Na coluna passada, fez-se uma abordagem estritamente jurídica da Lei Magnitsky, analisando a discussão sobre a sua aplicação extraterritorial, sem emitir quaisquer juízos de valor ou opiniões políticas sobre casos concretos no país. Pouco depois foi noticiada a sanção contra o ministro Alexandre de Moraes e a principal dúvida dos departamentos jurídicos das empresas versa precisamente sobre a questão da extraterritorialidade.
Seguindo essa linha de comentários abstratos, sem pretensões de concluir sobre se procede ou não o impeachment de qualquer ministro do STF, o texto de hoje traz o caso do único processo de impeachment contra um justice da Suprema Corte dos Estados Unidos: Samuel Chase, em 1804.
Informações direto ao ponto sobre o que realmente importa: assine gratuitamente a JOTA Principal, a nova newsletter do JOTA
O caso é narrado em detalhes por William H. Renquist em seu livro Grand Inquests: The Historic Impeachments of Justice Samuel Chase and President Andrew Johnson (New York: Quill William Morrow, 1992). Renquist foi juiz associado (associate justice) da Suprema Corte indicado por Richard Nixon em 1972, tendo ficado no cargo até 1986, quando foi indicado por Ronald Reagan para se tornar o presidente (chief justice), cargo que ocupou até a sua morte em 2005.
O pedido de impeachment de Samuel Chase foi motivado por acusações de má conduta judicial (comportamento partidário ou parcial; em inglês, a palavra utilizada é partisan), incluindo decisões e discursos políticos inadequados, considerados tendenciosos contra os republicanos-jeffersonianos. O presidente dos EUA à época era Thomas Jefferson, que governou de 1801 a 1809.
A ascensão dos republicanos jeffersonianos é apontada por Renquist como um contexto importante, pois estes enxergavam o Poder Judiciário como um “bastião” de federalistas que defendiam um governo central forte (como Chase), que tinham “se retirado para o judiciário como uma fortaleza” para minar o republicanismo (Renquist, 1992, p. 49).
Nesse cenário, o estopim para o pedido de impeachment foi um discurso proferido por Samuel Chase em maio de 1803 perante o grande júri de Baltimore criticando a revogação do Judiciary Act de 1801, que tinha sido aprovado durante o período do “pato manco” (lame-duck session) da administração de John Adams, antecessor de Jefferson, quando os federalistas ainda eram maioria no Congresso (Renquist, 1992, p. 52).
Aqui cabe uma contextualização história. À época, sob o Judiciary Act de 1789, os justices, além de desempenhar suas funções na Suprema Corte, também atuavam como juízes de tribunais de circuito (circuit courts). Além disso, o caso de Baltimore não foi o único “artigo” que embasou o pedido de seu impeachment; no total, foram 8, mas esse foi um dos mais importantes, pois algumas das acusações diziam respeito à época em que Chase não fazia parte da Suprema Corte.
O Judiciary Act de 1801 tinha criado 6 novos tribunais de circuito, 16 novos juízes de circuito – cujos indicados ficaram conhecidos como “juízes da meia-noite” (midnight judges), por conta da crença de que Adams teria ficado acordado até meia-noite fazendo as nomeações, nas últimas horas de sua presidência. O Judiciary Act de 1801 também reduziu o número de juízes da Suprema Corte de 6 para 5, significando que os republicanos teriam que esperar por não apenas 1, mas 2 vagas na corte para nomear um de seus próprios (Renquist, 1992, p. 50).
Os republicanos consideraram o Judiciary Act de 1801 uma chicana política (political chicanery) e uma tentativa de frustrar o veredito popular da eleição de 1800 (Renquist, 1992, p. 53). Por essa razão, surgiu a proposta de revogar essa lei, que acabou sendo aprovada em fevereiro de 1802 pelo Senado, por uma votação apertada (16 a 15). Depois a Câmara dos Representantes aprovou o projeto por 59 a 32. No ano seguinte, a Suprema Corte confirmou a constitucionalidade da revogação (Renquist, 1992, p. 52).
Daí que a crítica aberta do justice Samuel Chase à revogação do Judiciary Act de 1801 (e às mudanças propostas na constituição de Maryland) foi o catalisador direto para o pedido de impeachment apresentado. Eis o trecho do seu discurso: “A recente alteração do sistema judiciário federal … e a recente mudança na nossa constituição estadual, com o estabelecimento do sufrágio universal… irão… tirar toda a segurança da propriedade e da liberdade pessoal… e a nossa constituição republicana irá afundar em uma mobocracia,[1] o pior de todos os governos populares”.[2]
De forma indiscutível, a fala revela a intensa politização do Judiciário naquela época. Naturalmente, foi considerada por Jefferson um “ataque sedicioso e oficial aos princípios de nossa Constituição” (Renquist, 1992, p. 22), conforme palavras escritas em carta dirigida a um dos líderes da Câmara, que acabou aprovando os 8 artigos de impeachment contra Chase em 1804, acusando-o de má conduta em julgamentos, abuso de poder e comportamento inadequado.
A acusação contra Chase argumentou que sua conduta havia sido “altamente arbitrária, opressiva e injusta” (Renquist, 1992, p. 59). No Senado, um dos líderes influentes era William Branch Giles, republicano, que defendia o impeachment como um mecanismo estritamente político para remover oficiais fora de sintonia com as tendências políticas predominantes no país (Renquist, 1992, p. 26).
