O instituto dos trusts estrangeiros nos países de civil law

O trust é um dos mais relevantes institutos do sistema jurídico da common law, constituído por uma estrutura contratual através da qual, em resumo, um terceiro, denominado trustee, passa a deter a titularidade fiduciária de bens, que lhe são transmitidos, para benefício de terceiros (beneficiaries), de acordo com regras e disposições definidas pelo seu instituidor (settlor).

Nos últimos anos, houve um aumento exponencial da sua utilização, inclusive por residentes em países de civil law. Contudo, a aplicação nesses países enfrenta resistências estruturais, uma vez que esses sistemas jurídicos, em geral, não admitem a cisão da propriedade entre titularidade formal e substantiva. Nada obstante, observa-se uma gradual adaptação doutrinária e legislativa para recepcionar os efeitos dos trusts constituídos sob leis estrangeiras.

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Países como Alemanha, Espanha e Portugal historicamente não reconhecem o instituto do trust, mas têm enfrentado o desafio de regular os trusts estrangeiros no contexto de relações jurídicas internacionais, especialmente após a Convenção de Haia sobre a Lei Aplicável ao Trust e seu Reconhecimento, de 1985, que buscou estabelecer regras comuns para o reconhecimento e a lei aplicável a trusts em países com diferentes sistemas jurídicos (principalmente common law e civil law).

A Alemanha, por exemplo, não ratificou a Convenção da Haia e não reconhece o trust como figura jurídica no direito interno. Assim, os trusts estrangeiros, aos quais se referem como fundos estrangeiros com a finalidade de vincular ativos, embora sob a perspectiva do Direito Internacional Privado admita-se o reconhecimento dos seus efeitos desde que compatíveis com a ordem pública alemã, carecem de jurisprudência, o que dificulta a resolução de conflitos.

No que tange à tributação, o governo alemão, após 1999 com a introdução de normas antielisivas, promulgou disposições legais aplicáveis às transferências de bens para trusts estrangeiros, tratados, do ponto de vista fiscal como “transparentes” ou “opacos”, o que pode determinar, conforme as suas características (inclusive os poderes com relação à gestão dos ativos), a incidência do imposto de herança na transferência de bens do instituidor (settlor) ao trustee.

Da mesma forma, no momento da distribuição pelo trust estrangeiro ao beneficiário residente no país, poderá haver nova incidência do imposto de renda sob o valor dos rendimentos e ganhos acumulados (ainda que não realizados).

A Itália, por sua vez, ratificou a Convenção de Haia em 1989 e, apesar da ausência de regulamentação legislativa interna específica, vem aceitando os denominados trusts internos, isto é, constituídos por residentes na Itália, com ativos situados na Itália, mas com base em lei estrangeira.

Em termos tributários, a regulamentação da tributação de trusts na Itália vem atribuindo aos rendimentos e ganhos dos trusts tratamento de transparência fiscal ou opacidade, após considerar as características constantes dos documentos, especialmente quanto à sua revogabilidade e discricionariedade da gestão e controle pelo settlor.

A Espanha, também, não ratificou a Convenção de Haia e mantém uma posição de resistência aos trusts, não os reconhecendo, formalmente, como figura jurídica autônoma no direito interno. O Código Civil espanhol não contempla mecanismos equivalentes ao fracionamento da titularidade entre o legal owner e o beneficial owner, característica essencial dos trusts.

Porém, em certas hipóteses, há o reconhecimento dos seus efeitos como instrumento do direito estrangeiro, desde que não contrariem a ordem pública. As regras de tributação são complexas. A Agência Tributária Espanhola aplica os princípios gerais da Lei Geral Tributária e a tributação pode ocorrer em momentos distintos, a depender da substância econômica e a qualificação do trust de acordo com critérios, tais como o poder de controle do settlor e a natureza das distribuições aos beneficiários (rendimentos, doação ou herança).

Para a distribuição aos beneficiários, propriamente dita, a lei espanhola qualifica esta transmissão como gratuita (doação ou herança), além de instituir obrigações acessórias de declaração de informações pelos beneficiários.

Portugal, da mesma forma, não é signatário da Convenção de Haia, e como os demais países de civil law não reconhece plenamente o trust, mas pode admiti-lo, de forma restrita, sob a ótica do direito internacional privado, de forma pragmática.

As autoridades fiscais portuguesas vêm, ao longo dos últimos anos, interpretando essas estruturas com base na substância econômica das operações, de modo a prevenir a evasão fiscal e assegurar a eficácia do sistema tributário português. Especificamente a Lei 83/2017, que transpôs a Quarta Diretiva Antilavagem da União Europeia, introduziu obrigações para as entidades fiduciárias, incluindo o trust e exigindo o registro dos beneficiários efetivos no Registro Central do Beneficiário Efetivo (RCBE).

