Os ministros do Supremo Tribunal Federal (STF) formaram maioria, nesta sexta-feira (15/8), para rejeitar um recurso do Conselho Federal de Medicina (CFM) contra a decisão firmada no RE 1212272, de relatoria do ministro Gilmar Mendes, em que a Corte fixou tese de repercussão geral (Tema 1069) para possibilitar ao paciente, “no gozo pleno da sua capacidade civil, recusar-se a se submeter a tratamento de saúde por motivos religiosos”. A discussão central do Tema 1069 envolve uma Testemunha de Jeová que teve uma cirurgia de substituição de válvula aórtica cancelada após se negar a assinar termo de consentimento autorizando a transfusão de sangue.
Até o momento, são 6 votos para rejeitar os embargos de declaração opostos em dezembro de 2024 pelo CFM. Nos embargos, a autarquia federal – terceira interessada – argumenta que a decisão do STF padece de omissão sob dois aspectos distintos, pois deixou de enfrentar “o risco iminente à vida”, quando não se tem “inequívoca certeza da opção do paciente Testemunha de Jeová na transfusão sanguínea”, bem como quando da oposição da família no tratamento, quando o paciente se encontrar inconsciente.
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De acordo com o CFM, a decisão do STF não fez qualquer ressalva quanto à hipótese de objeção de consciência por parte dos médicos, à luz da posição pessoal do paciente, motivo este pelo qual a autarquia afirma que opôs os embargos, com a finalidade de que o Supremo possa complementar o acórdão e, dessa forma, conferir maior efetividade à prestação jurisdicional, “conferindo mais segurança ao profissional médico, que, na ponta, será quem dará cumprimento ao quanto decidido”.
“O risco que existe é para o médico que se vê diante de uma dessas situações, age com rigoroso apuro técnico e ético, sem em nada fugir do Código de Deontologia Médica, para posteriormente se deparar com uma demanda judicial fundada na proposição da tese ora fixada, vez que compõe repercussão geral”, sustenta o CFM.
Ao julgar o recurso do CFM, porém, o ministro e relator Gilmar Mendes destacou que os embargos não poderiam ser conhecidos, visto que na linha da jurisprudência que se firmou no STF, “terceiros não integrantes da relação processual da causa não detêm legitimidade para oposição de embargos de declaração”. Mendes também ressaltou que os embargos não servem para rediscutir o que já foi decidido.
Além disso, o ministro destacou que “não há o que se falar em omissão” quanto ao ponto suscitado pela autarquia. Isso porque, segundo Mendes, na decisão questionada pelo CFM, a questão sobre situações de iminente risco à vida do paciente foi expressamente enfrentada. Nesse sentido, o relator pontuou que “em situações nas quais a vida do paciente esteja em risco, o profissional de saúde deve atuar com zelo, adotando todas as técnicas e procedimentos disponíveis e compatíveis com a crença professada pelo paciente”.
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Em relação à oposição da família ao tratamento quando o paciente se encontrar inconsciente, Mendes também disse que a questão foi “expressamente delimitada” na decisão. De acordo com ele, o exercício do direito à recusa ao tratamento médico pressupõe a manifestação da vontade do paciente adulto que deve ser livre, consciente e informada, sendo admissível a sua declaração por escrito, em diretivas antecipadas de vontade.
“Ou seja, a inexistência de tal manifestação de vontade autoriza que o profissional de saúde adote todas as medidas indispensáveis à preservação da saúde do paciente, independentemente de eventuais pressões exercidas pelos familiares do paciente”, destacou o ministro.
Desse modo, na situação em que um paciente adulto não possuir manifestação de vontade escrita e não tiver capacidade de exprimir sua vontade, a atuação médica deve se dar em “conformidade com os ditames legais e éticos aplicáveis, adotando todas as medidas indispensáveis à preservação da vida e da saúde do paciente, independentemente de influências ou pressões externas, uma vez que somente a manifestação expressa do próprio paciente legitima a recusa do tratamento”.
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“Nesse sentido, não subsistem as omissões apontadas, na medida em que todas as questões suscitadas foram enfrentadas e são respondidas a partir da adequada leitura do acórdão embargado”, concluiu o ministro. Ele foi acompanhado pelos ministros Alexandre de Moraes, Cármen Lúcia, Cristiano Zanin, Flávio Dino e André Mendonça.
A repercussão geral do RE 1212272 foi reconhecida em 2019. Na ocasião, Mendes avaliou que o alcance da “liberdade religiosa não deve ser medido pela força numérica, nem pela importância social de determinada associação religiosa. A liberdade de credo deve ser assegurada de modo igual a todos”. Para o ministro, a recusa de procedimentos é uma “questão diretamente vinculada ao direito fundamental à liberdade de consciência e de crença, além de outros princípios e garantias constitucionais”.
Ao JOTA, Eliza Akiyama, advogada da paciente do caso, afirmou que a maioria formada pelo STF nesta sexta-feira (15/8) reforça, cada vez mais, o “entendimento alcançado em setembro de 2024, quando confirmou a autonomia do paciente, incluindo o direito de pacientes adultos optarem por tratamentos médicos que não incluam transfusão de sangue”. Segundo ela, o impacto positivo da decisão da Corte já está sendo observado.
“Hospitais se adaptaram para implementar estratégias de tratamento que evitam o uso de sangue, em conformidade com as recomendações da OMS. Muitos médicos já realizam procedimentos complexos sem transfusões, respeitando a autonomia dos pacientes e alcançando resultados clínicos e econômicos positivos”, afirmou. Akiyama também disse que as Testemunhas de Jeová continuarão “valorizando e buscando cooperação com médicos que oferecem cuidados de alta qualidade”.