A estrutura orçamentária no Brasil não constitui meramente uma técnica de planejamento estatal, mas uma engrenagem central do sistema político. Nos últimos anos, tornou‑se particularmente visível a correlação crítica entre as dificuldades de governabilidade e a lógica de formação de maiorias no Congresso Nacional, pautada pela oferta e liberação de emendas orçamentárias.
A utilização do orçamento público como meio de articulação política, por meio da distribuição seletiva de recursos para obtenção de apoio legislativo, configura uma prática que, embora formalmente legítima, pode afastar-se dos princípios da legalidade, impessoalidade e eficiência administrativa previstos no caput do artigo 37 da Constituição Federal.
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Tal dinâmica não representa uma simples anomalia procedimental, mas sim uma patologia institucional, porquanto converte o orçamento público em instrumento de captura política e manutenção de maiorias artificiais, comprometendo direitos, prejudicando a eficiência estatal e solapando a legitimidade democrática.[1]
O presente artigo sustenta que a lógica de distribuição de emendas parlamentares transformou-se em um mecanismo informal de captura do orçamento público, convertendo a política fiscal em instrumento de barganha legislativa que fragiliza os fundamentos constitucionais da governabilidade democrática.
Emendas como instrumento de governabilidade
A formação de maiorias para garantir a governabilidade no Brasil constitui uma característica estrutural do sistema político desde a Constituição de 1946. Nesse contexto, as coalizões não decorrem, necessariamente, de uma compatibilidade programática ou de uma identidade clara de interesses substantivos, mas sim de uma engenharia ex post destinada a garantir o suporte legislativo para a aprovação de uma agenda de governo. Tal dinâmica evidencia uma dissociação entre representação e legitimidade, uma vez que as forças políticas associam‑se não pela coerência de um programa, mas pela perspectiva de acesso a recursos.[2]
A ruptura ou a incapacidade de formação de uma coalizão eficaz no Executivo conduz, quase inexoravelmente, à intensificação de uma dinâmica de conflito entre Poderes. Dessa maneira, a governabilidade não apenas passa a refletir uma lógica de arranjos precários e contingentes, mas conduz, estruturalmente, a uma tensão permanente entre as instituições de representação e de decisão política no Estado brasileiro.[3]
Essa lógica de coalizões informais baseada em recompensas materiais deságua, inevitavelmente, em distorções na gestão do orçamento público. É nesse contexto que emergem patologias orçamentárias cada vez mais evidentes, especialmente em períodos eleitorais
Limites constitucionais e patologias orçamentárias
Num sistema presidencialista marcado pela representação proporcional e por uma elevada diversidade partidária, tornam‑se escassos os estímulos para a consolidação de uma coalizão legislativa estável e duradoura.
Os parlamentares respondem prioritariamente às demandas de suas bases eleitorais locais ou setoriais, não às diretrizes programáticas do Executivo federal, uma vez que não partilham com este uma mesma lógica de representação. Dessa forma, mesmo partidos formalmente alinhados ao governo não apresentam compromisso permanente para com todas as pautas presidenciais.[4]
No Brasil, nos anos eleitorais, é bem conhecida a tendência de expansão de programas sociais, obras públicas e subsídios — medidas que, embora possam ter impacto social positivo, também funcionam como ferramentas para angariar apoio eleitoral imediato. Esse comportamento reforça a ideia de que as políticas públicas, muitas vezes, são desenhadas com vistas ao retorno político, e não necessariamente à eficiência ou equidade na alocação de recursos.[5]
Estudos demonstram que os ciclos políticos orçamentários são mais acentuados em economias em desenvolvimento. A principal explicação apontada pelos autores é que tais países possuem eleitores com menor acesso à informação, menor escolaridade média e instituições de controle mais frágeis, o que reduz a capacidade de accountability democrática e permite maior espaço para manipulação fiscal oportunista por parte dos governantes.[6]
“Orçamento de coalizão”?