A visão de Giles foi resumida por John Quincy Adams da seguinte forma: “O impeachment não era um processo criminal … e a destituição por impeachment nada mais era do que uma declaração do Congresso com o seguinte teor: você tem opiniões perigosas e, se for permitido que você as coloque em prática, você causará a destruição da União. Queremos seus cargos com o objetivo de entregá-los a homens que os ocuparão melhor”.[3]
Entretanto, a defesa de Chase (e os senadores federalistas) argumentaram que a acusação de impeachment deveria ter como base “crimes graves ou contravenções”, e que as ações de Chase não constituíam delito punível. Sustentou-se que o pedido de impeachment era motivado por divergências puramente políticas ou ideológicas e representava um ataque político contra a independência do Judiciário.
Para resumir a história narrada com muito mais detalhes por Renquist, a votação no Senado foi realizada artigo por artigo, e não foi alcançada a maioria exigida de dois terços (ou seja, 23 dos 34 senadores) para a remoção do cargo em nenhuma das acusações que embasaram o pedido de impeachment. A votação mais próxima foi precisamente no artigo relacionado ao discurso de Baltimore (artigo 8º), com 19 votos a favor da condenação e 15 contra (faltaram 4 votos).
Entre os senadores republicanos, houve 6 que se recusaram a votar pela condenação, o que foi determinante para a absolvição. Como conta Renquist, nenhum senador fez qualquer comentário no plenário do Senado explicando seus votos sobre qualquer um dos artigos de impeachment e em 1805 não havia jornalistas esperando nos corredores do Capitólio para fazer as inevitáveis perguntas sobre o porquê e o motivo (Renquist, 1992, p. 108).
Então, Chase acabou sendo absolvido pelo Senado em 1805, e permaneceu no cargo até a sua morte em 1811.
Na leitura de Renquist, a absolvição de Chase evitou que o impeachment se tornasse uma ferramenta de retaliação política e estabeleceu um precedente importante na proteção da autonomia judicial: juízes não poderiam ser removidos simplesmente por discordâncias ideológicas ou decisões impopulares. Na sua opinião, se Chase tivesse sido condenado, o futuro do sistema da tripartição e da independência entre os poderes poderia ter sido comprometido.
Ainda de acordo com o autor, a absolvição de Chase traçou um limite claro sobre o uso adequado do poder de impeachment pelo Congresso, estabelecendo que ele não é um referendo sobre o desempenho de um oficial público, mas sim um tipo de inquérito judicial em que acusações específicas devem ser comprovadas perante o Senado. Inclusive, afirma que o próprio Jefferson teria reconhecido, logo após a absolvição de Chase, que o impeachment era um “espantalho” (scarecrow) que não seria usado novamente (Renquist, 1992, pp. 130, 134, 271).
Até os dias atuais, desde a absolvição de Chase, nenhum outro ministro da Suprema Corte enfrentou um processo formal de impeachment. O caso mais próximo foi o de Abe Fortas, indicado por Lyndon Johnson para chief justice em 1968. A aprovação do seu nome se deu em meio à obstrução no Senado, em razão de questões éticas relacionadas ao recebimento de valores oriundos de uma fundação ligada a um empresário investigado. Mesmo tendo sido confirmado, após novas revelações sobre suas finanças, Fortas acabou renunciando em 1969, ainda antes da abertura formal de qualquer processo de impeachment.
Se, por um lado, não houve mais pedidos de impeachment, por outro lado, desde então, os juízes da Suprema Corte pararam de fazer discursos políticos (Renquist, 1992, p. 125).
Uma curiosidade sobre o livro de Renquist, é que foi publicado pouco antes do pedido de impeachment contra o presidente Bill Clinton em 1998, estando o autor já ciente das tensões políticas da época. Diz-se que Renquist escreveu o livro como uma advertência contra o uso do impeachment para resolver disputas partidárias. Como chief justice foi ele mesmo quem presidiu o julgamento de impeachment de Clinton no Senado, que também implicou absolvição.
*
Nesta primeira semana de agosto de 2025, a Defensor Legis completa cinco anos. Renovo meus agradecimentos ao JOTA pelo espaço generoso que me é franqueado e aos leitores pelo contínuo interesse nos textos aqui publicados. Isso permite que esta colunista continue escrevendo e comentando sobre os assuntos da atualidade envolvendo o cenário jurídico das relações do Legislativo com os demais Poderes. Muito obrigada!
[1] Mobocracia (ou mob rule, em inglês) é o termo (com conotação pejorativa) utilizado para descrever um sistema político ou situação em que o poder está nas mãos de uma multidão descontrolada, em vez de em instituições ou com leis estabelecidas. Mob significa turba; então, mobocracia seria o “domínio da turba” ou o governo da “pressão popular”, em que as decisões são tomadas por impulsos populares, por vezes violentos ou irracionais, em desrespeito ao devido processo legal. A intimidação pela multidão induz decisões tomadas para acalmá-la.
[2] No original: “The late alteration of the federal judiciary… and the recent change in our state constitution, by the establishing of universal suffrage… will… take away all security for property and personal liberty… and our Republican constitution will sink into a mobocracy, the worst of all popular governments” (RENQUIST, William H. Grand Inquests: the historic impeachments of Justice Samuel Chase and President Andrew Johnson. New York: Quill William Morrow, 1992, p. 52).
[3] No original: “Impeachment was not a criminal prosecution … and a removal by impeachment was nothing more than a declaration by Congress to this effect: you hold dangerous opinions, and if you are suffered to carry them into effect, you will work the destruction of the Union. We want your offices for the purpose of giving them to men who will fill them better” (RENQUIST, William H. Grand Inquests: the historic impeachments of Justice Samuel Chase and President Andrew Johnson. New York: Quill William Morrow, 1992, p. 27).