O desafio da interoperabilidade no SUS

O Modernismo, movimento cultural iniciado no Brasil em 1922 , surgiu como uma proposta de ruptura com os padrões acadêmicos vigentes na expressão artística, em um contexto de efervescência política e social, marcado por reivindicações que apontavam para mudanças e a futura ampliação de direitos civis.

Na época, a linguagem literária dominante, por exemplo, seguia o preciosismo estético do Parnasianismo europeu, que privilegiava a escolha minuciosa de palavras rimadas, que enriqueciam o texto em métricas e em estrutura gramatical. Essa rigidez foi rejeitada por artistas brasileiros, que passaram a adotar uma linguagem mais diversa e popular.

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A iniciativa projetou o Brasil no cenário mundial das vanguardas artísticas, como um dos expoentes da ruptura com a formalidade e o elitismo cultural. Passou a representar autenticamente a heterogeneidade do povo brasileiro, em toda sua riqueza cultural, social e demográfica, em busca da garantia de direitos.

Mas o que o Modernismo tem a ver com a interoperabilidade?

Quando se trata de sistemas de saúde, o que tem ganhado destaque internacional não é a diversidade de linguagens técnicas e semânticas na troca de informações, mas justamente o oposto: a necessidade de rigor, padronização e estabilidade. É o que propõem os protocolos SMART da Organização Mundial da Saúde (OMS), um conjunto de diretrizes voltadas à digitalização de linhas de cuidado e políticas públicas em saúde, com foco na interoperabilidade segura e eficaz.

Prevendo a aceleração de processos de inovação em saúde, impulsionados pelo senso de urgência no cenário pós-pandêmico, a OMS propôs uma trilha segura para a transformação digital em saúde com foco na melhoria do cuidado, na eficiência e na  equidade nos ecossistemas de saúde. Para isso é indispensável a interoperabilidade, ou seja, que todos os sistemas de informação e comunicação falem a mesma “língua operacional”.

Essa capacidade de troca, compreensão e uso coordenado dos sistemas de informação e comunicação em saúde, públicos e privados, locais e nacionais, é um dos pilares invisíveis de um sistema de saúde integrado e resolutivo. Sem interoperabilidade, dados continuam fragmentados, decisões clínicas ficam comprometidas e políticas públicas perdem potência.

Ter interoperabilidade entre os sistemas de informação em saúde significa, na prática, que os dados clínicos gerados em uma UBS no interior da Amazônia podem ser acessados com segurança por um hospital em São Paulo, quando necessário, caso o paciente precise ser atendido em outra localidade. E mais: que essas informações circulem mantendo sua integridade, privacidade, utilidade e contexto clínico.  Trata-se, no entanto, de um desafio significativo para o ecossistema de saúde devido ao alto nível de precisão sintática, técnica e semântica exigido pelos padrões de interoperabilidade.

Nesse sentido, é válido refletir: Como o Brasil está trilhando esse caminho de precisão exigido pela interoperabilidade?

O Brasil tem padrões, mas falta padronização

Do ponto de vista técnico, o Brasil tem dado passos cruciais. A Rede Nacional de Dados em Saúde (RNDS), criada durante a pandemia, visa a interoperabilidade dos  registros clínicos. O país incorporou o padrão internacional HL7-FHIR à RNDS, permitindo a troca estruturada de dados entre sistemas diferentes. Há ainda a Estratégia de Saúde Digital para o Brasil (ESD28) e a criação da Secretaria de Informação e Saúde Digital (SEIDIGI), responsável por centralizar o planejamento e a coordenação da saúde digital no país, promovendo alinhamento com a política nacional.

Apesar dos avanços na digitalização, o cenário é de baixa adesão aos padrões técnicos, sistemas legados ainda em transformação e regras e incentivos institucionais pouco adequados para incentivar o  compartilhamento de dados. Ademais, em muitos municípios, unidades básicas sequer dispõem de energia estável, conectividade adequada ou computadores atualizados. Sem essa infraestrutura mínima, não há prontuário eletrônico funcional, quanto mais transmissão e recebimento de dados.

Dados existem, mas não circulam

Talvez o maior paradoxo do SUS seja este: Se produz milhões de registros por dia, mas poucos deles são compartilhados ou integrados. Ferramentas para orientar a tomada de decisão clínica e epidemiológica ainda estão em estágio incipiente, concentradas sobretudo nas unidades de vigilância em saúde. A fragmentação persiste, os dados estão restritos aos  sistemas que o geraram, isto é, não acompanham o paciente nos diferentes serviços, nem os profissionais que os  atendem.

