A sabatina dos novos membros da Diretoria Colegiada (DICOL) da Agência Nacional de Vigilância Sanitária (Anvisa) no Senado[1] representa mais do que um rito protocolar. Trata-se de um momento estratégico, um ponto de inflexão que definirá a capacidade da agência de responder aos desafios crescentes da saúde pública com a legitimidade e a robustez que a sociedade brasileira demanda.
Diante do lançamento de novas terapias e das incertezas orçamentárias, esta carta aberta se dirige aos futuros diretores e aos senadores da República com uma mensagem central: o fortalecimento da participação social qualificada não é um acessório, mas uma diretriz indispensável e estratégica para a estabilidade e a excelência regulatória.
Com notícias da Anvisa e da ANS, o JOTA PRO Saúde entrega previsibilidade e transparência para empresas do setor
Nesse contexto, o universo das doenças raras é especialmente representativo. Definidas como condições que afetam até 65 pessoas a cada 100 mil habitantes, essas enfermidades — em sua maioria de origem genética — são frequentemente crônicas e incapacitantes. No Brasil, a Política Nacional de Atenção Integral às Pessoas com Doenças Raras busca estruturar uma linha de cuidado contínua no âmbito do Sistema Único de Saúde (SUS).
Ainda assim, no campo da regulação sanitária, especialmente junto à Anvisa, as demandas dessa comunidade carecem de maior atenção quanto ao diálogo e à transparência nos processos decisórios. Essas lacunas refletem desafios semelhantes enfrentados por milhões de brasileiros com outras condições complexas, como câncer, epilepsia e o albinismo.
Diante desse cenário, a participação social qualificada reafirma-se como um instrumento essencial para promover decisões regulatórias mais qualificadas, transparentes e socialmente legitimadas.
As organizações de pacientes emergem, nesse cenário, como atores sociais fundamentais. São entidades da sociedade civil, sem fins lucrativos, focadas no paciente e cujos órgãos de direção são majoritariamente compostos pelos próprios pacientes ou seus cuidadores. Elas atuam como atores coletivos em movimentos sociais pela saúde, exercendo um papel fundamental na representação e defesa dos interesses de pessoas com necessidades de saúde.
Suas atividades englobam desde o fornecimento de suporte emocional e informação – funcionando como redes de ajuda mútua – até a atuação no desenvolvimento de políticas públicas, nos processos regulatórios e na alocação de recursos no sistema de saúde, lutando pela implementação e garantia de direitos, como o acesso a tratamentos e a participação efetiva na tomada de decisões.
Participação social qualificada
A consolidação de uma Anvisa mais ágil e socialmente referenciada exige o fortalecimento de eixos estratégicos que priorizem o diálogo, a transparência e a escuta qualificada da sociedade em todas as etapas do processo regulatório. Ao longo dos anos, a Agência tem se destacado na implementação de mecanismos de participação social, o que abre caminho para que a nova diretoria avance ainda mais, desenvolvendo instrumentos inovadores frente aos desafios do SUS.
É fundamental reconhecer que as decisões da Anvisa não ocorrem em um vácuo técnico. Elas são atravessadas por disputas de prioridades, contextos políticos e múltiplas pressões. Nesse cenário, o diálogo qualificado com a sociedade civil organizada torna-se um contrapeso democrático essencial, promovendo maior equilíbrio entre viabilidade técnica, justiça social e interesses de mercado.
A confiança institucional se constrói com previsibilidade e clareza nas decisões. Para isso, é imprescindível que a Anvisa amplie a transparência sobre os critérios utilizados, os prazos praticados e os fundamentos que orientam suas deliberações. Igualmente urgente é a qualificação da comunicação sobre o andamento dos processos regulatórios, bem como a publicação de devolutivas mais consistentes às contribuições recebidas em consultas públicas — etapa indispensável para o fortalecimento da accountability.
Nesse contexto, é preciso valorizar o conhecimento oriundo da experiência de vida dos pacientes e da atuação técnica das organizações que os representam. Essas vozes oferecem uma perspectiva legítima e complementar às análises técnico-científicas, mas frequentemente negligenciada nos processos decisórios.
A Anvisa já dispõe de um Cardápio de Participação Social, com instrumentos como consultas públicas, audiências públicas e diálogos setoriais. O desafio agora é elevar a qualidade dessa escuta, adotando formatos mais deliberativos, nos quais a sociedade civil não apenas opine, mas participe ativamente da formulação e aprimoramento das soluções regulatórias.
Experiências internacionais reforçam essa direção
A Agência Europeia de Medicamentos (EMA) integra pacientes e consumidores em seu conselho de administração, comitês científicos e revisão de materiais. Em 2017, promoveu 925 ações com essa participação, sendo 400 com representantes de organizações da sociedade civil.
Já nos Estados Unidos, a FDA inclui pacientes nos Comitês Consultivos desde 1991. Para atuar nesses espaços, é necessário compreender dados científicos, metodologias de pesquisa e declarar possíveis conflitos de interesse. Os representantes funcionam como elo entre o comitê e as organizações de pacientes, levando a perspectiva do usuário às decisões.
Além disso, FDA e EMA criaram o Patient Engagement Cluster, grupo que compartilha boas práticas para engajar pacientes nos processos regulatórios. Entre os temas debatidos estão comunicação eficaz, capacitação de representantes e avaliação do impacto dessa participação.
