A atual revolução tecnológica está criando condições técnicas para a construção de redes de informação dominadas por computadores, as quais dispensam a interação humana e assim colocam difíceis desafios para as democracias constitucionais, especialmente para a proteção jurídica de novos direitos fundamentais.
A história demonstra que as revoluções tecnológicas implicam a emergência de novos direitos. Mas a atual revolução das redes de informação não tem precedentes históricos. A inteligência artificial e as tecnologias que possibilitam o aprendizado de máquinas impõem desafios mais difíceis para a garantia de novos direitos dos que aqueles que no passado surgiram com as revoluções informacionais causadas pelas invenções do prelo, do telégrafo ou do rádio.
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Como devem as democracias proteger as novas demandas humanas contra a coleta, o armazenamento, a segurança, o uso e a manipulação de informações pessoais por redes de computadores? Quais direitos poderão surgir das cada vez mais recorrentes relações de poder entre humanos e máquinas ou algoritmos?
Nos próximos anos, os conhecidos direitos à informação e à proteção de dados estarão em permanente transformação. Por isso, o estudo dessas mutações requer esforços teóricos para identificar, analisar e conceituar adequadamente os direitos emergentes dentro das estruturas constitucionais.
Como base teórica, utilizo aqui os ensinamentos do professor Gregorio Peces-Barba sobre os processos de evolução dos direitos fundamentais nos sistemas constitucionais. A teoria de Peces-Barba distingue as fases de positivação, de generalização, de internacionalização e de especificação nos processos de evolução histórica dos direitos fundamentais[1].
Atualmente, a velocidade das transformações sociais desenvolve constantemente esses processos de afirmação de novos direitos fundamentais, com destaque para a especificação de direitos positivados nos ordenamentos jurídicos. Vivemos em um mundo em mutação permeado por constantes processos de especificação de conhecidos direitos fundamentais. Os direitos que estão há algum tempo positivados nas Constituições e nos tratados internacionais são pressionados para ampliarem ou especificarem a sua proteção em relação às novas demandas sociais.
A partir desses processos de especificação, os conhecidos direitos fundamentais vão assumindo novas feições e aos poucos se transformando em novos direitos, geralmente assumindo uma nova tipologia e uma nova denominação. São os direitos emergentes da atual revolução tecnológica, inédita na história da humanidade.
Nesta era digital, as mutações sociais que resultam da implementação de novas tecnologias de comunicação geram novas reivindicações e demandas que repercutem em processos de especificação dos conhecidos direitos à informação e à privacidade.
Nas últimas décadas, as profundas mudanças sociais advindas das novas tecnologias de comunicação fizeram emergir um importante direito fundamental à proteção de dados, resultado dos processos de especificação dos direitos à privacidade, à autonomia privada e ao desenvolvimento da personalidade.
Algumas Constituições, como a brasileira[2], incorporaram formalmente esse direito à proteção dos dados. Em outros países, esse direito passou a ser reconhecido pela jurisprudência de tribunais e cortes constitucionais. Em muitos ordenamentos jurídicos, o direito à proteção dos dados passou a fundamentar toda uma legislação especificamente voltada à proteção legal das informações pessoais em face dos poderes públicos e privados.
As duas últimas décadas, portanto, foram marcadas por esses processos de especificação dos direitos à informação e à privacidade, com a consolidação do direito à proteção de dados nos diversos ordenamentos jurídicos. Hoje, em um mundo em plena revolução tecnológica, a efetiva proteção jurídica de dados pessoais passou a ser um dos principais fundamentos dos Estados constitucionais.
A constante busca de aperfeiçoamento dessa proteção jurídica dos dados tem levado em conta as mudanças tecnológicas ocorridas recentemente, especialmente o vertiginoso desenvolvimento das redes sociais e das diferentes formas de transmissão e armazenamento de informações pela rede mundial de computadores. As legislações nacionais construídas nos últimos anos para a proteção de dados levam em consideração esse estado da arte tecnológico.
Não obstante, é preciso também levar em consideração que as atuais transformações tecnológicas nas comunicações e nas redes de computadores seguem cada vez mais velozes e inovadoras e continuam a constantemente pressionar, com novas demandas, os direitos à informação e à proteção dos dados.
O vertiginoso desenvolvimento das novas tecnologias de inteligência artificial, em conjunto com os novos desenvolvimentos da biotecnologia, tem trazido desafios inéditos para os direitos à informação e à proteção dos dados.
No atual estágio das descobertas científicas, tudo indica que, em poucos anos, a proteção jurídica recentemente construída em diversos países para os direitos à informação e à proteção dos dados será insuficiente para a efetiva garantia desses direitos em face das novas tecnologias. Em breve, será preciso ampliar e reforçar a proteção de informações e dados pessoais de modos nunca antes considerados pelos diversos ordenamentos jurídicos.
