No dia 16 de setembro de 2024, no programa Roda Viva, a célebre cientista política brasileira Maria Hermínia Tavares, ao ser questionada sobre a crescente presença do discurso do empreendedorismo, e como a ciência política abordaria tal questão, respondeu: “A ciência política abandonou essa coisa de classe há muitas décadas, então isso não cria muito problema”.
Na esteira dos debates quanto ao volume da taxação do Imposto sobre Operações Fiscais (IOF), após um movimento intrépido do Legislativo ter derrubado o aumento do imposto desejado pelo Palácio do Planalto, o governo passou a implementar, comunicacionalmente, a narrativa de rivalização entre pobres e ricos.
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A estratégia contemplava o uso de inteligência artificial na geração de personagens, como Hugo Não Se Importa, uma clara alusão ao presidente da Câmara, Hugo Motta (Republicanos-PB). A ideia seria a de demonstrar que o Congresso corria para impedir tributações que incidissem sobre os mais ricos, engarrafando a agenda de justiça fiscal.
A fala da célebre professora soa engraçada à luz desses acontecimentos. Na verdade, como uma espécie de quebra de parede brechtiana prevista neste fólio, as fricções entre política e classe têm na ocultação um elemento fundamental.
Elementos da classe política e da classe empresarial reagiram a este episódio com revolta, alegando que o uso da luta de classes como elemento comunicacional reforça o flaflu político da tão temida polarização. Falar de classe é, simultaneamente, ocultar classe. É isso que Hunter (2023) indica como sendo a forte característica do Estado capitalista, o fato de que ele contém, em si, uma negação desse seu caráter. Codato (2020) nos lembra de coisas parecidas, ao demonstrar como a cena política reconfigura o binômio aparência vs. essência em uma dinâmica própria, em que o aparente se torna o essencial àquele espaço.
Claro, precisamos ser justos. Na entrevista, não foi dito que “a ciência política não trabalha, de forma alguma, classe”. A ênfase ao “essa coisa” presente na asserção revela a secundarização de uma dimensão específica dos estudos de classe. Olin Wright (2018) demonstra, de maneira bastante mastigada, que classe pode significar muitas coisas. Podemos falar em pobres e ricos, podemos falar em propriedade de meios de produção, podemos falar em escolaridade. Se falarmos em nascimento, o autor até brinca que teremos de arrumar um jeito de resolver a forma de caracterizar os bebês: os bebês filhos de famílias burguesas são automaticamente burgueses?
A ciência política aborda classe de diversas maneiras, mesmo em suas formas mais mainstream. É absolutamente comum vermos estudos de opinião pública que tenham como clivagem principal a diferença de renda entre os respondentes (Peixoto & Rennó, 2011). Há décadas, os estudos de lobby têm se dedicado a demonstrar o papel de influência dos empresários e de suas associações na política (Costa, 2012). E, por fim, temos também os estudos sobre financiamento de campanha (Speck & Mancuso, 2014).
O que certamente é pouco usual na ciência política é a confluência causal entre dinheiro e poder, a conversão entre as elites econômicas e as elites políticas e estatais; seja por assunção direta, seja pelos múltiplos laços de relacionamento e influência mútua. Que haja ricos e super-ricos, ninguém nega. A questão principal aqui é se esses conseguem se configurar em uma classe dominante, entendida aqui como a combinação de duas condições necessárias: a atuação conjunta e coordenada e a capacidade de influenciar decisões políticas (Barrow, 2007; Wetherly, 2007).
Sempre foi muito difícil provar isso, para além das suspeitas, de forma a produzir mecanismos causais que evidenciem essa relação. Perissinotto e Miríade (2009), por exemplo, ao analisarem os bancos de dados do TSE a fim de identificar padrões de candidatura e de eleitos no Brasil, esbarram na lacuna da autodeclaração: a maioria dos políticos declara, como ocupação, que são, bem, políticos.
Conseguimos com alguma boa vontade deduzir que um médico teria pouco tempo de atender aos seus pacientes após assumir um mandato na Câmara dos Deputados. Entretanto, o mesmo não se aplica àqueles que possuem terras, empreendimentos, imóveis e outras formas de produção de proventos. Mais uma vez, a ocultação aparece como um elemento fundamental para essa questão.
