Esse texto é uma resposta ao artigo “Lições cruzadas”, escrito por Miguel Godoy e Leonardo Brito e publicado neste JOTA. Em síntese, os autores: (i) afirmam que as conciliações no controle abstrato constituem “um equívoco normativo e institucional”, marcado por ausência normativa e controle procedimental; (ii) apontam um déficit de representação e voluntariedade nessas conciliações; (iii) identificam o fracasso da conciliação no STF, com base nos casos do IOF e do acordo com o INSS; e (iv) sustentam que, a partir desses casos citados, permanecem “dez perguntas críticas que ainda continuam sem resposta”.
Informações direto ao ponto sobre o que realmente importa: assine gratuitamente a JOTA Principal, a nova newsletter do JOTA
As dez perguntas já respondidas: os limites e as possibilidades dos acordos no STF
Comecemos pela última afirmação. As dez perguntas críticas remetem a um texto publicado no início deste ano no JOTA. Ocorre que todas já foram respondidas em trabalho acadêmico previamente apresentado e defendido em banca pública, cuja banca avaliadora contou, inclusive, com a participação de um dos autores do artigo ora respondido.[1] A seguir, retomo essas perguntas e apresento, item por item, as respostas construídas à luz da pesquisa realizada.
Cabe conciliar em qualquer caso submetido ao STF?
Não. A autocomposição só é admitida quando adequada à solução da controvérsia constitucional. No controle concreto, são possíveis acordos em processos estruturais.
Já no controle concentrado e abstrato, admite-se o acordo concreto no controle abstrato, referente a aspectos fáticos e situações concretas específicas no âmbito da ADI, ADC, ADPF autônoma.
Em qualquer tipo de ação?
Sim. A conciliação é possível em qualquer classe processual, desde que respeitados os limites, que são a força normativa e a supremacia da Constituição Federal.
É possível transacionar “com” e “no” controle abstrato de constitucionalidade?
Sim. Técnicas consensuais não se limitam ao processo judicial, podendo ocorrer também extrajudicialmente.
Quem concilia? As partes/partícipes das ações?
Os legitimados para a ADI, os amici curiae e os demais interessados, desde que haja representação adequada e argumentos qualificados do grupo.
As conciliações acontecem em nome próprio, de um grupo, ou de todos os afetados?
Pode ter efeitos erga omnes se tratar de aspectos fáticos e envolver sujeitos que influenciaram na formação da norma ou de sua aplicação.
Como se define e se afere a representatividade de quem concilia?
Por dois critérios: representação adequada e representação virtual, com foco na qualidade dos argumentos apresentados pelo grupo.
É possível transacionar e conciliar sobre direitos fundamentais? De grupos vulneráveis e minorias também?
Depende. Pode haver acordo para ampliar direitos fundamentais, nunca para restringi-los.
A decisão pela conciliação deve ser voluntária, requerida pelas partes ou partícipes das ações do controle abstrato, ou pode ser imposta pelo ministro relator?
Não impõe, mas estimula. O CPC determina o dever do magistrado em estimular a autocomposição (arts. 3º, §§ 2º e 3º, e 139, V). A audiência de conciliação pode ser determinada em qualquer momento ou fase do processo pelo relator.
Quem realiza a conciliação ou a mediação no STF? O ministro, o juiz auxiliar, ou alguém escolhido pelas “partes”? É preciso ter formação específica?
O ministro relator ou juiz auxiliar, com apoio técnico do Nusol. Acordos extrajudiciais também são possíveis.
Qual o papel do plenário do STF nas conciliações? O de mero referendo das decisões tomadas em conciliação?
Cabe ao plenário homologar os acordos, inclusive por referendo de decisão monocrática. De lege ferenda, por mudança do RISTF, admite-se a delegação dessa competência às Turmas do STF.
De fato, o tema dos acordos no STF é recente e, justamente por isso, não se pode tratá-lo em termos de “certo ou errado”. Trata-se de uma discussão teórica em construção, na qual o jurista pode “concordar ou discordar”, desde que apresente argumentos consistentes.