Para constatar essa realidade, é preciso perceber três características do desenvolvimento tecnológico dos últimos anos:
(1) as redes de computadores estão cada vez mais potentes e, do ponto de vista econômico, com custos cada vez menores;
(2) é cada vez maior o conhecimento sobre a biologia humana, especialmente sobre mecanismos biológicos antes desconhecidos (como o funcionamento do cérebro); e
(3) a engenharia tornou-se possível em escalas cada vez menores, com avanços surpreendentes em nanotecnologia.
O desenvolvimento cada vez maior dessas três áreas culminará, em poucos anos, na conexão do cérebro humano com redes de computadores. A nanotecnologia permitirá a coleta, a transmissão e o armazenamento de informações cerebrais humanas em uma espécie de nuvem de neurônios virtuais[3]. Será a fusão da inteligência humana com a inteligência artificial dos computadores, fenômeno que imporá desafios inéditos para a proteção jurídica de dados pessoais.
A fusão do ser humano com a inteligência artificial deixou de ser tema da ficção científica e deve agora passar a ser objeto de preocupação de juristas e legisladores em todo o mundo, especialmente tendo em vista a efetiva proteção dos direitos à informação e à proteção de dados.
A atual possibilidade tecnológica da fusão da inteligência humana com a inteligência artificial tem gerado novas demandas por proteção jurídica do cérebro humano, não apenas em sua integridade física, mas especialmente em relação às informações e dados nele contidos (pensamentos, memórias, imagens etc.). Essas novas demandas têm feito surgir novos direitos à proteção das informações cerebrais.
Nesse emergente contexto tecnológico, os denominados neurodireitos desenvolvem-se em processos de especificação não apenas dos direitos à integridade física e à privacidade, mas especialmente dos direitos à informação e à proteção dos dados pessoais. Esses conhecidos direitos estão atualmente em permanente mutação em seu conteúdo, transformando-se em espécies de neurodireitos ou direitos à proteção das informações cerebrais humanas.
Nessa tendência, o Chile foi pioneiro ao positivar os neurodireitos em sua Constituição, com a alteração do artigo 19, que passou a conter a seguinte redação: “El desarrollo científico y tecnológico estará al servicio de las personas y se llevará a cabo con respeto a la vida y a la integridad física y psíquica. La ley regulará los requisitos, condiciones y restricciones para su utilización en las personas, debiendo resguardar especialmente la actividad cerebral, así como la información proveniente de ella”.
No Brasil, existem incipientes iniciativas legislativas, como a PEC 29, de 2023, que visa incluir, no rol dos direitos fundamentais, a proteção à integridade mental e à transparência algorítmica. Em face da velocidade das atuais transformações tecnológicas, é hora de chamar a devida atenção dos legisladores para a importância de se avançar nas deliberações sobre o tema.
Os neurodireitos devem ampliar e reforçar a proteção das informações e dados cerebrais humanos contra as ameaças advindas nas novas tecnologias que conectam o cérebro humano com as redes de computadores.
Apesar dos avanços científicos positivos que a neurotecnologia pode trazer para diversos campos (como a medicina, por exemplo), é certo que na sua implementação emergem diferentes tipos de vulnerabilidades do cérebro humano, as quais devem ser objeto de proteção jurídica reforçada. De fato, há uma premente necessidade de se garantir a proteção jurídica de diferentes demandas que surgem na implementação das neurotecnologias, tais como:
o resguardo da identidade pessoal desenvolvida autonomamente pela própria consciência;
a proteção da autonomia da vontade e do livre desenvolvimento da personalidade pelos próprios pensamentos e raciocínios individuais;
a proteção da privacidade dos pensamentos, das imagens, das visões e das memórias;
a garantia da informação ampla e irrestrita sobre os dados cerebrais coletados por neurotecnologias;
a garantia de proteção dos dados cerebrais em face de atividades de coleta, transmissão, armazenamento, comercialização ou qualquer tipo de negócio jurídico sobre esses dados.
Essas novas demandas de proteção dos direitos fundamentais certamente exigem do Estado um papel mais interventivo e regulador, especialmente das relações privadas. Em razão da ampla produção de efeitos nas relações entre particulares, esses novos direitos emergentes da atual revolução tecnológica impõem deveres de proteção por parte do Estado, assim como exigem constantemente ações positivas interventivas para a sua efetividade.