No estrangeiro, já é possível mapear algumas iniciativas que buscam iluminar este breu. Bortun, Reeves e Friedman (2025), ao investigar o parlamento britânico, vão pelo caminho da busca da origem social dos parlamentares e como ela molda o comportamento destes. Carnes e Lupu (2023) tiveram iniciativa parecida, conectando background econômico e ação parlamentar. Estes autores, inclusive, estão envolvidos em uma grande iniciativa global de rastreio dos traços econômicos de parlamentares, a Global Legislators Database (Carnes et al, 2025).
Como o caso do IOF revela, o Brasil fornece bastante matéria-prima para que se estude algo parecido. Se parametrizarmos as rendas declaradas das principais elites políticas brasileiras em exercício no dia 1º de julho de 2025 – deputados federais, senadores, governadores e vices, prefeitos de capital e vices e os residentes do Alvorada e do Jaburu – encontramos uma média de patrimônio de R$ 3 milhões, 62 vezes maior que a da população brasileira.
Hugo Motta, o presidente da Câmara que regeu o movimento de derrubada do imposto, frustrado posteriormente pelo Supremo Tribunal Federal, declarou possuir R$ 1,1 milhão em bens quando da sua candidatura nas eleições de 2022. Sua família possui uma tradicional e já conhecida trajetória na política paraibana: diversos integrantes das linhagens Motta e Wanderley atuaram em cargos no Legislativo estadual e federal, além da Prefeitura de Patos, onde seu avô e pai nasceram e ocuparam o Executivo por diversos mandatos.
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Analisando os registros de pessoas jurídicas vinculadas a Hugo Motta, comprova-se a propriedade direta somente de uma empresa, dedicada à produção de carne bovina, como indicado na declaração ao TSE. Mas, ao observar familiares próximos ao deputado (pai, mãe, irmã e cônjuge), é possível encontrar uma vasta rede de empresas que atuam não somente na agropecuária, mas na construção civil, extrativismo, radiodifusão, coleta de resíduos e educação. A soma do capital social (valor declarado pelos sócios na abertura da empresa) chega aos R$ 11 milhões, e, por se tratar de um registro contábil, não reflete o valor de mercado ou faturamento de tais empreendimentos.
No que tange à propriedade fundiária, Hugo Motta é detentor de uma fazenda localizada no município de Emas (PB), com área total de 821 hectares. Nesta seara, o Incra realiza periodicamente o Relatório de Análise do Mercado de Terras, como instrumento norteador para as políticas de reforma agrária. Nestes documentos, são calculados valores aproximados do hectare, dependendo da sua destinação. Ainda que sirva somente como referência, o valor aproximado de tal propriedade se aproxima dos R$ 2 milhões.
Sua cônjuge, Luana Motta, é sócia de uma mineradora, a Fronteira Indústria e Comércio de Minerais Ltda., e de uma incorporadora, a Medeiros & Medeiros Ltda. A primeira detém duas parcelas de terra na cidade de Pedras do Fogo (PB), totalizando 28 hectares. Já a segunda é proprietária de uma parcela de 287 hectares em Serraria (PB). A combinação destas duas propriedades fundiárias, em modestas estimativas dos órgãos governamentais, pode totalizar R$ 8,6 milhões.
Estes casos ilustram a posse de diferentes formas de capital, que não somente os tornam integrantes do seleto grupo dos mais ricos num país tão desigual, mas que os inserem numa convergência muito particular entre as elites econômica e política.
É esse movimento que tem nos inspirado a construir o projeto Elites 2025: A Classe da Classe Política. Essa iniciativa é uma parceria do Observatório de Elites Políticas e Sociais do Brasil com o INCT ReDem. Os 704 sujeitos que formam a elite da elite política brasileira, os cargos que citamos alguns parágrafos acima, terão suas relações de classe esmiuçadas de forma inédita no Brasil. Temos hoje 20 pesquisadores trabalhando na coleta desses dados, fazendo uso de técnicas computacionais ainda não utilizadas em nossa área. Ao final, pretendemos, enfim com os ingredientes necessários, responder à pergunta: vale a pena usar a classe, essa coisa, na ciência política?