Não há equívoco, nem lacuna normativa e institucional sobre as conciliações
Conforme já defendemos, o art. 3°, §§ 2° e 3°, do CPC é fundamento normativo suficiente para a autocomposição no controle de constitucionalidade. O STF se vale do mesmo fundamento normativo para fundamentar suas decisões que designam audiências de conciliação, mediação ou contextualização.[2]
Obviamente, a Constituição Federal não disciplina os acordos nem as audiências de conciliação. Da mesma forma, o texto constitucional também não prevê a decisão minimalista[3], o diálogo institucional[4] ou a técnica da não decisão[5].
Contudo, diante dessa ausência normativa, o texto sugere que é dever do STF, como guardião da Constituição, declarar a compatibilidade ou não de atos normativos com o texto constitucional.
Se assim é, por que se admite o uso de técnicas como o minimalismo, o diálogo institucional ou a não decisão, inclusive quando estão em jogo violações de direitos fundamentais? Não é dever de decidir em todo e qualquer caso?
Não há lacuna normativa para a consensualidade no STF. Além da norma fundamental do processo citada acima, temos: (i) o Preâmbulo da Constituição, embora não sirva como parâmetro de controle, orienta a interpretação constitucional que reafirma solução pacífica das controvérsias; e (ii) os arts. 15, 318 e 327, §2º, do CPC que autorizam a aplicação subsidiária das técnicas processuais diferenciadas, inclusive as consensuais, aos procedimentos especiais do controle de constitucionalidade.[6]
É necessário compreender a forma de participação nos acordos perante o STF
A participação qualificada dos interessados, por meio de representação adequada e virtual, além do contraditório substancial. A representação adequada diz respeito ao virtual se caracteriza pela capacidade do grupo em apresentar argumentos qualificados no processo
Assim, torna-se não apenas desejável, mas condição essencial de eficácia do acordo, pois somente assim é possível justificar a extensão dos efeitos do acordo para além das partes signatárias e de forma vinculante. (inclusive, o art. 55 do PL 3.640/2023 prevê a possibilidade da representatividade adequada nos acordos no STF).
Sobre o caso do marco temporal, sim, caso o grupo interessado não tenha interesse em participar da conciliação ou na celebração do acordo, possui o direito de se valer de sua autonomia e optar pela decisão judicial submetida ao plenário do STF (vide o caso do IOF).
A visão equivocada de que conciliação bem-feita é somente o produto de acordos
O texto afirma que o caso do IOF e o acordo do INSS foram fracassos anunciados. No primeiro caso, do IOF, o artigo respondido atribui a falha pela ausência de autocomposição, ou seja, ausência de formação de acordo.
Apontar o caso do IOF como fracasso por ausência de acordo revela uma compreensão equivocada da autocomposição. A tentativa de conciliação já cumpre função relevante no contexto processual ao estimular a tentativa de solução consensual do conflito.
Não há obrigação de firmar acordos, mas sim de estimular o diálogo quando cabível. O sucesso da consensualidade não depende do resultado. Caso não haja acordo, não há problema.
No acordo do INSS, houve acordo sobre aspectos fáticos, prevendo reparação integral dos benefícios. A crítica de que o INSS estaria isento de pagar danos morais ou repetir o indébito ignora o contexto: tratou-se de fato criminoso, praticado por terceiros, e a União, de boa-fé, buscou reparar os danos.[7]
Por fim, nada impede que as associações ou partes impugnarem judicialmente a vinculação ao acordo, contudo, sempre haverá o risco de a União interpor o recurso cabível de eventual decisão que lhe seja desfavorável.
Quais os limites aos acordos no controle de constitucionalidade?
Os limites aos acordos no controle abstrato (ADI, ADC e ADPF autônoma) dizem respeito à força normativa e à supremacia da Constituição. Portanto, não é possível transacionar sobre a constitucionalidade de normas nem convalidar, por acordo, norma já declarada inconstitucional pelo STF.