Nesse contexto, é preciso refletir sobre os caminhos que a proteção jurídica deve seguir entre os riscos da insuficiência de proteção, por um lado, e o excesso de intervenção estatal, por outro. Como alguns especialistas vêm alertando, a denominada “próxima onda”[4], fenômeno atual caracterizado pelo vertiginoso desenvolvimento da inteligência artificial e da biotecnologia, está a impor o difícil desafio às democracias constitucionais de construir ordens jurídicas protetivas de dados pessoais que não se transformem em regimes totalitários.
Nos próximos anos, a Teoria dos Direitos Fundamentais enfrentará esse difícil desafio de construir as bases teóricas desses direitos emergentes da atual revolução tecnológica, desenvolvendo a sua face teórica de direitos à proteção e à prestação do Estado, sem criar as condições jurídicas de um regime de vigilância totalitária.
As atuais mutações dos direitos à informação e à proteção dos dados continuarão a demandar novas proteções jurídicas dos Estados, mas ao mesmo tempo trarão reivindicações da sociedade por mais fiscalização e controle da atividade estatal no tratamento dos dados.
Com essa conformação em plena mutação, os novos direitos à informação e à proteção de dados emergentes da revolução tecnológica assumem essa dupla característica teórica, constituindo ao mesmo tempo direitos a ações positivas e negativas, tanto do Estado quanto dos particulares.
Portanto, são realmente complexos e difíceis os novos desafios impostos à Teoria dos Direitos Fundamentais. Por isso, como reflexão final, é preciso chamar a atenção para o papel fundamental dos juristas, especialmente dos constitucionalistas, para o adequado tratamento teórico desses novos direitos que estão surgindo no contexto da revolução tecnológica.
A fusão da inteligência humana com a inteligência artificial é um fato histórico completamente novo e que impõe desafios nunca antes encarados pelos juristas. Como implementar a proteção jurídica reforçada às informações e dados humanos em redes de computadores, sem construir regimes jurídicos de vigilância totalitária? Como dar conformação teórica aos novos neurodireitos, para que protejam de modo suficiente as informações e dados cerebrais, sem criar mecanismos de intervenção desproporcional na integridade física, na autonomia e na privacidade dos indivíduos?
Essas são questões cruciais que atualmente devem ser objeto de maiores investigações, estudos e reflexões teóricas.
Por isso, antes de finalizar, é importante fazer menção aos estudos atualmente desenvolvidos no sentido do estabelecimento das bases e da conceituação teóricas dos novos direitos nas atuais transformações das democracias constitucionais, no âmbito do Interest Group on Emerging Rights, coordenado pelo professor José María Sauca, da Universidad Carlos III de Madrid, os quais foram apresentados nos últimos dias 28, 29 e 30 de julho de 2025, na Conferência Anual da International Society of Public Law (ICON-S), realizada na Universidade de Brasília (UnB).
No Brasil, ressalte-se o importante trabalho de pesquisa da Rede Internacional de Neurodireito e Direitos Humanos, que congrega pesquisadores da Universidade de Fortaleza, da Universidad Externado de Colombia e da Universidad Austral de Chile, coordenado pelas(os) professoras(es)Ana Maria D’Ávila Lopes (Unifor), José Julián Tole Martínez (UEXTERNADO), Felipe Ignacio Paredes Paredes (UACH) e Gabrielle Bezerra Sales Sarlet (PUC-RS), o qual também foi apresentado na recente Conferência Anual da International Society of Public Law (ICON-S 2025).
[1] PECES-BARBA MARTÍNEZ, Gregorio. Curso de Derechos Fundamentales. Madrid: UCMIII; BOE; 1999, pp. 145 ss. “Utilizamos para identificarlo una terminología que propone Bobbio, proceso de especificación, aunque también podríamos hablar de proceso de concreción, que supone no sólo selección y matización de lo ya existente, sino aportación de nuevos elementos que enriquecen y complementan lo anterior. (…) La especificación se produce en relación con los titulares de los derechos y también con los contenidos de los mismos y tiene una conexión indudable con su consideración como un concepto histórico, es decir, inserto en la cultura política y jurídica moderna”.
[2] Constituição do Brasil, artigo 5°, inciso LXXIX, incluído pela Emenda Constitucional nº 115, de 2022: “é assegurado, nos termos da lei, o direito à proteção dos dados pessoais, inclusive nos meios digitais”.
[3] KURZWEIL, Ray. A singularidade está mais próxima: a fusão do ser humano com o poder da inteligência artificial. Trad. Renato Marques. São Paulo: Ed. Goya; 2024.
[4] SULEYMAN, Mustafa; BHASKAR, Michael. A próxima onda: inteligência artificial, poder e o maior dilema do Século XXI. Trad. Alessandra Bonrruquer. Rio de Janeiro: Ed. Record; 2025.