A jurisprudência tende a proteger a legítima dos herdeiros necessários, o que pode comprometer a eficácia de trust que disponham sobre esta parcela da herança. A autoridade tributária em Portugal costuma adotar uma abordagem de transparência fiscal, e analisa a estrutura sob o ponto de vista de sua revogabilidade (ou irrevogabilidade) e da reserva de poderes pelo settlor, determinando várias normas fiscais que enquadram as distribuições de rendimentos do trust e os resultados da sua liquidação.

Ou seja, os beneficiários residentes de Portugal estão sujeitos, a depender da forma e do momento da atribuição dos bens ou rendimentos, ao imposto de selo, que incide sobre as transmissões gratuitas de bens. Da mesma forma, se o trust distribuir rendimentos aos beneficiários, tais valores podem ser qualificados como rendimentos de fonte estrangeira ou mesmo uma doação.

No Brasil, apesar da ausência de previsão no Código Civil, a utilização do trust por residentes brasileiros tem se tornado frequente como instrumento de planejamento patrimonial e sucessório. A validade e a eficácia de atos jurídicos praticados no exterior, desde que não contrariem a ordem pública nacional, podem ser reconhecidas no Brasil com fundamento nos princípios da autonomia privada e da boa-fé objetiva, bem como nas normas de direito internacional privado previstas na legislação brasileira.

Até recentemente a legislação brasileira não disciplinava, expressamente, a forma de tributação aplicável aos rendimentos e ao patrimônio mantidos por meio de trusts no exterior.

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Tal lacuna foi preenchida com a recente promulgação da Lei 14.754/2023, que versa sobre a tributação de investimentos no exterior, reconheceu a existência de estruturas de trusts e determinou o tratamento fiscal a ser atribuído, quando o settlor ou instituidor ou os beneficiários são residentes no país.

Para fins da nova lei, o trust é uma figura contratual regida por legislação estrangeira que dispõe sobre a relação jurídica entre o instituidor, o trustee (o administrador dos trusts, com deveres fiduciários, responsável por manter e seguir as regras dos documentos de sua instituição) e os beneficiários, quanto aos bens e direitos que passam a constituir o patrimônio do trust.

A nova lei determina que os bens e ativos submetidos ao regime do trust permanecem, sob o ponto de vista tributário no Brasil, como de titularidade do settlor, passando ao beneficiário apenas no momento de sua efetiva distribuição ou no falecimento do settlor, o que ocorrer primeiro.

Assim, a transferência dos bens do trust do settlor ao beneficiário será considerada doação se ocorrida em vida ou herança se realizada após o falecimento, qualificada como transmissão gratuita e sujeita ao ITCMD. Os rendimentos e ganhos do trust (decorrente de ativos detidos diretamente ou através de entidades controladas) são considerados como auferidos pelo settlor, de forma transparente, e sujeitos às novas regras de antidiferimento e de tributação anual, previstas na referida Lei 14.754/23.

Devem o settlor e o beneficiário, conforme aplicável, declarar os ativos do trust fund, ou seja, os ativos subjacentes, alocando o custo de aquisição e observando os critérios previstos na mesma lei.

Apesar de representar grande evolução, a nova lei permitiu à fiscalização certas interpretações e posicionamentos, sempre no intuito de impedir o antidiferimeto fiscal, que poderá ensejar questionamentos na esfera judicial. Um exemplo refere-se às hipóteses de trusts constituídos para gerações futuras, quando a interpretação da Receita Federal sobre o momento da incidência do tributo determinará, em certos casos, que a tributação imposta aos beneficiários incidirá para além da parcela efetivamente distribuída.

Dada a sua recente edição, e sendo este o primeiro ano de aplicação das regras de apuração do Imposto de Renda de aplicações e investimentos no exterior, nas hipóteses de bens submetidos ao trust, diretamente, ou através de entidades controladas no exterior, deve o contribuinte estar atento ao posicionamento da fiscalização, na interpretação das situações em que a nova regra deixar lacunas ou inconsistências.

Em essência, a Lei 14.754/2023, no que diz respeito aos trusts, pode ter se esforçado em internalizar um instrumento de common law para um sistema de civil law. O tratamento fiscal outorgado poderá prejudicar sua utilização como um eficiente instrumento de planejamento sucessório para residentes no país, em um contexto em que a figura do trust se torna cada vez mais relevante no cenário internacional.

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