No entanto, esses limites não obstam por completo a celebração de acordos e de negociações no âmbito do controle abstrato de constitucionalidade no STF.
Qual a proposta de solução?
Mesmo diante dos limites à consensualidade no controle abstrato, é possível a celebração do acordo concreto no controle abstrato de constitucionalidade que, uma vez celebrado, diz respeito aos interesses subjetivos e aos fatos constitucionais do processo.[8] Enquanto o juízo definitivo sobre a declaração ou não da inconstitucionalidade da norma permanece competência exclusiva do plenário do STF.
Para tanto, é necessário superar a premissa de que não se analisam interesses subjetivos nesse tipo de processo. É isso que a doutrina contemporânea nacional e estrangeira vem defendendo a necessidade de análise dos fatos constitucionais no controle de constitucionalidade.[9]
Essa é, inclusive, a tendência adotada pelo Supremo ao buscar a autocomposição e homologar acordos no controle abstrato, como nos casos do tabelamento do frete (ADIs 5.956, 5.959 e 5.964), sob relatoria do ministro Luiz Fux; da limitação à participação de mulheres em concursos da Polícia Militar (ADIs 7.433 e 7.483), sob relatoria do ministro Cristiano Zanin; da requisição de dados por autoridades brasileiras (ADC 51); e da regularidade das assembleias da CBF, no contexto da Lei Pelé e da Lei Geral do Esporte (ADI 7.580), sob relatoria do ministro Gilmar Mendes.
Pergunta feita, lição dada e respostas ignoradas
Reitera-se, novamente, a premissa anterior que recai sobre qualquer meio e técnica consensuais de resolução de conflitos: quando não há consenso, não há acordo.
Os acordos no controle de constitucionalidade não podem ter por objeto a violação ou a supressão de direitos fundamentais. Mas, por outro lado, podem (e devem) ser utilizados para expandir o âmbito de proteção, incidência e efetivação dos direitos fundamentais e demais direitos previstos no texto constitucional.
Em síntese, o uso de acordos no STF consagra mais uma possibilidade adequada de solução de controvérsias constitucionais, de modo que deve ser incentivado e promovido pelo Supremo, sempre respeitados os parâmetros da supremacia e da força normativa da Constituição Federal.
[1] Para a análise sobre os limites e as possibilidades dos acordos no controle de constitucionalidade, em especial, no controle do tipo abstrato, ver: DELLÊ, Felipe. O acordo de (in)constitucionalidade: os limites, as possibilidades e as respostas institucionais do Supremo Tribunal Federal. Dissertação (Mestrado) – Universidade Federal do Paraná (UFPR), Setor de Ciências Jurídicas, Programa de Pós graduação em Direito, Curitiba, 2025, passim.
[2] Para além dos atos normativos que instituíram os órgãos perante o STF, por meio de Resoluções e de Ato Regulamentar. O ato mais recente foi o Ato Regulamentar n° 27/2023, o qual criou a Assessoria de Apoio à Jurisdição (AAJ), e o CMC passou a ser integrado ao Núcleo de Solução Consensual de Conflitos (NUSOL), que agora centraliza as iniciativas voltadas à conciliação, mediação e cooperação judiciária no STF.
[3] SUNSTEIN, Cass R. One case at a time: judicial minimalism on the Supreme Court. Cambridge: Harvard University Press, 1999, passim; SUNSTEIN, Cass R. Problems with Minimalism. In: Stanford Law Review, vol. 58, no. 6, pp. 1731–1758, 2006, passim; MARINONI, Luiz Guilherme. Técnica decisória e diálogo institucional: decidir menos para deliberar melhor. In: Suprema – Revista de Estudos Constitucionais, Brasília, v. 2, p. 49–85, 2022; MARINONI, Luiz Guilherme. Processo constitucional e democracia. São Paulo: Revista dos Tribunais, 2021.