A Lei Geral de Proteção de Dados (LGPD), essencial para a assegurar o direito à privacidade, ainda é pouco difundida entre profissionais e gestores. Muitos, por excesso de zelo ou permissividade, evitam compartilhar dados mesmo quando isso é legal e desejável. Faltam ferramentas adequadas e conhecimento sobre práticas seguras de compartilhamento.

O prontuário eletrônico do cidadão (PEC e-SUS APS), ofertado gratuitamente pelo governo federal para uso na Atenção Primária, é um avanço importante. Recentemente, ganhou funcionalidades para teleconsulta, compartilhamento de dados de vacinação, exames, avaliação de atendimentos, e navegação entre serviços, com o aplicativo Meu SUS Digital.

Contudo, o processo de trabalho nas UBS segue rígido, dificultando a integração dessas ferramentas ao cotidiano dos profissionais. Existe um vácuo de comunicação e uma confusão generalizada sobre os limites do compartilhamento da informação no  contexto assistencial. O arcabouço  ainda está em construção e isso desacelera a integração.

Interoperabilidade é política, não tecnologia

A interoperabilidade não é apenas uma questão técnica, mas política e organizacional. Requer decisões difíceis: como exigir que sistemas sigam padrões computacionais, penalizar a não adesão, investir em infraestrutura onde ela é mais precária em um contexto de recursos escassos. Significa priorizar equidade e resultados a longo prazo, garantindo, por exemplo, que municípios de pequeno porte populacional, menos conectados e mais vulneráveis, recebam suporte técnico e financeiro para integrar-se à RNDS.

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A experiência brasileira mostra que o modelo de governança adotado faz toda a diferença. Diferentemente de países como Índia e Gana, que criaram agências autônomas, o Brasil manteve a coordenação da saúde digital dentro do Ministério da Saúde.

Essa escolha tem se revelado estratégica, pois reduz atritos institucionais e facilita o alinhamento das políticas digitais com as prioridades do SUS. Com isso, o país tem a oportunidade de induzir a adesão a padrões e ferramentas digitais por meio de incentivos financeiros, pactuações interfederativas e iniciativas nacionais obrigatórias, fortalecendo a implementação da Rede Nacional de Dados.

Interoperabilidade como infraestrutura essencial

Tal como o abastecimento de água e energia é vital para uma cidade, a interoperabilidade em saúde deve ser tratada como infraestrutura indispensável. O país começou a construir essa agenda com programas como o SUS Digital.

O governo federal passou a orientar a padronização como prioridade, destinando recursos com base em um índice de maturidade digital, priorizando regiões mais vulneráveis. Em 2024, foram R$ 464 milhões investidos na transformação digital no SUS, com critérios de alocação que consideraram desigualdades regionais e socioeconômicas.

O projeto  de federalização da RNDS em sete estados, apresentado na comissão tripartite (CIT) em novembro de 2024, prioriza o caminho para a valorização de monitoramento, avaliações de impacto, responsabilidades e metas claras dentro da esfera pública. O risco a ser mitigado é o de investir em conectividade e sistemas, sem garantir que os dados gerados sejam de fato integrados e utilizados.

Um sistema de saúde fragmentado é uma ameaça invisível

Interoperabilidade é, no fundo, uma política de cuidado. Um usuário que passa por vários serviços e tem seu histórico clínico disperso corre mais riscos — de procedimentos desnecessários, diagnósticos equivocados ou negligência. Isso também aumenta os custos para o sistema. Um gestor que não tem dados integrados toma decisões piores. Um sistema que compartilha menos informações perde eficiência e capacidade de resposta.

A boa notícia é que o Brasil tem as peças do quebra-cabeça. O desafio agora é montá-lo o que exige uma governança estável, financiamento contínuo, segurança jurídica e incentivos institucionais para o compartilhamento adequado de dados.

Como o quadro “Operários” de Tarsila do Amaral, expoente do Modernismo, a diversidade, as batalhas e os direitos do povo brasileiro serão melhor representadas na saúde se dermos um passo atrás na dissonância de vozes, e reforçarmos a importância da clareza na comunicação de suas necessidades e condições de saúde via tecnologias de informação e comunicação, respeitando padrões, se atento ao rigor técnico e semântico.

Se quisermos que a saúde digital vá além de um modismo tecnológico, precisamos tratar a interoperabilidade como o que ela realmente é: uma política pública com implicações diretas no presente e no futuro da saúde de milhões de brasileiros.

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