Com os recentes avanços regulatórios no Brasil, os aterros sanitários deveriam ter deixado de ser vistos apenas como meros locais de disposição de lixo, para se transformarem em plataformas multifuncionais de valorização de resíduos sólidos, desenvolvimento sustentável e geração de energia. Mas ainda estamos distantes desse objetivo.
A Lei 14.026/2020 (novo Marco Legal do Saneamento) exige a disposição final ambientalmente adequada dos resíduos sólidos – por meio da erradicação de lixões a céu aberto e o aumento de aterros pelo país – e promove soluções que aumentam a eficiência e a sustentabilidade do setor.
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Por sua vez, as diretrizes do Plano Nacional de Resíduos Sólidos (Planares), publicado em 2022, reforçam a necessidade de recuperação e aproveitamento energético dos resíduos sólidos, inclusive do biogás de aterros sanitários.
Em paralelo, o setor de energia teve marcos normativos importantes para o respaldo e desenvolvimento de fontes renováveis, na tentativa de reduzir as emissões de gases de efeito estufa e contribuir para a transição energética.
Mais especificamente, ao regulamentar dispositivos introduzidos na Lei 9.427/1996, a regulação da Aneel, desde 2007, prevê isenção nas tarifas de uso do sistema de transmissão e distribuição das usinas “que utilizem como insumo energético, no mínimo, 50% (cinquenta por cento) de biomassa composta de resíduos sólidos urbanos e/ou de biogás de aterro sanitário”.
As iniciativas normativas parecem especialmente interessadas em expandir o uso dos biocombustíveis no país, sobretudo o biogás e o biometano, que devem passar a ter papel cada vez mais presente na matriz energética nacional. O biogás é um gás renovável produzido a partir da decomposição de matéria orgânica em ambientes sem oxigênio, condições presentes em aterros devidamente instalados.
O biometano, por sua vez, nada mais é do que o biogás purificado, após um processo físico-químico que visa aumentar a concentração de metano. A utilização de tais fontes para geração de energia, naturalmente, contribui para a redução dos gases de efeito estufa de forma direta, mas o processo envolvido em sua produção ainda permite o reaproveitamento de resíduos sólidos.
O incentivo ao uso do biogás, biometano e outros biocombustíveis, por parte das leis dos setores de saneamento básico e de energia, reposiciona os aterros sanitários como centros de inovação ambiental e energética, constituindo ativos estratégicos. Eles não representam mais o fim da linha para os resíduos, e sim o início de uma cadeia de valor que contribui diretamente para a transição energética e para o desenvolvimento sustentável do país.
Nesse cenário, viabilizam-se novos modelos de negócios a partir da valorização econômica do lixo e seu reaproveitamento energético. Têm se multiplicado, por exemplo, iniciativas em aterros sanitários no país como: sistemas de captação do biogás; plantas de purificação de biogás, para transformá-lo em biometano; usinas termelétricas a biogás/biometano ou a lixo (Waste to Energy ou Usinas de Recuperação Energética); e Unidades de Triagem Mecanizadas (UTMs) automatizadas, custeadas por recebíveis de contratos de comercialização de materiais recicláveis.
A expectativa é de crescimento e diversificação desses novos negócios. Os dados atuais indicam que há muito a ser explorado. Segundo o Panorama dos Resíduos Sólidos no Brasil 2024, da Associação Brasileira de Resíduos e Meio Ambiente (Abrema), menos de 1% dos resíduos sólidos urbanos no país são aproveitados de forma energética.
A nova legislação aponta caminhos, mas a sua implementação ainda depende de algumas variáveis. A primeira é cultural: a sociedade brasileira, historicamente, não dá a devida importância a destinação correta dos resíduos sólidos, e menos ainda à sua integração a uma cadeia de valor.
A segunda variável é a incerteza regulatória. Apesar da evolução do quadro legal nas últimas duas décadas, ainda falta uma regulamentação detalhada, que dê segurança ao mercado para viabilizar os elevados custos de implementação de infraestruturas relacionadas ao aproveitamento energético dos resíduos sólidos.
O país carece de um quadro normativo que fixe um arranjo institucional para esse setor, que verse sobre os direitos e obrigações relacionados à exploração das atividades econômicas envolvidas, e que promova políticas voltadas ao seu financiamento.
Por fim, os desafios de gestão pública, usualmente presentes, se acentuam a nível de Município, ente federativo titular dos serviços públicos de manejo dos resíduos sólidos. O custo político para a implementação de ativos vinculados ao lixo urbano, ainda mais quando associados à estruturação de concessões de resíduos sólidos, é um fator que poucos prefeitos se propuseram a enfrentar até o momento.
Se obstáculos como esses já tivessem sido ultrapassados, talvez já disporíamos de infraestruturas mais modernas e sustentáveis para o tratamento do lixo, como indica o emblemático caso da empresa Marquise Ambiental em Manaus. A companhia investiu cerca de R$ 200 milhões na construção de um aterro que dispõe de usina de biometano, na capital do Amazonas.
No entanto, o projeto enfrenta entraves devido à falta de acordo com a prefeitura local para o fornecimento de resíduos, bem como resistência popular, colocando em risco o investimento e a operação da usina, que poderia atender até 75% dos resíduos do estado de maneira mais eficiente.
Ultrapassando tais desafios, será possível transformar os aterros sanitários em polos de inovação e sustentabilidade, capazes de maximizar o valor dos resíduos sólidos e impulsionar a transição energética no Brasil. A geração de empregos e renda e a preservação do meio ambiente tornam urgente o desenvolvimento dessa incipiente indústria.