A criminalização da corrupção privada no esporte

Há uma definição bastante clara e precisa sobre corrupção, formulada pelo ex-professor de Harvard e Yale Robert Klitgaard. Para o autor, há corrupção quando um indivíduo coloca interesses pessoais acima dos das pessoas e ideais aos quais ele está comprometido a servir.[1]

A modalidade de corrupção em que corruptor e corrupto possuem relação direta com a administração pública é amplamente conhecida e há muito criminalizada. No entanto, ao longo dos anos, cresceu significativamente a forma de corrupção na qual ambos, corruptor e corrupto, são agentes privados com interesses privados. A criminalização da corrupção privada é uma realidade consolidada no Direito Penal europeu e sua tipificação tem sido incentivada no Brasil.

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Em 2003, o Brasil tornou-se signatário da Convenção das Nações Unidas contra a Corrupção, que recomenda a criminalização do pagamento de propina entre particulares. No mesmo ano, a União Europeia determinou que seus Estados-membros criminalizassem a corrupção privada.

Portugal, um dos primeiros países a adotar essa criminalização, definiu os crimes de corrupção passiva e ativa no setor privado, prevendo causa de aumento de pena se a prática resultar em distorção da concorrência ou prejuízo material. A Convenção de Mérida, por sua vez, recomenda, de forma facultativa, que os países signatários tipifiquem a propina entre particulares como crime.

No sistema anglo-saxão, destaca-se o Bribery Act britânico (UKBA), que define atos de corrupção de forma ampla, abrangendo desde o pagamento de propinas para agentes públicos até transações entre empresas parceiras. Nos Estados Unidos, a legislação do Foreign Corrupt Practices Act (FCPA) prevê a criminalização da chamada “propina comercial”. Em verdade, a corrupção privada ou comercial possui corruptores que operam em detrimento de empresas com reflexo interno e externo em nível mercadológico.

O primeiro passo para a criminalização da corrupção privada no Brasil foi dado com a promulgação da Lei Geral do Esporte (Lei 14.597/23). O artigo 165 dessa lei, no capítulo dos crimes contra a ordem econômica esportiva, traz o crime de corrupção privada no esporte.[2]

Nesse contexto, caracteriza-se como crime exigir, solicitar, aceitar ou receber vantagem indevida, como representante de organização esportiva privada, para favorecer a si ou a terceiros, direta ou indiretamente, ou aceitar promessa de vantagem indevida para realizar ou omitir ato inerente às suas atribuições. A pena prevista é de reclusão de 2 a 4 anos e multa.

Além da previsão para a corrupção passiva, o artigo 165 também abarca a modalidade ativa, aplicando as mesmas penas a quem oferece, promete, entrega ou paga, direta ou indiretamente, vantagem indevida ao representante da organização esportiva privada.

O caput trata, portanto, de crime próprio, que só pode ser cometido pelo representante de organização esportiva privada, enquanto o parágrafo único prevê que qualquer pessoa pode ser o sujeito ativo do delito.

Merece cuidado a análise acerca da extensão do conceito de “representante de organização esportiva privada”. A Lei Geral do Esporte, ao contrário do desejável, não explicitou quem se enquadra como representante.

O artigo 64 da referida lei introduz o conceito de “gestor” e o artigo 66 define “dirigente” da organização esportiva privada, figuras distintas e menos amplas do que a idéia de represente, contida no tipo penal do artigo 165. Embora a norma penal incriminadora requeira interpretação restritiva, limitar o conceito de representante apenas a dirigentes e gestores conflita com o sujeito disposto no tipo, pois outros agentes podem figurar como representantes da instituição esportiva privada.

Em tese, representante seria aquele que atua em nome da agremiação, com poderes conferidos pelo estatuto da entidade privada, como presidentes e diretores, sejam eles estatutários ou não.

Essa interpretação levanta um ponto crucial: se adotarmos uma visão ampla do conceito de representante, todo atleta poderia ser considerado representante da instituição esportiva, o que levaria à possibilidade de enquadramento no crime do artigo 165 em casos de manipulação de resultados envolvendo atletas e terceiros estranhos à instituição esportiva privada.

No entanto, a própria Lei Geral do Esporte previu, de maneira específica, os crimes de incerteza do resultado esportivo, tipificados nos artigos 198 e 199, abrangendo atos passivos e ativos visando alterar ou falsear o resultado de uma competição. Assim, não cabe a aplicação do artigo 165 a esse tipo de delito.

Vemos, sem dúvidas, que optou o legislador por separar os tipos penais para atos específicos dos integrantes das entidades esportivas privadas e alargar o conceito de representante.

Neste sentido, haveria margem para a aplicação do artigo 165 no caso de intermediários contratuais ou agentes de atletas que, mesmo informalmente, obtenham autorização da diretoria do clube para representar a agremiação em negociações, sondagens ou outros atos em nome da entidade privada. Nessas circunstâncias, tais intermediários poderiam ser enquadrados como representantes da organização esportiva privada para efeitos do artigo 165, uma vez que, de fato, atuam em nome da instituição por delegação formal ou informal.

Nos modelos de clube associativo, onde associados elegem conselheiros, estes, entendo, não podem ser automaticamente considerados representantes da instituição esportiva privada, pois representam os sócios votantes, e não a entidade desportiva em si. No entanto, se um conselheiro assumir um cargo de representação da entidade ou intermediar negócios em nome do clube, poderia haver enquadramento como representante.

Nos parece assim, que no caso da corrupção privada no esporte, o legislador optou deliberadamente por não especificar a forma de representação da entidade desportiva privada, deixando aberto para fins de imputação no crime de corrupção privada, o que demanda maior cautela.

Vale dizer que este é o primeiro passo da criminalização da propina comercial, cuja tendência é a expansão para além da seara esportiva.

[1] KLITGAARD, Robert. Controlling Corruption. Berkeley; Oxford: University of California Press, 1988

[2] BRASIL. Lei nº 14.597, de 14 de junho de 2023. Institui a Lei Geral do Esporte. Diário Oficial da União, Seção 1, p. 6, 15 jun. 2023. Disponível em: https://www.planalto.gov.br/ccivil_03/_ato2023-2026/2023/lei/l14597.htm. Acesso em: 18 jul. 2025.

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