Há julgamentos que testam a capacidade das instituições. Há os que desafiam os limites da lei escrita. E ainda aqueles que abalam a nossa própria fé na justiça. O caso da chamada “trama golpista” é os três.
Acompanhei a entrega das alegações finais de Jair Messias Bolsonaro na última quarta-feira (13/8). A defesa, conduzida por Celso Vilardi, Paulo da Cunha Bueno, Daniel Bettamio Tesser e outros advogados experientes, abre com uma observação astuta: “um processo tão histórico quanto inusitado. Um processo em que a imprensa, já há muitos meses, afirma que a prisão do ex-presidente ocorrerá entre setembro e outubro”.
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É legítimo perguntar: estamos diante de um julgamento substantivo ou de um ritual “proforma” – ou seja, um jogo de cartas marcadas com apenas um resultado possível, já sabido de antemão?
As teses apresentadas são diversas: nulidade da delação premiada por ausência de voluntariedade, atipicidade do crime de golpe contra o Estado democrático de Direito, entre outras.
Mas uma delas, ainda pouco explorada pela grande mídia, merece destaque: a alegação de violação ao procedimento de ampla defesa, formulada com base em parecer do professor titular da Universidade de São Paulo Gustavo Badaró[1].
Para quem não está habituado à prática forense, explico: um parecerista é contratado para responder a quesitos, que nada mais são que perguntas objetivas formuladas pela defesa. No caso, foram oito, todos voltados a saber se as garantias da ampla defesa (art. 5º, LV, da Constituição) e o direito ao tempo adequado para preparar a defesa (art. 8.2.c da Convenção Americana de Direitos Humanos) foram respeitados.
Alguns exemplos ajudam a entender o que foi submetido ao parecerista:
o exercício do direito de defesa é prejudicado pela impossibilidade de analisar o contexto no qual as mensagens selecionadas foram enviadas, bem como a integralidade do material obtido com a apreensão de telefones celulares, computadores e HDs?
O fato de a defesa começar a receber links para o download e posterior acesso dos arquivos digitais dos materiais apreendidos previamente na investigação, apenas cinco dias antes do início das audiências de instrução, viola a garantia da ampla defesa?
O fato de a defesa continuar a receber links com novos elementos de prova, depois de iniciadas as audiências de instrução e julgamento, viola a ampla defesa?
Embora pareçam questões técnicas, entender o alcance delas é fundamental para medir o risco que esse caso representa ao devido processo.
O que segue é uma síntese, inevitavelmente mais simples que o parecer original, feita para que qualquer leitor, leigo ou especialista, perceba o peso dessas violações.
Reforço que não se trata de discutir o mérito político da causa, mas de examinar a zona de intersecção entre o exercício do poder de punir e as garantias do devido processo penal.
Antes de responder aos quesitos, Badaró examina cinco aspectos centrais de direito processual penal e de sua aplicação prática.
Primeiro, explica a finalidade do processo penal. Em um Estado de Direito, não se pune a qualquer custo. O resultado só é legítimo se alcançado por meio de um processo regular, em conformidade com a Constituição e a lei.
Segundo, aborda o alcance da ampla defesa. Prevista no artigo 5º, inciso LV, da Constituição, abrange a autodefesa, exercida pelo próprio acusado, e a defesa técnica, conduzida por advogado habilitado, garantindo paridade de armas com a acusação.
Terceiro, trata do direito ao tempo e aos meios adequados para exercê-la. A defesa requer não apenas acesso integral aos autos, mas também tempo e recursos suficientes para se preparar, conforme previsto no Pacto Internacional sobre Direitos Civis e Políticos e na Convenção Americana sobre Direitos Humanos.
Quarto, analisa a amplitude do acesso às provas. Esse direito alcança todo o material já documentado na investigação, nos termos da Súmula Vinculante 14 do STF, vedada qualquer filtragem pela acusação ou pelo juiz.
