O juiz brasileiro Rodrigo de Bittencourt Mudrovitsch, vice-presidente da Corte Interamericana de Direitos Humanos (Corte IDH), avalia que há “demonstrações significativas” de aproximação do Judiciário com o Sistema Interamericano de Direitos Humanos, mas que é preciso que os tribunais brasileiros passem a incorporar de maneira sistemática a jurisprudência da Corte.
Em entrevista ao JOTA, ele avalia que saímos de um primeiro momento em que o Sistema Interamericano era desconhecido pela maioria dos operadores do Direito e passamos para um segundo estágio, em que a Corte é conhecida e cada vez mais referenciada pela comunidade jurídica brasileira.
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“O desafio agora é consolidar a entrada em um terceiro momento dessa relação, que é o de levar a Convenção Interamericana a sério, de incorporar a jurisprudência da Corte na prática decisória dos tribunais brasileiros e de realizar o controle de convencionalidade de nosso Direito à luz das obrigações internacionais de direitos humanos”, afirma.
O juiz também comentou sobre os efeitos ao Brasil da recém-emitida Opinião Consultiva 32, que estabelece obrigações para a proteção de direitos humanos no contexto da crise climática global, e elencou os principais avanços jurisprudenciais desde que passou a integrar o colegiado, em fevereiro de 2022.
Para o vice-presidente da Corte IDH, temas como a proteção de dados e a integridade de sistemas digitais serão destaques no âmbito do Direito Internacional dos direitos humanos, nos próximos anos.
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Mudrovitsch assumiu a vice-presidência da Corte IDH em janeiro de 2023. A presidência ficou a cargo da juíza costarriquenha Nancy Hernández López. O mandato de ambos na gestão da Corte termina em dezembro de 2025.
Leia a entrevista completa com Rodrigo Mudrovitsch.
Quais os principais avanços jurisprudenciais o senhor destaca dos anos em que está na Corte IDH?
Nos últimos anos, registramos avanços muito relevantes em diversas linhas jurisprudenciais da Corte. A Corte costuma afirmar em suas sentenças que a Convenção Americana sobre Direitos Humanos é um “instrumento vivo”, cuja interpretação e aplicação devem considerar as condições e circunstâncias do tempo e do lugar em que se insere. Essa hermenêutica evolutiva tem impulsionado a inovação contínua em matéria de proteção de direitos humanos.
Em 2023, por exemplo, o tema da proteção de dados pessoais passou a integrar o rol de direitos protegidos pela Convenção, com o reconhecimento do direito à autodeterminação informativa no caso Colectivo de Abogados José Alvear Restrepo (“CAJAR”) vs. Colômbia.
Avançamos também no campo da liberdade de expressão, com decisões significativas que restringem o uso do Direito Penal como meio de proteção da honra, privilegiando instrumentos menos lesivos à liberdade de expressão em casos como Baraona Bray vs. Chile.
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A pauta democrática também recebeu especial atenção. No caso Aguinaga Ailón vs. Equador, a Corte tratou do dever estatal de assegurar proteção reforçada à independência das cortes e organismos eleitorais, dado o papel essencial que desempenham nos processos democráticos. Mais recentemente, nos casos Capriles vs. Venezuela e Gadea Mantilla vs. Nicarágua, a Corte reconheceu a obrigação de garantir a integridade dos processos eleitorais, como forma de impedir a captura da vontade popular por grupos no poder. Há ainda o pedido de Opinião Consultiva apresentado pelo Estado da Guatemala sobre Democracia e Direitos Humanos, o que demonstra o grande interesse da comunidade interamericana no tema.
Esses são apenas alguns exemplos de avanços e inovações da jurisprudência interamericana, aos quais se somam importantes sentenças em áreas como os direitos dos povos indígenas, o enfrentamento à violência contra a mulher, o acesso à justiça, as reparações e a proteção ambiental dentre outras pautas fundamentais.
De que forma o senhor avalia a atuação da Justiça brasileira, atualmente, em relação à proteção dos direitos humanos? Quais aspectos podem ser ajustados, na sua visão?
A Justiça brasileira tem dado demonstrações significativas de aproximação com o Sistema Interamericano de Direitos Humanos, a começar pelas iniciativas do CNJ, como a Resolução n. 364 de 2021, que estabeleceu a Unidade de Monitoramento e Fiscalização das decisões do Sistema Interamericano e a Recomendação n. 123 de 2021, que exortou os juízes brasileiros a incorporarem em seus provimentos a jurisprudência da Corte IDH. Também o Brasil sediou duas vezes os períodos de sessões da Corte nos últimos anos, em 2022 e 2024, o que é um sinal muito positivo de abertura de nosso Poder Judiciário.
Essas movimentações mostram que, felizmente, saímos de um primeiro momento em que o Sistema Interamericano era desconhecido pela maioria dos operadores do direito e passamos para um segundo estágio, em que a Corte é conhecida e cada vez mais referenciada pela comunidade jurídica brasileira.
Creio que o desafio agora é consolidar a entrada em um terceiro momento dessa relação, que é o de levar a Convenção Interamericana a sério, de incorporar a jurisprudência da Corte na prática decisória dos tribunais brasileiros e de realizar o controle de convencionalidade de nosso Direito à luz das obrigações internacionais de direitos humanos.