A identificação da chamada “bancada das emendas” como um agrupamento suprapartidário relevante representa um avanço importante para a compreensão das dinâmicas políticas que norteiam a formação de maiorias no Congresso Nacional brasileiro.
Diferentemente das bancadas formais organizadas por partido ou região, essa bancada informal congrega parlamentares de distintas legendas que se articulam em torno da negociação e distribuição de emendas orçamentárias. Tal configuração evidencia uma lógica política pautada na busca por benefícios materiais para suas bases eleitorais, que transcende identidades partidárias e orientações ideológicas.
Essa atuação conjunta revela que a formação de coalizões no Legislativo não se dá exclusivamente por afinidades programáticas ou alinhamentos partidários, mas também — e frequentemente — por interesses concretos compartilhados relacionados à alocação de recursos públicos. A partir dessa base material comum, parlamentares de diferentes partidos estabelecem vínculos pragmáticos que lhes conferem maior poder de influência na definição da agenda legislativa, configurando um fenômeno suprapartidário que merece atenção no estudo das maiorias parlamentares.
A relevância da “bancada das emendas” transcende sua função meramente distributiva, pois destaca a importância das dinâmicas informais de poder e negociação política no processo legislativo brasileiro. A compreensão das maiorias no Congresso exige, portanto, uma análise que incorpore essas redes suprapartidárias, as quais muitas vezes exercem influência superior às estruturas partidárias oficiais. Tal perspectiva amplia o escopo do estudo político, ao evidenciar como as relações informais e os interesses pragmáticos moldam a governança democrática no Brasil.
Conclusão
A atual configuração institucional evidencia que o desequilíbrio entre planejamento estatal e pressões políticas decorre de incentivos disfuncionais próprios do presidencialismo multipartidário. A governabilidade, sob esse modelo, passa a depender de mecanismos informais de distribuição de poder e de recursos, muitas vezes opacos e disfuncionais do ponto de vista da racionalidade orçamentária.
As emendas parlamentares, embora eficazes para viabilizar arranjos institucionais mínimos, estão marcadas por déficits democráticos relevantes. Seu uso reiterado como instrumento de cooptação distorce a execução orçamentária e captura recursos estatais por interesses paroquiais. É urgente repensar os mecanismos de barganha federativa, assegurando maior transparência, previsibilidade e equidade na gestão do orçamento público.
Reformas institucionais que fortaleçam a programação plurianual, a participação cidadã e os controles externos podem representar caminhos concretos para conter a captura orçamentária e resgatar a legitimidade do orçamento como instrumento de planejamento e justiça distributiva.
[1] PORTINARI, Natália. Pressionado, governo Lula libera R$ 16 bilhões em emendas e verbas extras. UOL Notícias, 19 jun. 2025. Disponível em: https://noticias.uol.com.br/colunas/natalia-portinari/2025/06/19/pressionado-governo-lula-libera-r-16-bilhao-em-emendas-e-verbas-extras.htm. Acesso em: 19 jun. 2025.
[2] BITTENCOURT, F. M. R. (2012). Relações Executivo-Legislativo no presidencialismo de coalizão: um quadro de referência para estudos de orçamento e controle. Brasília, DF: Núcleo de Estudos e Pesquisas do Senado, pp. 8-10.
[3] ABRUCIO, Fernando Luiz. (1988) Os Barões da Federação: Os Governadores e a Redemocratização Brasileira. São Paulo: Hucitec/EdUSP, p. 45.
[4] MAINWARING, Scott. (1993) Presidentialism, Multipartism, and Democracy: The Difficult Combination. Comparative Political Studies, Thousand Oaks, v. 26, n. 2, p. 198–228.
[5] DOWNS, A. (1957). An economic theory of political action in a democracy. Journal of political economy, 65(2), pp. 135-150.
[6] SHI, Min; SVENSSON, Jakob. (2006). Political Budget Cycles: Do They Differ Across Countries and Why? Journal of Public Economics, Amsterdam, v. 90, n. 8-9, Aug, pp. 1367–1389.