Políticas climáticas e vulnerabilidade urbana: o lugar da população em situação de rua

Em 2025, a cidade de São Paulo tem enfrentado sucessivas frentes frias, que provocaram acentuadas quedas de temperatura. Em algumas regiões, os termômetros marcaram menos de 10°C, e a maior intensidade de eventos extremos é um dos principais desafios para as gestões municipais na proteção de grupos vulneráveis.

Entre os mais afetados está a população em situação de rua, cuja exposição contínua a chuvas, ondas de calor, e sobretudo ao frio intenso, agrava sua condição de vida.

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A questão climática da cidade não pode ser isolada do seu contexto social. Em 2025, estima-se que mais de 90 mil pessoas estejam vivendo em situação de rua na capital paulista, segundo o Observatório Brasileiro de Políticas Públicas com a População em Situação de Rua, da UFMG[1].

Os dados revelam a magnitude e gravidade do fenômeno, mas também a necessidade de aprimorar as capacidades de resposta da administração pública, para que atue de maneira coordenada e preventiva diante das emergências climáticas que afetam a população em situação de rua, articulando medidas imediatas com estratégias de longo prazo.

Nas décadas recentes, a cidade de São Paulo tem desenvolvido políticas públicas voltadas ao enfrentamento das mudanças climáticas e de seus impactos sociais. A Política de Mudança do Clima, criada em 2009, e o PlanClima SP, instituído em 2021, são iniciativas centrais da cidade de São Paulo nesse sentido.

A análise da Política e do Plano evidenciam avanços no reconhecimento das desigualdades sociais como elemento estrutural da vulnerabilidade climática no município. No entanto, ambos apresentam lacunas significativas ao tratar da população em situação de rua.

A Política de Mudança do Clima, apesar de suas diretrizes gerais de proteção e adaptação à emergência climática, falha em identificar essa população como destinatária explícita de suas medidas, invisibilidade que pode dificultar o acesso do grupo às ações propostas.

Embora o PlanClima SP mencione expressamente as pessoas em situação de rua como parte dos grupos vulneráveis, e destaque a necessidade de incluir os impactos dos eventos climáticos extremos nas iniciativas voltadas a elas, a referência não acompanha um conjunto articulado de ações e programas visando o atendimento de suas necessidades específicas.

Quando existentes, os programas municipais voltados para o atendimento da população em situação de rua no contexto da emergência climática ainda funcionam em caráter contingencial e não permanente. Essa classificação desconsidera o aumento da frequência e intensidade dos eventos climáticos extremos, bem como a persistência da situação de rua como problema estrutural, tornando as ações públicas mais recorrentes e previsíveis.

Um exemplo é a Operação Baixas Temperaturas (OBT), resposta emergencial e intersecretarial implementada com o objetivo de evitar danos à saúde e óbitos de pessoas em situação de rua por hipotermia, com a ampliação de vagas nos centros de acolhida, a distribuição de cobertores, refeições quentes, e a ampliação das abordagens sociais durante os meses mais frios.

Apesar da sua importância, estudo recente[2] identifica a presença de fragilidades significativas na execução do programa, que reproduz problemas estruturais da rede de serviços socioassistenciais da capital paulista. Aqui podemos citar a qualidade insatisfatória da infraestrutura de serviços de acolhimento, a insuficiência de vagas ofertadas, a desarticulação entre os órgãos públicos envolvidos e a ausência de dados consolidados sobre a saúde da população de rua.

Esse último aspecto não é apenas um desafio local, mas nacional. No Brasil, o atestado de óbito não possui um campo ou código que permita assinalar que a pessoa falecida estava em situação de rua. A inexistência dessa possibilidade de preenchimento dificulta, ou mesmo inviabiliza a produção de dados sobre o tema.

As barreiras para realizar um monitoramento sistemático das condições de saúde das pessoas em situação de rua também estiveram presentes durante a pandemia da Covid-19, quando a falta de dados oficiais impediu o acompanhamento de contaminações e mortes entre pessoas desse grupo[3].

Esse cenário aponta a necessidade de o poder público municipal atualizar as políticas e programas voltados à proteção das pessoas em situação de rua no contexto das emergências climáticas. A governança e o controle social podem atuar como instrumentos fundamentais para garantir a efetividade das ações, promovendo maior transparência, participação cidadã e responsabilização dos gestores.

Nesse sentido, é imprescindível fortalecer a articulação intersecretarial, a fim de assegurar respostas contínuas às emergências climáticas que afetam a população em situação de rua, para além de ações pontuais, promovendo a proteção social como um direito permanente, mesmo em contextos de crise.

Em relação ao controle social, a adoção de práticas de avaliação participativa pode ser um caminho inovador e democrático para aprimorar o redesenho e a execução do programa [2], por incorporar a perspectiva de quem vive diretamente os efeitos da exclusão social e da emergência climática.

Ao mesmo tempo, o controle externo pode contribuir para ampliar a transparência do programa, reforçando a necessidade de indicadores claros, como a produção de dados sobre a saúde e o óbito de pessoas em situação de rua, com sistemas de registro acessíveis e prestação de contas, tendo como foco não apenas a quantidade de ações realizadas, mas principalmente a qualidade dos serviços prestados e seus impactos reais na vida dessa população.

Ao reconhecer a interseção entre clima e desigualdade, abre-se espaço para o debate sobre o enfrentamento das emergências climáticas no contexto da população em situação de rua e a necessidade de ações coordenadas, capazes de integrar políticas públicas para garantir não apenas proteção emergencial, mas dignidade, resiliência e justiça climática a quem mais precisa.

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As opiniões expressas neste artigo são de responsabilidade exclusiva dos autores e não refletem, necessariamente, a posição institucional das instituições às quais estão vinculados.

[1] G1 São Paulo. Número de pessoas em situação de rua na cidade de SP cresce e chega a 96 mil. G1, 23 abr. 2025. Disponível em: <g1.globo.com/sp/sao-paulo/noticia/2025/04/23/numero-de-pessoas-em-situacao-de-rua-na-cidade-de-sp-cresce-e-chega-a-96-mil.ghtml>. Acesso em: 19 jul. 2025.

[2] COSTA, Larissa Cunha Corrêa da. A Operação Baixas Temperaturas pelo olhar da população em situação de rua: um piloto de avaliação participativa do programa. São  Paulo: Fundação Getulio Vargas – EAESP, 2023.

[3] LABCIDADE‑FAU‑USP. A invisibilidade da população de rua e de suas mortes por COVID‑19 parece ter sido uma escolha. LabCidade – Laboratório Espaço Público e Direito à Cidade. Faculdade de Arquitetura e Urbanismo, USP, São Paulo, 3 anos atrás. Disponível em: LabCidade‑FAU‑USP. Acesso em: 19 jul. 2025.

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