Quinto, examina o conteúdo dos autos e a integralidade da prova. Os autos reúnem todos os atos processuais do caso (petições, decisões, documentos, provas, termos de audiência, certidões e demais registros) organizados cronologicamente, em meio físico ou digital, incluindo integralmente os elementos de investigação.
Um parêntese: esses parâmetros não são novidade. São padrões consolidados na doutrina e na jurisprudência, mas que, neste caso, parecem ter sido relegados a segundo plano.
Aplicando-os ao caso concreto, Badaró identifica duas violações centrais: o acesso incompleto às provas e o tempo insuficiente para a preparação da defesa.
Quanto ao acesso, a defesa recebeu apenas uma fração do material coletado. De mais de 30 celulares e centenas de dispositivos apreendidos, apenas sete mídias foram copiadas e entregues.
Muitos arquivos utilizados pela acusação ou obtidos após as diligências não estavam disponíveis nos autos. Para Badaró, não basta fornecer relatórios resumidos: é direito da defesa receber os arquivos originais, em formato forense e com código de verificação, para comprovar autenticidade, integridade e possibilitar contraperícias. E isso deve ocorrer sem seleção prévia pela acusação ou pela polícia.
Quanto ao tempo, os arquivos começaram a ser disponibilizados apenas cinco dias antes das audiências com as testemunhas de acusação, e alguns exigiam senhas liberadas somente após essas oitivas. Novas provas chegaram quando a instrução já estava em andamento. Em 30 de maio de 2025, a própria polícia reconheceu que o material permanecia incompleto. Os interrogatórios dos réus foram marcados para poucos dias após o fim da instrução, restando, na prática, apenas um dia útil para exame integral do conteúdo.
Conclusão do parecerista: a defesa não dispôs do tempo nem dos meios necessários para se preparar adequadamente, o que comprometeu sua atuação e violou a ampla defesa garantida pela Constituição e por tratados internacionais.
Em termos simples, é como colocar um time para disputar a final de um campeonato sem conhecer todas as regras, sem acesso aos vídeos das partidas anteriores e recebendo parte dessas informações apenas no intervalo. Por mais preparado que esteja, competir em condições de igualdade se torna impossível.
É justamente por isso que reconhecer os problemas apontados pelo professor não exige esforço hermenêutico sofisticado, com todo respeito ao Supremo Tribunal Federal.
A própria velocidade com que um processo dessa complexidade, com inúmeros documentos, réus e testemunhas, tramita evidencia a dificuldade de viabilizar uma defesa técnica efetiva.
No dia 13 de agosto, a denúncia foi recebida e processada, com apresentação de resposta à acusação.
Nesta quinta-feira (14/8), já se avança para a última etapa da instrução. Tudo à jato. Em um país de morosidade processual, isso é um acontecimento. E, em uma democracia, a pressa processual raramente é saudável.
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No mais, a questão processual levantada é central porque, se acolhida, pode impedir que o STF prossiga com um processo viciado sem que seja necessário anulá-lo por inteiro.
A nulidade poderia ser restrita ao início da instrução, diferentemente do que ocorreria com a anulação da delação de Mauro Cid, permitindo refazer o processo a partir desse ponto com respeito às garantias e evitando um julgamento “proforma”.
Em tempos de desgaste institucional, a resposta pode estar no óbvio: o processo existe para proteger, não para punir.
Quem enfrenta o peso do Estado merece regras estáveis. Quando os meios se corrompem, o fim perde legitimidade. E já vimos isso antes. Por incrível que pareça.
[1] Todas as referências de conteúdo e trechos mencionados neste texto têm como fonte o parecer do professor Gustavo Henrique Badaró, juntado aos autos da ação penal. Optei por evitar o uso extensivo de notas de rodapé para manter a fluidez da leitura. Disponível em: Parecer do Professor Gustavo Henrique Badaró, juntado aos autos da Ação Penal 2.668/DF, em trâmite perante o Supremo Tribunal Federal. Acesso em 13 de agosto de 2025.