Depois de ignorar por mais de onze anos a determinação do Conselho Administrativo de Defesa Econômica (Cade) para que reduzisse a participação na Usiminas a no máximo 5% das ações, a Companhia Siderúrgica Nacional (CSN) finalmente decidiu cumprir a decisão. O caso envolve multas de centenas de milhões de reais e terminou com a entrada em cena dos irmãos Joesley e Wesley Batista e de um fundo recém-constituído, chamado Vera Cruz.
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Em 2022, oito anos depois da primeira decisão que mandava a CSN vender as ações, o Cade havia estabelecido que o prazo para o cumprimento seria indeterminado, o que permitiria à empresa, na prática, manter as ações adicionais da Usiminas pelo tempo que desejasse.
Nos últimos anos a Justiça Federal atuou para mudar isso. No ano passado, os desembargadores da 4ª Turma do Tribunal Regional Federal da 6ª Região (TRF6) determinaram que a CSN cumprisse o desinvestimento, no prazo de um ano, contado a partir da sentença, que foi prolatada em junho de 2023.
Diante da inação da CSN e do Cade, em 2 de junho deste ano, a desembargadora Mônica Sifuentes, do TRF6, mandou que o Cade deliberasse formalmente sobre as consequências do inadimplemento, por parte da CSN, e que aplicasse as punições administrativas cabíveis.
Logo depois, em 17 de julho, a desembargadora entendeu que a autarquia não havia cumprido integralmente a ordem. Por isso, mandou intimar, de forma pessoal e nominal, todos os conselheiros do Cade, por meio de mandado judicial, para que tomassem ciência individualizada do teor de uma nova decisão. E provocou o MPF a se manifestar sobre “eventual responsabilização por omissões administrativas com repercussão concorrencial”.
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Só então, a CSN se mexeu e fez as vendas em 30 de julho de 4,99% de suas ações para a Globe, empresa dos irmãos Joesley e Wesley Batista (donos da J&F), por R$263,3 milhões; e, em 5 de agosto de 2,93% das ações da Usiminas para um fundo recém-constituído chamado Vera Cruz, por R$ 163,7 milhões. Agora a CSN detém apenas 4,99% das ações da Usiminas, abaixo dos 5% determinados inicialmente pelo Cade.
Mesmo após a venda, o caso não foi encerrado: o Cade ainda precisa determinar o valor da multa que a siderúrgica de Benjamin Steinbruch deve pagar pela demora na venda das ações da Usiminas. O JOTA apurou que, de acordo com os critérios usualmente considerados pelo Cade, o valor chegaria a R$ 110 milhões, a serem pagos para o órgão fiscalizador.
Concorrência em risco
A CSN começou a comprar as ações da Usiminas na bolsa em 2010, chegando a ter 17,43% do capital total da empresa entre 2011 e 2012 – a maior acionista individual da concorrente fora do grupo controlador.
No entanto, a CSN só notificou o ato de concentração após ser ordenada a fazê-lo pelo Cade. Provocada pela Usiminas, a autarquia também deferiu uma medida cautelar, por decisão do conselheiro Olavo Chinaglia, para “resguardar as condições preexistentes às operações” e impedir o direito ao voto da CSN na empresa. A medida foi fundamentada no fato de que há uma alta concentração no mercado de aços planos, com apenas 3 fabricantes no Brasil, tendo barreiras significativas à entrada e à saída e baixa rivalidade.
Em 2014, o Cade entendeu que era necessária a redução dessa participação societária. Ao analisar o caso, o conselheiro Eduardo Pontual concluiu que havia “elevada probabilidade de exercício de poder de mercado decorrente da participação minoritária da CSN na concorrente, mesmo quando considerada de natureza meramente financeira”.
O órgão fiscalizador então fez um Termo de Compromisso de Desempenho (TCD) com a CSN que estabelecia a obrigação de alienar suas ações até que não fosse proprietária de mais de 5% do capital social total. O prazo era de cinco anos.