Fortalecimento institucional
A nova Diretoria Colegiada da Anvisa tem diante de si uma oportunidade singular de aprofundar a cultura participativa como um valor institucional, transformando-a em um instrumento estratégico para a excelência regulatória. Para tanto, apresentamos propostas alinhadas à legislação vigente e às boas práticas de governança:
Planejamento e deliberação técnica com participação qualificada
A construção da Agenda Regulatória e o enfrentamento de temas complexos demandam inovações nos mecanismos de participação social. Em áreas de alta complexidade — como terapias avançadas —, o modelo tradicional de participação pontual, por meio de consultas públicas, mostra-se insuficiente para captar contribuições qualificadas e sustentadas ao longo do processo regulatório.
Nesse contexto, a Anvisa pode avançar ao adotar uma postura mais proativa: além de utilizar os instrumentos já previstos em seu Cardápio de Participação Social, é necessário desenvolver novas estratégias e formatos que ampliem e diversifiquem a escuta social. A promoção de espaços colaborativos e deliberativos desde a definição das prioridades regulatórias contribui para soluções mais robustas, equilibradas e sustentáveis.
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A própria Lei 13.848/2019 reconhece a Agenda Regulatória como um instrumento essencial de planejamento e transparência. Ao incluir diretamente organizações de pacientes em sua formulação — por meio de fóruns temáticos institucionalizados e com participação orientada —, a agência qualifica suas decisões com base em vivências concretas da jornada do paciente, revelando barreiras de acesso e lacunas ainda não atendidas.
Transparência e accountability como princípios estruturantes
Um dos principais entraves à participação social efetiva é a percepção de que as contribuições da sociedade não resultam em mudanças concretas. Para enfrentar essa fragilidade, é essencial que a Anvisa assuma um compromisso institucional com a devolutiva qualificada, adotando instrumentos de diálogo mais acessíveis, didáticos e próximos da realidade dos diferentes públicos envolvidos.
A realização de fóruns temáticos presenciais e a publicação de relatórios conclusivos ao final de cada consulta pública — com a sistematização clara das contribuições recebidas, as justificativas técnicas para seu acolhimento ou rejeição, e a explicitação dos encaminhamentos adotados — fortalecem a confiança dos atores sociais, qualificam o debate regulatório e reafirmam os princípios de controle social previstos na legislação das agências reguladoras.
Evoluir para uma governança colaborativa
Em consonância com as resoluções da Assembleia Mundial da Saúde — que recomendam a inclusão das doenças raras no planejamento nacional e o envolvimento ativo das organizações de pacientes na formulação de políticas — impõe-se à nova gestão uma reflexão estratégica essencial:
Como a Anvisa pode evoluir de um modelo predominantemente consultivo para uma governança verdadeiramente colaborativa, capaz de ampliar a escuta social e fortalecer sua missão pública frente às crescentes demandas por equidade, inovação e legitimidade?
A resposta a essa pergunta definirá não apenas o legado da próxima Diretoria, mas o futuro da Anvisa como uma agência reguladora de excelência: comprometida com os princípios do SUS e com a promoção da saúde de toda a população brasileira.
Esta carta é subscrita pelas seguintes organizações da sociedade civil:
Casa Hunter
Associação Lelê
ANPLUPUS (Associação Nacional de Pacientes com Lúpus)
Associação de Apoio aos Cuidadores e Pessoas com Doenças Raras
AAME (Associação de Atrofia Medular Espinhal)
ABPAT (Associação Brasileira de Pacientes de Ataxias)
Associação Mães Metabólicas
ABRAMI (Associação Brasileira de Miastenias)
FOP Brasil (Federação de Fibrodisplasia Ossificante Progressiva)
ASPADOR (Associação Paraibana de Doenças Raras)
IDNA (Instituto DNA Saúde)
ABRE-TE (Associação Brasileira da Síndrome de Rett)
ABE (Associação Brasileira de Epilepsia)
APPEB-DF (Associação de Pacientes de Epidermólise Bolhosa)
AJUDE-C (Associação de Pacientes de Hemofilia)
ACDR/ACAMU (Associação Catarinense de Doenças Raras)
ABRAPHEM (Associação Brasileira de Pacientes Hemofílicos)
AMMI (Associação Mineira de Miastenia)
Instituto Ação Responsável
Retina Brasil
Retina Brasília
Instituto Atlas Biossocial
Instituto ANAJU
Mitocon Brasil – Doenças Mitocondriais
FEBRARARAS (Federação Brasileira das Associações de Doenças Raras)
Instituto DEAF1
Instituto Vilma Kano
Abrasta (Associação Brasileira de Talassemia)
Abrale (Associação Brasileira de Linfoma e Leucemia)
FEMAMA (Federação Brasileira de Instituições Filantrópicas de Apoio à Saúde da Mama)
Associação Brasileira SUPERANDO o Lúpus, Doenças Reumáticas e Doenças Raras
Articulação Brasileira de Gays Bissexuais e Transmasculinidades (ARTGAY)
DII Brasil (Doença de Crohn e Retocolite Ulcerativa)
Associação GAS (Grupo de Apoio aos Soropositivos)
CNPA – Coletivo Nacional Das Pessoas Com Albinismo
APALBA – Associação Das Pessoas Com Albinismo Na Bahia
Associação Viver Melhor – lutando pelos direitos das pessoas com deficiência
ABLUE (Associação Blumenauense de Epilepsia)
AAME (Amigos Anti-Mortalidade em Epilepsia)
Lennox Gastaut Brasil
Associação Viva Melhor – Mulheres Mastectomizadas
*
Agradeço a Antonio Carlos F. Teixeira e Maria Alice Susemihl, pela valiosa revisão.
[1] “O calendário prevê, entre os dias quatro e oito de agosto, a leitura dos relatórios nas comissões responsáveis em analisar cada uma das indicações. Entre os dias 11 e 15 de agosto, será feito um esforço concentrado para a realização das sabatinas dos indicados e a votação dos nomes nas comissões e no Plenário”. Fonte: Agência Senado.
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