No dia 14 de janeiro deste ano, centenas de indígenas pegaram barcos e ônibus em cidades do interior do Pará e partiram rumo a Belém para protestar contra mudanças que o governo estadual estava promovendo na educação das aldeias. Naquele momento, eles debatiam como se daria a manifestação e articulavam o apoio de outros movimentos sociais críticos à gestão de Rossieli Soares, então secretário da Educação do governo Helder Barbalho (MDB) no Pará. Hoje Soares ocupa cargo semelhante na Secretaria de Educação de Minas Gerais.
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O que os indígenas não sabiam é que, dentro de pelo menos um ônibus, agentes secretos transmitiam em tempo real informações sobre todos os seus passos à alta cúpula do governo. Formalmente, esses agentes estavam vinculados ao Programa de Proteção aos Defensores dos Direitos Humanos, uma parceria entre o governo federal e os estados para proteger ativistas ameaçados de morte. Na prática, eles agiam também como “colaboradores” do serviço de inteligência estadual, responsável por informar a tomada de decisão do governador e seus secretários.
Com base nessas informações, o serviço de inteligência produziu ao menos dois relatórios sigilosos que identificaram as lideranças do movimento, seus aliados, suas intenções e formas de financiamento. Os documentos orientaram o governo durante o momento de maior agitação popular dos dois mandatos de Helder Barbalho.
Os detalhes do fluxo que revelou dados sensíveis dos manifestantes ao governo foram descritos pelo delegado Carlos André Viana, chefe do Setor de Inteligência e Análise Criminal (Siac) da Secretaria de Segurança Pública do Pará. Em junho, ele prestou depoimento em um processo federal que trata das manifestações.
“Aqui na Siac, nós temos uma coordenadoria de acompanhamento dos defensores dos direitos humanos”, afirmou o delegado em um depoimento do processo 1004678-39.2025.4.01.3900, do Tribunal Regional Federal da 1ª Região (TRF1), ao qual o JOTA teve acesso. ˜Muitos deles estão em áreas protegidas pela União, seja quilombolas ou sejam áreas indígenas”, disse. “Quando eles iniciaram o deslocamento, eu avisei pro secretário.”
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Durante o percurso até Belém, os espiões se comunicavam com o governo por meio do WhatsApp ou por ligações, enviando imagens e detalhando o que as lideranças do protesto discutiam. Não foi a primeira vez que isso aconteceu. Em 2023, representantes de oito países se reuniram com o presidente Lula (PT) em Belém para a Cúpula da Amazônia, um evento preparativo para a COP30, a conferência da ONU que será realizada na cidade em novembro. Na ocasião, manifestantes indígenas críticos ao governo estadual também foram monitorados, segundo o chefe de inteligência.
Mas dessa vez, a espionagem foi além. Quando os indígenas Arapiun, Munduruku e Borari, entre outros, resolveram intensificar o ato e ocupar a Secretaria da Educação, exigindo a demissão do secretário, os agentes do estado entraram com eles.
“A gente começou a fazer esse acompanhamento diuturno. A gente ficava lá direto, inclusive com alguns colaboradores dentro do movimento, só que a gente não revela, principalmente para preservar a integridade dessas pessoas”, afirmou Carlos André Viana.
O depoimento de Viana foi dado no processo em que o Ministério Público Federal e a Defensoria Pública da União acusam Helder Barbalho e o estado do Pará de publicarem fake news contra os indígenas. Como o JOTA relevou em junho, o governador paraense descumpre há meses uma determinação da Justiça Federal para publicar um direito de resposta dos povos originários sob o argumento de que a postagem geraria “graves prejuízos à imagem institucional” do político.
Defensoria vê desvio de finalidade; Ministério Público vai abrir nova investigação
A revelação do delegado Viana de que o governo paraense trabalha com agentes “colaboradores” infiltrados entre os indígenas causou espanto entre membros do MPF e da Defensoria.
“Serviços de inteligência são realizados de acordo com a lei, e não existe permissão legal que autorize se utilizar o Programa de Proteção de Defensores de Direitos Humanos (PPDDH), que tem justamente como principal objetivo que o defensor ou defensora continue a exercer a sua militância, para alimentar a inteligência do estado para que adote medidas contra essa própria militância”, afirmou o defensor Marcos Teixeira, que atua no caso. “É um contrassenso.”
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Com base no depoimento e nos relatórios, o Ministério Público Federal decidiu abrir uma investigação própria para apurar a natureza da relação entre os espiões e o estado. Uma das questões em aberto é se os agentes infiltrados são funcionários públicos da secretaria ou se são os próprios indígenas protegidos pelo programa. Em nota, o governo negou que tenha protegidos no quadro de colaboradores.
“O Ministério Público Federal (MPF) informa que abrirá investigação específica a partir dos fatos revelados no depoimento judicial sobre o possível uso indevido do Programa de Proteção aos Defensores de Direitos Humanos (PPDDH) no Pará”, escreveu a Procuradoria da República no Pará ao JOTA.
Ao ser informado sobre o depoimento do delegado Viana, o cacique Dada Borari, defensor protegido pelo PPDDH do Pará desde 2006, reagiu com indignação: ”Os dados dos defensores são sigilosos”, disse ele, que foi uma das lideranças da ocupação. “O estado não pode ficar sabendo desses dados, até porque, querendo ou não, o estado é inimigo dos defensores. O estado libera grandes projetos na Amazônia só com o objetivo de trazer fundos, o que pra nós é muito ruim. Sabendo disso, eu quero fazer uma denúncia ao MP para que eu não precise mais dar informação pro programa, porque não tem como confiar.”
Governo diz que monitoramento segue a lei
Em nota enviada ao JOTA, o governo do Pará afirmou que as operações de monitoramento seguem a “legislação vigente”, sem mencionar uma lei específica, e negou desvio de finalidade do programa de Direitos Humanos.
“Colaboradores mencionados em operações de monitoramento não se confundem com beneficiários do Programa de Proteção aos Defensores de Direitos Humanos (PPDDH), tampouco há uso de informações protegidas pelo programa para fins alheios à sua finalidade”, escreveu o governo.
“Todas as ações são conduzidas com estrita observância da legislação vigente, preservando a integridade e a segurança de defensores de direitos humanos, comunidades e demais cidadãos, em conformidade com os direitos e garantias constitucionais.”
A reportagem procurou também a Secretaria de Igualdade Racial e Direitos Humanos, que é responsável por gerir o programa de proteção aos defensores. Edilza Fontes, a secretária, afirmou não ter tido conhecimento de que o programa teria sido usado para monitorar militantes indígenas durante a ocupação de janeiro.
A relação entre o governo Helder Barbalho e as várias etnias indígenas tem sido marcada por controvérsias, o que é visto no governo como um ponto sensível, principalmente com a proximidade da COP30. Apesar de ter o apoio das lideranças que comandam a Federação dos Povos Indígenas do Pará (Fepipa), Helder Barbalho sofre críticas dos líderes Arapiun, Borari e Munduruku, que estiveram à frente dos protestos do começo do ano.