Cooperação interinstitucional, mediações pré-processuais e acesso à justiça

Como pode o sistema de justiça mais produtivo do mundo ser também um dos mais congestionados? Os números do sistema de justiça brasileiro revelam um paradoxo intrigante: o juiz brasileiro recebe uma média assustadora de novos processos por ano, há uma quantidade altíssima de processos pendentes, e o Judiciário brasileiro é um dos mais produtivos do mundo.

Intuitivamente, esses números nos mostram que o modelo tradicional da jurisdição não é suficiente sequer para dar conta da demanda recebida, que dirá para promover a democratização do acesso à justiça para a parcela da população que não conhece seus direitos ou os mecanismos para efetivá-los.

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Mas, se pretendemos concretizar os objetivos constitucionais fundamentais de construção de uma sociedade livre, justa e solidária; de erradicar a pobreza e a marginalização e reduzir as desigualdades sociais e regionais; e de promover o bem de todos, sem preconceitos e sem discriminação, é indispensável que haja a ampliação do acesso à justiça às populações marginalizadas.

Falo, aqui, não só de conferir a cada pessoa a possibilidade abstrata de postular perante o Poder Judiciário. Mas, principalmente, de assegurar a todas e todos o acesso a educação em direitos que lhes permita identificar as situações de quebra ou ameaça e, a partir desse ponto, a procurar por possibilidades de resolução – dentro ou fora do sistema de justiça formal. E, ainda, que essas soluções sejam justas e satisfatórias, e alcançadas em tempo adequado.

Para voltar ao mundo dos paradoxos, apesar de ser essa uma questão central no constitucionalismo brasileiro atual, importante pesquisa científica conduzida pelas Professoras Daniela Gabbay, Suzana Henriques da Costa e Maria Cecília Asperti demonstra que a pauta do acesso à justiça pelas populações marginalizadas perdeu gradativamente relevância na agenda legislativa contemporânea até se transformar em uma “não questão”[1].

As soluções, contudo, não estão apenas na esfera legislativa. O sistema de justiça precisa se reinventar para que consiga fazer frente a esta realidade de tribunais congestionados e de tantas pessoas sem o devido acesso à ordem jurídica justa. Ao lado da jurisdição tradicional, é urgente o fortalecimento de políticas públicas de tratamento adequado de conflitos que promovam a distribuição mais justa do acesso substancial à justiça.

Nesse contexto, destaca-se o modelo de cooperação interinstitucional pré-processual desenvolvido pelo sistema de justiça do Distrito Federal. A partir de parceria firmada entre as instituições locais, a demanda por solução de conflitos familiares captada pela Defensoria e pelo Ministério Público é encaminhada pela via pré-processual para que os envolvidos participem de sessão de mediação conduzida por mediadores que são servidores do Tribunal de Justiça.

Os acordos realizados nessas mediações são encaminhados para manifestação da Defensoria e do Ministério Público e, depois, estando presentes os requisitos legais, são homologados pelo Cejusc do Tribunal de Justiça.

A sentença homologatória do acordo pré-processual é título executivo judicial (art. 515, II e III, do CPC), e é encaminhada pelo Cejusc com força de mandado de averbação ao Cartório de Registro Civil para as averbações, e com força de ofício ao empregador da(o) alimentante para implementação do desconto em folha da pensão alimentícia. O fluxo de trabalho adotado é simples e desburocratizado.

Segundo os dados disponibilizados pelo TJDFT[2], em 2024 foram realizadas 5.451 sessões de mediação no âmbito do projeto, tendo sido alcançada a autocomposição em 4.919 delas, o que representa o percentual de 91% de acordos. Ainda segundo os dados oficiais, considerados os temas tratados em cada um desses acordos, nesse mesmo ano de 2024, o projeto evitou diretamente o ajuizamento de 8.111 novas ações nas varas de família do TJDFT. Para ter uma base de comparação, no mesmo período, as seis varas de família da circunscrição judicial de Brasília receberam juntas 5.269 novas ações.

Eficiência, economia e democratização convergentes

Os números revelam que esta é uma iniciativa pautada na simplificação de procedimentos que transforma a complexidade burocrática em acessibilidade real. O modelo desburocratizado permite que as famílias recebam orientação jurídica inicial, participem de mediação e obtenham acordo homologado sem necessidade de múltiplos comparecimentos ou formalidades excessivas.

Surpreendentemente, a experiência demonstra que democratizar o acesso não traz custos extras ao sistema de justiça. Pelo contrário, a cooperação interinstitucional otimiza recursos existentes, evitando duplicação de esforços e maximizando resultados. A parceria permite que cada instituição atue dentro de suas competências específicas, criando sinergia que beneficia tanto o sistema quanto os usuários.

Essa racionalização produz significativa economia de recursos financeiros e humanos para todas as instituições envolvidas. Evitar o ajuizamento de mais de 8.000 ações em um único ano representa economia de tempo de servidores, estrutura física e recursos tecnológicos. Para a Defensoria Pública, significa possibilidade de atender mais pessoas com a mesma estrutura. Para o Tribunal de Justiça, representa alívio no congestionamento processual.

A iniciativa confere notável celeridade na solução dos conflitos familiares, substituindo o tempo prolongado dos processos judiciais pela rapidez das sessões de mediação. Enquanto uma ação judicial pode levar anos para ser resolvida, a mediação pré-processual oferece solução em questão de semanas, atendendo ao princípio constitucional da duração razoável do processo.

A experiência comprova expressiva diminuição na distribuição de novas ações do Direito das Famílias. Se esse modelo de trabalho não existisse, o TJDFT teria recebido 23,94% mais processos familiares em 2024, agravando ainda mais o congestionamento judicial já existente.

Finalmente, o modelo apresenta admirável potencial de replicação em outros estados da federação. Não demanda alterações legislativas complexas nem investimentos substanciais em nova infraestrutura. Requer apenas vontade política para estabelecer cooperação interinstitucional e reorganizar fluxos de trabalho existentes.

Conclusão: sementes de transformação

O modelo de trabalho adotado pelo sistema de justiça distrital representa uma semente de transformação no panorama do acesso à justiça brasileiro. Ainda há muito caminho a seguir pela frente, e o modelo certamente precisa de aperfeiçoamentos contínuos, especialmente no que tange ao acompanhamento longitudinal dos resultados e à expansão da captação de procura suprimida.

Contudo, os resultados já alcançados demonstram que contribui sobremaneira para a democratização do acesso à justiça no Brasil e para a diminuição da taxa de congestionamento do Judiciário brasileiro. A experiência do Distrito Federal prova que é possível conciliar eficiência administrativa com inclusão social, economia de recursos com ampliação de direitos. A cooperação interinstitucional pré-processual emerge, assim, como catalisador fundamental de uma justiça mais democrática, acessível e efetiva para todos os brasileiros.

[1] GABBAY, Daniela Monteiro; COSTA, Susana Henriques da; ASPERTI, Maria Cecília Araújo. Acesso à justiça no Brasil: reflexões sobre escolhas políticas e a necessidade de construção de uma nova agenda de pesquisa. Revista Brasileira de Sociologia do Direito. vol. 6, n. 3, set./dez. 2019. pp. 152-181. Disponível em: https://revista.abrasd.com.br/index.php/rbsd/article/view/312 . Acesso em 26 de julho de 2025.

[2] Os dados constam de processo administrativo público (PA/SEI 0015888/2022).

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