo do presidente. Como apontam Marcelo Jenny e Wolfgang C. Müller após estudar a função dos presidentes de parlamento em 18 países, se o presidente não puder ser destituído, a responsabilidade é baixa e, quanto mais fácil for remover o presidente, mais responsável ele é. Entretanto, a maioria dos países não tem um procedimento formal fixo para terminar prematuramente o mandato do chefe do Legislativo. Só Grécia, Islândia, Irlanda, Dinamarca e Noruega preveem a remoção de um presidente que caiu em desgraça em sua assembleia.

Atento aos problemas da omissão regimental no caso da Câmara, o deputado Luiz Philippe de Orleans e Bragança (PL-SP) apresentou o PRC 5/2024, propondo modificar o regimento interno da Casa para prever o voto de não confiança dos membros da Mesa.

Pela proposta, o procedimento tem início com o requerimento subscrito por um terço (171) dos deputados que consideram que o ocupante do cargo não está cumprindo suas funções de forma satisfatória. Após o protocolo, o “contestado” fica automaticamente afastado do cargo. Uma sessão deliberativa extraordinária será convocada para a votação. O afastamento definitivo depende da maioria absoluta da Câmara, em votação ostensiva.

Tal como desenhado no PRC 5/2024, o voto de não confiança seria um instrumento da minoria, cujo uso tenderia a mergulhar a Casa em um caos, sobretudo porque não trouxe qualquer trava de irrepetibilidade no sentido de que, se a proposta fracassa, por exemplo, seus signatários não poderiam apresentar outro voto de não confiança na mesma sessão legislativa.

Ninguém deseja que os presidentes das Casas Legislativas sejam destituídos. Nada obstante, é preciso reconhecer que a omissão regimental quanto a um procedimento específico, definitivamente, não é um óbice para tanto ante a soberania do plenário e a lógica do direito de que uma lacuna não significa uma proibição. Nesse contexto, a discussão de um mecanismo claro pode ser salutar. Uma lista elencando hipóteses de destituição de fato enfraqueceria a figura presidente, mas algo que o lembre das suas responsabilidades perante os pares é conveniente.

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