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Em 2019, a CSN pediu o adiamento do prazo por mais dois anos. Após um novo pedido de adiamento, em 2022 o Cade decidiu renovar o TCD com a empresa para que a venda das ações passasse a ter prazo indeterminado.
Foi então que a Usiminas entrou na Justiça com um mandado de segurança contra o Cade para suspender o ato que tornou o prazo indeterminado, o que foi concedido pelo TRF6.
Em julho de 2023, o TRF6 deu um prazo de mais um ano para que a CSN vendesse suas ações.
A CSN novamente ignorou a ordem para liquidação da sua participação. Em um comunicado ao mercado em julho de 2024, a CSN afirmou que a ação corria “em segredo de Justiça” e que não estava descumprindo ordem judicial porque “não houve o decurso do prazo estipulado pelo juízo para a alienação das ações” da Usiminas.
No entanto, recursos da CSN e do Cade foram negados pela Justiça, que afirmou que o prazo de um ano, iniciado com a intimação da sentença em julho de 2023, se mantinha. Segundo o TRF6, a demora na alienação dos ativos pela CSN era um ato potencialmente lesivo à ordem econômica e à livre concorrência.
Para o desembargador Ricardo Machado Rabelo, relator da ação, o fato de a CSN ser a maior acionista individual de sua principal concorrente “implica na possibilidade de ter acesso a informações privilegiadas, bem como manipular o preço da ação”.
Cade é compelido pela Justiça
Em 2024 completaram-se 10 anos da determinação inicial do Cade para a venda das ações, mas a autarquia não voltou a questionar a CSN nem estabeleceu uma multa para o descumprimento da ordem de venda.
A Usiminas então voltou a procurar a Justiça. Em junho de 2025, o TRF6 intimou o Cade para deliberar formalmente sobre as consequências do descumprimento da CSN da obrigação de desinvestimento.
Em um parecer técnico sobre o caso enviado à Justiça, o Ministério Público Federal recomendou a nomeação de um interventor na CSN com poderes específicos para alienar as ações da Usiminas e a execução do TCD em juízo.
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“Não pode haver espaço para que o Tribunal do Cade, por meio de nova decisão administrativa, venha a revisar ou relativizar a decisão colegiada anteriormente proferida que consagrou as obrigações” que a CSN não cumpriu, afirmou o MPF. “Permitir tal revisão administrativa, além de afronta à segurança jurídica e ao Poder Judiciário, abriria perigoso precedente de deslegitimação dos compromissos firmados no âmbito da política antitruste nacional”, escreveram o procurador da República Fernando Antonio de Alencar Alves de Oliveira Junior e o procurador regional da República Ubiratan Cazetta.
Compelido pela Justiça, o Cade tratou do tema na data limite, 25 de junho, mas não cumpriu totalmente a determinação judicial. Um despacho do então presidente, Alexandre Cordeiro, declarou que a CSN estava descumprindo decisão judicial e determinou que a empresa fizesse a venda das ações, mas, em vez de estabelecer uma multa, deu novo prazo de 60 dias para que a empresa apresentasse um cronograma de desinvestimento “no menor tempo possível”.
Diante dessa indefinição, o TRF6 intimou pessoalmente os conselheiros para que cumprissem a medida judicial de estabelecer punições para as ações da siderúrgica e os alertou do risco de responsabilização pessoal por uma omissão.
A Usiminas entrou com um recurso no Cade sobre decisão de 25 de junho que dava ainda mais tempo não para que a CSN vendesse as ações, mas apenas para que apresentasse um cronograma. Enviados pelos Correios, os embargos de declaração demoraram alguns dias para chegar e foram julgados já sem Alexandre Cordeiro na presidência — o conselheiro terminou o mandato em 10 de julho, após dez anos na autarquia e quatro na presidência. Foi na presidência de Cordeiro, por meio do Despacho Presidência 111/2022, que a CSN ganhou o prazo indeterminado para não ter de se livrar das ações da Usiminas.