Quais efeitos a recente Opinião Consultiva 32, sobre direitos humanos no contexto da crise climática global, pode produzir ao Brasil, considerando a relevância do patrimônio ambiental do país?
A Opinião Consultiva 32 representa um marco na história da Corte, com contribuições decisivas para este que constitui um dos grandes desafios da humanidade em todos os tempos, que é o cenário de emergência climática.
O parecer da Corte inova, por exemplo, ao reconhecer a existência e exigibilidade do direito humano a um clima seguro. Além disso, estabelece que a obrigação dos Estados de não causar danos irreversíveis ao clima e ao meio ambiente possui natureza jus cogens, ou seja, trata-se de norma imperativa e inderrogável do Direito Internacional, com hierarquia superior e aplicável a todos os Estados, impondo-lhes o dever de buscar metas efetivas de redução de emissões de gases de efeito estufa.
O Brasil tem um vínculo muito especial com essa Opinião Consultiva. Em 2024, durante o Período de Sessões da Corte IDH sediado no país, foram realizadas audiências públicas sobre o tema da consulta em Brasília e, simbolicamente, em Manaus. Esses eventos reuniram centenas de delegações compostas por representantes de Estados, organizações da sociedade civil, universidades, entidades de direitos humanos e lideranças indígenas, para debater a questão climática.
O Parecer apresenta standards fundamentais em matéria ambiental que deverão ser observados por nossas autoridades e utilizados para guiar a formulação de políticas públicas e os processos decisórios sobre matérias que possam afetar o clima e o cumprimento das metas de emissão assumidas pelo país.
Em voto concorrente proferido no caso Cajar Vs. Colômbia, o senhor destacou a importância de que a Corte se aprofunde em temas de proteção de dados e inteligência artificial. Quais principais pontos devem ser observados, neste caso? De que forma isso pode ser feito?
O caso CAJAR vs. Colômbia foi inovador sob múltiplos aspectos. Foi a primeira vez em que a Corte tratou da proteção de dados e do direito à autodeterminação informativa – isto é, o direito de cada pessoa decidir sobre o uso e a destinação dos dados e informações que lhe dizem respeito.
A sentença aportou relevantes considerações sobre a coleta, armazenamento, tratamento e transmissão de dados pessoais sob uma perspectiva de direitos humanos. O caso envolveu o monitoramento clandestino, por mais de 30 anos, de um coletivo de advogados que atuava na defesa de opositores políticos na Colômbia, por parte de organismos de inteligência. Embora os métodos utilizados à época dos fatos fossem majoritariamente analógicos, como escutas telefônicas e vigilância direta, o caso abriu caminho para a evolução dos standards da Corte diante dos desafios atuais da era digital.
Em meu voto, destaquei a importância da proteção à integridade dos sistemas digitais. Hoje, o acesso a aplicativos de celular, por exemplo, pode revelar muito mais sobre a vida íntima de uma pessoa do que a interceptação de suas chamadas telefônicas. Por isso, acredito que esse tema deve ser objeto de atenção crescente no âmbito do direito internacional dos direitos humanos.
Nos últimos anos, a Corte tem dado especial atenção a questões envolvendo povos e comunidades tradicionais – notadamente em relação às obrigações do Estado sobre direitos territoriais. No Brasil, a demarcação de terras tradicionais segue a passos lentos. Na sua opinião, quando a falta ou a morosidade para titulação passa a ser uma violação?
A Corte IDH reconhece, em sua jurisprudência, a garantia de que processos judiciais e administrativos, independentemente de seu objeto, sejam concluídos dentro de um prazo razoável.
A definição do que constitui um prazo razoável ou uma demora excessiva depende de diversos fatores, como a complexidade do litígio, o comportamento das partes e a atuação das autoridades e órgãos decisórios. Apenas um exame caso a caso permite determinar se houve ou não violação à Convenção.
Qual legado o senhor pretende deixar ao fim deste mandato como vice-presidente da Corte?
A Vice-Presidência da Corte Interamericana é uma função desafiadora e ao mesmo tempo profundamente enriquecedora. Tem sido uma honra apoiar a exímia atuação da presidenta Nancy Hernández López, que possui ampla experiência, na condução das atividades do Tribunal.
Nesse período, a Corte buscou se fazer cada vez mais presente na realidade dos Estados que reconhecem sua jurisdição, com a realização de vários períodos de sessões fora da sede, visitas in loco para monitorar o cumprimento de decisões, assim como a recepção de diversas delegações de tribunais e instituições de toda a região na sede da Corte Interamericana em San José. Essas iniciativas contribuíram para fortalecer o diálogo interinstitucional e promover o intercâmbio de boas práticas em matéria de proteção dos direitos humanos no Sistema Interamericano.
Também foi um período de intensa atividade em todas as vertentes de atuação do Tribunal, com um crescente número de sentenças em casos contenciosos proferidas a cada ano; com uma Opinião Consultiva já publicada e outras 3 em tramitação; além de múltiplas medidas provisórias proferidas em situações de risco iminente para os direitos humanos.