[4] MENDES, Conrado Hübner. Direitos fundamentais, separação de poderes e deliberação. Tese (Doutorado) – Universidade de São Paulo, São Paulo, 2008; BRANDÃO, Rodrigo. Supremacia Judicial v. Diálogos Constitucionais: a quem cabe a última palavra sobre o sentido da Constituição. 2. ed. Rio de Janeiro: Lumen Iuris, 2021; GODOY, Miguel Gualano de. Devolver a constituição ao povo: crítica à supremacia judicial e diálogos institucionais. Belo Horizonte: Fórum, 2017; DELLÊ, Felipe. O objeto do processo constitucional: estudos sobre os princípios da demanda, dispositivo e da congruência no controle de constitucionalidade. In: Revista de Processo, vol. 48, n. 343, versão eletrônica, 2023
[5] BICKEL, Alexander M. The least dangerous branch: the Supreme Court at the bar of politics. New Haven: Yale University Press, 1962; MARINONI, Luiz Guilherme. A não decisão enquanto opção democrática. Revista de Processo, n. 324, versão eletrônica, 2022; CABRAL, Antonio do Passo. Jurisdição sem decisão: non liquet e consulta jurisdicional no direito brasileiro. 1. ed. Salvador: Juspodivm, 2023; DELLÊ, Felipe. O acordo de (in)constitucionalidade: os limites, as possibilidades e as respostas institucionais do Supremo Tribunal Federal. Op. cit., passim.
[6] Sobre a “flexibilidade do procedimento comum pelas técnicas especiais”, “o livre trânsito das técnicas especiais entre os procedimentos” e o “Transporte de técnicas do procedimento comum aos procedimentos especiais (art. 318, par. único, CPC)”, ver, DIDIER JR, Fredie; CABRAL, Antonio do Passo; CUNHA, Leonardo Carneiro da. Por uma nova teoria dos procedimentos especiais: dos procedimentos às técnicas. 5 ed. Salvador: Juspodivm, 2025. p.72-80.
[7] Ainda que se aplique a responsabilidade civil objetiva do Estado pelos danos praticados por seus agentes, observada a tese da dupla garantia, não parece razoável punir a União duplamente por um caso no qual houve não apenas fraude, mas fato criminoso, praticado por terceiros, e no qual o ente central mostrou-se disposto, de boa-fé, a reparar os direitos subjetivos violados.
[8] Sobre o tema, ver: DELLÊ, Felipe. O acordo de (in)constitucionalidade: os limites, as possibilidades e as respostas institucionais do Supremo Tribunal Federal. Dissertação (Mestrado) – Universidade Federal do Paraná (UFPR), Setor de Ciências Jurídicas, Programa de Pós-graduação em Direito, Curitiba, 342 f., 2025.
[9] FAIGMAN, David L. “Normative constitutional fact-finding”: exploring the empirical component of constitutional interpretation. In: University of Pennsylvania Law Review. Vol. 139, n.3, 1991; MENDES, Gilmar Ferreira. Controle de constitucionalidade: hermenêutica constitucional e revisão de fatos e prognoses legislativos pelo órgão judicial. In: Revista Jurídica da Presidência, Brasília, vol. 1, n. 8, janeiro 2000; FAIGMAN, David L. Fact-finding in constitutional cases. Amherst draft: June 20, 2005; FAIGMAN, David L. Constitutional fictions: a unified theory of constitutional facts. New York: Oxford, 2008; MARINONI, Luiz Guilherme. Fatos constitucionais? A (des)coberta de uma outra realidade do processo. São Paulo: Revista dos Tribunais, 2023; DELLÊ, Felipe. Os fatos constitucionais e a inconstitucionalidade formal por vício de competência legislativa: superando premissas no controle de constitucionalidade (parte 1). In: Sistema Brasileiro de Precedentes: propostas e reflexões para seu aprimoramento. Londrina: Thoth, 2024.