Pouco tempo depois da mudança na composição do Cade, a CSN finalmente fez duas grandes vendas de ações, reduzindo sua participação para 4,99%, porcentagem abaixo dos 5% considerados prejudiciais para a concorrência. Parte da sua participação foi comprada pela Globe, empresa dos irmãos Joesley e Wesley Batista. Outra parte foi comprada pelo fundo Vera Cruz. A Reag Trust, empresa que administra o fundo, não respondeu aos questionamentos do JOTA sobre o tema.
A venda das ações para o Fundo Vera Cruz foi anunciada pela CSN em 6 de agosto, mesmo dia em que acontecia a votação no Cade sobre o recurso da Usiminas.
Com a saída de Cordeiro, a inclinação do órgão fiscalizador mudou e o Cade teve maioria para aplicar multa à CSN pela protelação em sua obrigação de desinvestimento. O valor da multa, no entanto, ainda não foi divulgado. O prazo inicial para que o Cade calculasse o valor era de 5 dias úteis.
A Usiminas afirmou, em nota, que “a venda da participação da CSN na Usiminas, após mais de 11 anos do acordo assinado com o CADE, confirma que a referida participação societária foi adquirida de forma ilegal e contrária à legislação brasileira”.
“Somente após processo judicial promovido pela Usiminas e confirmado repetidamente pela Justiça Federal de MG e pelo Ministério Público Federal, a CSN finalmente desistiu de manter as ações em sua concorrente”, disse a empresa.
Questionada pelo JOTA sobre o caso, a CSN não respondeu até a publicação desta reportagem. O espaço segue aberto.
Reviravoltas na Justiça
Ações da Usiminas também estão no centro de outra disputa envolvendo a CSN, contra o grupo ítalo-argentino Ternium, que adquiriu participação na concorrente da CSN em 2011 sem oferta pública para compra das ações dos minoritários. O caso também teve idas e vindas na Justiça. Uma mudança na composição do órgão julgador no Superior Tribunal de Justiça (STJ) em 2023 foi fundamental para uma virada no entendimento do caso.
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Até então, o Tribunal de Justiça do Estado de São Paulo (TJSP) e a 3ª Turma do STJ tinham entendido que a entrada da Ternium na Usiminas não configurava uma alienação do controle da sociedade, o que afastaria a necessidade de oferta pública de aquisição de ações (OPA). A obrigatoriedade da OPA, mecanismo conhecido como tag along, só existe em casos de mudança de controle, para dar a acionistas minoritários a oportunidade de se livrar de sua participação na empresa nesse tipo de situação.
No entanto, em 2023, o ministro Paulo de Tarso Sanseverino morreu e Marco Aurélio Bellizze se declarou impedido, mudando a composição da Corte. Após essa mudança, em embargos de declaração, o STJ modificou o julgamento de mérito anterior e condenou a Ternium a pagar uma multa de R$ 5 bilhões à CSN. O novo entendimento foi de que a empresa teria “efetiva influência na tomada de decisões sensíveis” da Usiminas e por isso teria havido efetiva alienação de controle.
Em dezembro do ano passado, a 3ª Turma do STJ acolheu parcialmente os embargos de declaração apresentados no caso. O colegiado manteve a decisão, mas modulou os efeitos alterando critérios para a apuração do valor indenizatório de estimados R$ 5,5 bilhões para cerca de R$ 3,1 bilhões. O valor dos honorários também foi reduzido de R$ 500 milhões para R$ 5 milhões.
A virada no STJ levou a Associação de Comércio Exterior do Brasil (AEB) a entrar com uma Ação Direta de Inconstitucionalidade, a ADI 7.714, no Supremo Tribunal Federal (STF) contra a forma como a Corte interpretou o tema no caso da CSN versus a Ternium.
Em junho, a Procuradoria-Geral da República (PGR) apresentou um parecer dizendo que interpretação do STJ favorável à CSN é inconstitucional, coloca em perigo a segurança jurídica e é “frontalmente divergente em relação à fixada pela Comissão de Valores Mobiliários (CVM) no exercício de sua competência”.
A ADI está sob relatoria do ministro André Mendonça e não tem prazo para ser julgada.