A Receita Federal exerce papel estratégico não apenas por sua função arrecadatória, mas também como agente estruturador da relação entre o Estado e os contribuintes. Em um cenário de elevada complexidade normativa e crescente demanda por justiça fiscal, torna-se essencial consolidar uma relação pautada na transparência, previsibilidade e cooperação. Sem isso, sofrem a arrecadação e o ambiente de negócios.
O Relatório de Resultados e Planejamento da Receita Federal 2024-2025, publicado em 7 de julho de 2025, apresenta um conjunto de medidas classificadas como estruturantes, de facilitação e de assistência, voltadas a projetar, no plano institucional, uma imagem de maior proximidade e cooperação com os contribuintes. As iniciativas buscam induzir a conformidade voluntária, simplificar obrigações e incentivar a autorregularização, delineando uma administração mais moderna, eficiente e aberta ao diálogo.
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Todos esses elementos refletem um paradigma cooperativo entre Fisco e contribuintes, representando um avanço institucional relevante. Causa apreensão, contudo, a tensão entre esse discurso de conformidade colaborativa e uma prática ainda fortemente pautada no reforço de medidas de controle coercitivo. Isso se observa, aliás, no próprio relatório publicado em julho último, que materializa esse paradoxo: ao mesmo tempo que promove o discurso de medidas de incentivo à conformidade, destaca a intensificação de fiscalizações massivas, o uso ampliado de malhas digitais e a constituição de créditos de ofício em larga escala.
Mantém-se, assim, um aparato de controle que revela a persistente desconfiança em relação ao contribuinte, em contradição com o discurso oficial de cooperação. Como podemos observar em nossa prática, tal aparato é utilizado para constituir créditos tributários excessivos, com a aplicação de multas isoladas e regulamentares muitas vezes com o objetivo exclusivo de majorar os lançamentos.[1] Além disso, é comum a qualificação das multas de ofício em casos que envolvem meras divergências interpretativas, sem qualquer indício de conduta dolosa.[2]
Além desses casos, exemplificados pela jurisprudência do Carf, o próprio relatório da Receita Federal apresenta diversos exemplos que evidenciam as contradições entre o discurso de cooperação e a prática efetivamente adotada pela administração tributária. Segundo a publicação, mais de 388 mil contribuintes foram automaticamente autuados por não aderirem à autorregularização em 2024, resultando na constituição de R$ 21,1 bilhões em créditos tributários.
A prática revela uma estratégia de indução quase compulsória, em que o diálogo cede lugar à imposição de parâmetros unilaterais, sob pena de autuação automática. A fragilidade da promessa de confiança e transparência se agrava diante da opacidade dos critérios de risco e da recorrente presunção de má-fé, que transforma o contribuinte em suspeito — por definição —, submetido a penalidades desproporcionais e a um ambiente de intimidação. Essa lógica consolida um ambiente de incertezas, aumento da litigiosidade e corrosão da confiança que deveria sustentar a relação entre Estado e contribuinte.
Em síntese, embora a Receita Federal tenha avançado em iniciativas relevantes — como o programa Confia, os mecanismos de autorregularização e as declarações pré-preenchidas —, persiste uma dissonância entre o discurso de cooperação e a prática fiscal efetiva, ainda marcada por fiscalizações intensivas, presunções de má-fé e autuações desproporcionais.
Para superar esse descompasso, é essencial fortalecer o diálogo institucional, assegurar maior transparência na interpretação e aplicação da norma tributária, reafirmando o respeito às escolhas do legislador e o compromisso inafastável com a segurança jurídica.
Também se impõe o estabelecimento de critérios objetivos que distingam fraude de planejamento lícito, evitando que estratégias legítimas sejam tratadas como ilícitas com base em meras presunções. Nesse contexto, é fundamental o investimento contínuo na formação e na atualização técnica dos auditores fiscais, com vistas a fomentar uma cultura institucional orientada à consistência das autuações e à redução dos elevados índices de reversão no contencioso administrativo e judicial.
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Por outro lado, é igualmente necessário aprimorar o atual regime de consultas fiscais, que deve deixar de ser um instrumento meramente formal para se tornar um verdadeiro canal de diálogo preventivo.
Consolidar um fisco moderno, transparente e equilibrado não é apenas um imperativo institucional, mas uma condição indispensável para promover previsibilidade nas relações tributárias, reduzir conflitos e sustentar um ambiente de negócios mais saudável, estável e propício ao desenvolvimento econômico e social do país. Parte do discurso da Receita Federal já se orienta nesse sentido; é fundamental, porém, que essa diretriz se afirme de forma plena e, sobretudo, se converta em prática efetiva.
[1] E.g.: “Pelo princípio da absorção ou consunção, contudo, não deve ser aplicada penalidade pela violação do dever de antecipar, na mesma medida em que houver aplicação de sanção sobre o dever de recolher em definitivo. Esta penalidade absorve aquela até o montante em que suas bases se identificarem.” (CARF, Ac. 1302-007.419; J: 26/6/2025)
[2] E.g.: “Não subsiste a qualificação da multa quando a autoridade autuante não indica o artigo da Lei 4.502/1964 em que se encaixa a conduta do sujeito passivo. A simples constatação de prática reiterada em diversos anos calendário e o volume da movimentação não escriturada não são suficientes para a aplicação de multa qualificada, por caracterizar meros indícios e não prova do dolo.” (CARF, Ac. 9101-005.152; J: 6/10/2020)